quinta-feira, 11 de setembro de 2014

A PRÁTICA DA MORTE


De morte natural nunca ninguém morreu.
Jorge de Sena

Que amor não se explica?
Fernando Pessoa

O tema único é enfim a morte
natural de que nunca ninguém morre
mas como designar a morte de que
se morre? Natural afinal é
qualquer morte mas menos natural
quando na própria vida longamente
reside: é então como se o pássaro
do mito no corpo vivo o bico por castigo
usasse e infinitamente exercitasse
a sua fome abstracta numa vida reduzida
a pasto dessa ave; deixa de
haver passado e o presente
torna-se eterno pois imaginar
o fim e o princípio da nocturna catástrofe
é não só impossível como inútil podemos
meditar, olhando o olhar que nos
olha e implora não sabemos
que forma de silêncio, sobre temas
antigos por exemplo o sentido
da vida lugar continuamente percorrido
por aqueles para quem ela não tem sentido
ou se o corpo é a alma ali tão viva
de pouco servirá todavia
o desejo de com ideias reflexões e teorias
procurar entender, nada na vida
realmente se explica só imagens
(de noite ao luar no rio uma vela
serena a passar que é que me revela?)
algo revelam talvez todas sejam
simplesmente o aviso de que um dia
de morte natural as perderemos


Gastão Cruz (n. 1941), in Repercussão (2004). «Gastão Cruz procedeu a uma ligeira inflexão na sua obra depois da publicação, em 1999, dos Poemas Reunidos. Entendamo-nos: depois de quatro décadas de poesia, Gastão estava (...) no momento mais alto da sua criação literária ou, pelo menos, num momento em que a sua poética fez um caminho e se apresenta, burilada, nalguns dos poemas mais acabados da poesia portuguesa contemporânea, com uma sintaxe e prosódia limpas, rigorosas, inconfundíveis. (...) O poeta abriu um pouco os seus textos a matérias que apareciam de modo mais filtrado até então, sobretudo a infância e a memória, mas também a algumas (surpreendentes) referências mais prosaicas (...). Gastão Cruz formula todo um programa contra uma ingenuidade do «real», mas faz essa subtil demonstração de forma concisa e exigente, em vez do espalhafato metafórico e imagético de que ao «real» opõe mero fogo de artifício» (Pedro Mexia, DN, 7 de Maio de 2004). «Saliente-se que, embora muitas vezes se considere esta poesia como excessivamente abstracta, ela tem um sentido da paisagem extremamente intenso (nisso se aproximando hoje de Joaquim Manuel Magalhães, tendo talvez como plataforma comum o lado descritivo e só aparentemente dissipado de Ruy Belo)» (Eduardo Prado Coelho, Público, 29 de Maio de 2004). «Falando em termos mais precisos: os processos sintácticos e de formação de imagens que, desde o início, marcaram esta poesia, deram-lhe também a reputação de hermética e virada para os seus mecanismos internos. Reagindo a este topos crítico, escreveu Gastão Cruz na apresentação do volume que, em 1983, reunia toda a sua poesia editada e acrescentava um conjunto inédito de textos: «Sempre me considerei um poeta realista e agrada-me que o presente volume se encerre com um grupo de textos intitulado Referentes» (António Guerreiro, Expresso, 26 de Junho de 2004).

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