domingo, 24 de agosto de 2014

EDUARDO WHITE (1963-2014)


Nada reconheço, nada. Os escombros, o ódio arrumado nas gavetas, o tijolo do ciúme nos guarda-fatos, a trepadeira da escuridão, as aves caídas e amarrotadas na sua plumagem, as canções fúnebres, os canos rotos, as portas caídas da demolição.

Não posso crer que aqui estive, que abri cartas e cantei e disse versos, não posso perceber que o brilho se desgastou, a vida se deteve como um espólio velho e sem interesse. Não posso crer que ambos tenhamos aqui vivido, ou que eu, ou tu, ou ambos tivéssemos fingido o contrário que é o contrário na nitidez destes testemunhos.

Teremos amado ou combatido, indago-me, teremos vivido ou morrido pelas escamas presentes, pela humidade apodrecida, pelos objectos distorcidos, pelo feno triste em que se tornou a cama. De tudo me dou conta e sem notícias de ti, apenas um vazio com uma máscara irreconhecível, uma trémula e evasiva realidade.

Levanto-me, a custo, e percorro este simulacro de algum Sudão, de alguma Guernica, de qualquer uma Uganda tão evidente ainda hoje, predestinado à fome e à violência, à dor, à barulheira das armas, ao genocídio cínico, ao peso das armas e das catanas, vou entontecido, costeiro a este lugar que agora me repugna veementemente e atravesso os gemidos terminais da morte devagar, devagar para que me não reconheçam.


Eduardo White, in Dos limões amarelos do falo às laranjas vermelhas da vulva, Campo das Letras, Junho de 2008, p. 49. A imagem ao alto foi respigada aqui.

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