Entro no largo da Câmara Municipal pela Rua de São Tiago. Avisto-o
de costas, estático, como se fosse uma estátua ali colocada. Os longos cabelos
brancos caem sobre as costas, manto que o protege das intempéries. Certifico-me
de que se trata de quem penso. Dou uma volta ao largo, sento-me do lado oposto ao
que se encontra e observo-o. Intento a palavra certa, não vá cortar a boca no
arame farpado. Ele não pestaneja, está recostado no banco do largo remodelado.
A coluna curvada. Uma barba farta que se mistura com a cabeleira estende-se
sobre o peito. Descobrimos-lhe o olhar só quando nos aproximamos. De quando em
vez, esboça um cumprimento. Acena com a cabeça, levanta uma mão. Parece calmo. Mas
tem nos olhos a cor grisalha dos cabelos, uma paz combalida. Há pouco, as gaivotas sobrevoavam o aterro sanitário em busca de alimento.
Aproximo-me, meto conversa. A poesia gera pontes, mas são
todas de ferro velho enferrujado. A palavra certa é a mais simples. O homem dos cabelos brancos mantém o discurso que já lhe ouvira. Uma
coerência desarmante. Pressinto-lhe as mazelas de um acidente vascular recente.
Explica-me o que os médicos não admitem, que o achaque afinal foi uma
projecção. Quando se preparava para descansar da missão que o trouxe à cidade,
aconteceu-lhe aquilo. Agora não pode descansar, não pode voltar a ser quem era.
Ninguém volta, penso. Mas este homem, tão certo e convencido de ser quem é,
entala-me entre os benefícios da loucura e os estragos da normalidade. Não sei
se chame liberdade ao seu abandono, não tem o sentido de abnegação da esfinge
hindu. Talvez o seu mundo cresça do
avesso, jogo de espelhos onde as horas são preenchidas tentando perceber o que
há de real no reflexo.
Évora, Julho, 2014.
2 comentários:
GRANDE ENCONTRO! saúde e Bjs para toda a tribo
O sr. Luís.
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