terça-feira, 2 de setembro de 2014

EQUATORIAL


Depois do africano João Vário (n. 1937 – m. 2007), Fabiano Calixto (n. 1973) é o segundo autor lusófono na colecção de poesia da editora Tinta-da-China. O efeito surpresa mantém-se. Calixto vem juntar-se a um conjunto de poetas brasileiros contemporâneos com quem os leitores de poesia portugueses estão relativamente familiarizados. Entre eles, podemos destacar Carlito Azevedo (n. 1961), com livros publicados na Cotovia, Claudio Daniel (n. 1962), que organizou para o público português uma curiosa Antologia de Poesia Brasileira do Início do Terceiro Milénio (Exodus, 2008), ou Ricardo Domeneck (n. 1977) e Angélica de Freitas (n. 1973), com quem Fabiano Calixto partilha a edição da revista de poesia Modo de Usar & Co. Equatorial (Tinta-da-China, Abril de 2014) reúne poemas de meia dúzia de livros, publicados entre 1998 e 2013, reveladores de uma voz segura e arrebatadora. A opção por uma distribuição não cronológica salienta a versatilidade desta poesia, tão capaz de se alongar em retratos urbanos como eficaz na contenção (e contensão) contemplativa das poéticas orientais. Aliás, o primeiro poema desta recolha é explícito quanto a intenções estilísticas — «EU QUERIA fazer um poema / à maneira clássica chinesa» (p. 9) —, pese embora o tom abatido que se intromete pelo meio: «mas ao rés-do-chão / tudo são cinzas / como no amor // & depois da chuva / o asfalto torna-se um espelho / de lágrimas / dos solitários da cidade» (idem). Muitos poemas do livro caracterizam-se por este vínculo à paisagem urbana, sopesando a solidão daquele que se afasta tanto para observar como para se proteger das angústias e das agruras da vida moderna. Um posfácio de Dirceu Villa chama a atenção para «uma escrita vertiginosa e brutal, um liquidificador de referências trazidas todas a um campo de combate contra uma realidade igualmente vertiginosa e brutal» (p. 141). Estas referências, recolhidas mormente na cultura popular (o volume é dedicado aos Ramones, banda punk norte-americana), misturam-se com a experiência da rua, aproximações literárias afectivas, inventários pessoais, evocações eróticas e amorosas, num gozo lúdico da linguagem tão devedor da tradição concreta brasileira como de certo lirismo de índole irónica e satírica. Há poemas absolutamente geniais, tais como Oratório ou Iracema (bem diferentes na forma), onde o concreto e o imaginário se articulam na criação de imagens sedutoras e poderosas. Esta é, talvez, a capacidade mais apreciável de Fabiano Calixto, ou seja, a de jogar com todos os recursos fonológicos e sintáticos disponíveis, fazendo uso de aliterações e de elipses, de anáforas e de hipérbatos, na construção de metáforas cujo efeito não é meramente decorativo, pois o poeta jamais enjeita o conteúdo em prol da mera diversão. Tome-se de exemplo a primeira estrofe do magnífico poema De Santo André ao Campo Limpo: O Brasil: «esta manhã está linda / sob este sol que desliza / sobre os capôs dos carros / a quentura alastra por todo o ar / a imundície desta cidade / (e depois de passar por três, / quatro, cinco mundos diferentes / no estômago carcinomatoso da mesma cidade, / uma pergunta põe sal no café: / que tipo de futuro tem um país como este?)» (p. 28). Há uma dimensão política nesta poesia que não pode ser negligenciada, ainda que a mesma não se inscreva em combates específicos. Neste sentido, pode até concluir-se ser a poesia política de uma geração desencantada com os formatos da actividade democrática vigente: «em tempo de eleição / vomitar tornou-se uma higiene» (p. 30). Por outro lado, esta dimensão política não se sobrepõe à experiência individual e lírica do mundo. A resistência pode ser do indivíduo para consigo mesmo numa arena onde a maior ameaça é a consciência do real e do mundo. Vislumbramos isso mesmo no segmento 5n do poema sequencial De Mãos Dadas no Fim do Mundo: «há a chuva guardada sobre a cidade / - no mais é espera e ofício - / há o itinerário (repetido) dentro do ônibus / coisas para parecer coisas / tosses mau hálito / existência conjugada // muitas vezes o olhar tem peso / o vazio num dobre de cor / não sinto nada e, às vezes, / acho que isso é amor» (p. 49). Poesia quotidiana, por certo, mas naquele sentido que Alexandre O'Neill (n. 1924 – m. 1986) lhe conferia. Isto é, poesia que parte do senso comum, sem preconceitos nem estereótipos de universalidade, mas que, por isso mesmo, alcança a ciência dos dias em rasgos e em observações capazes de transcender os dias para se instalar no tempo onde manda a eternidade. Fique um poema para reflectirmos sobre o assunto:

TEORIA DA POESIA

jamais deixaste de estar
aqui — pensei quando
folheava o livro que
nos levou àquela
adega onde
flutuava
um hálito vínico
por todo o ambiente e
lembrei-me de
Roberto Bolaño buscando
desesperadamente
no meio do caos e da beleza
um orelhão para que pudesse
falar com sua amada
quando tudo existe com mais sabor
e tudo o que lemos
de projeto lírico mais anárquico
nos leva não ao que é jaz
mas ao mais do mais
da atenção à tensão que
nos acorda de
um pesadelo e
com os punhos cerrados
os dentes trincando
levanto em meio à tempestade e
troco o casco do barco
no meio do oceano
se imaginássemos araras azuis
ou elefantes brancos
pesaria sobre nosso crânio
menos tradição?
necessito apenas de ar e
saliva (a minha misturada à tua)
o canto raivoso dos anjos
faz referência a qual parte
impossível do teu corpo?
tudo é perda
não adianta nada
para que continues diva
dádiva ávida da vida
tento organizá-la
na ausência insuportável
de sentido em estar aqui,
nesta alegria esfolada
- então, cai o pano:
lemos o livro?

Fabiano Calixto, in Equatorial, Tinta-da-china, Abril de 2014, pp. 94-95. (Nota: porque aqui o efeito não é o mesmo, chamo a atenção para as palavras que no poema acima não estão em itálico. Lidas de seguida, formam a seguinte questão: «quando o livro que lemos não nos acorda com os punhos sobre nosso crânio para que lemos o livro?»)

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