domingo, 14 de setembro de 2014

EXERCÍCIOS DE HUMANO


Em qualquer uma das suas aplicações, a palavra exercício remete para uma prática. Habituados a entender o humano enquanto ser dotado de pensamento, podemos, por via associativa, entender os Exercícios de Humano (Abysmo, Maio de 2014) enquanto exercícios do pensamento. O título do volume de poesia que marca o regresso de Paulo José Miranda (n. 1965) à publicação em livro suscita outras analogias. Confrontados com a disposição dos poemas, exercícios numerados de 1 a 101, somos levados a supor uma ritualização da escrita que se afasta da concepção aleatória, caótica e ocasional do poema. Os exercícios não são improvisos, muito menos de estilo. Ainda que possam resultar de contingências imponderáveis, sobrelevam a desorganização dos sentimentos impondo-lhe a organização do pensamento. Este é o principal aspecto que sublinhamos na poesia de Paulo José Miranda, ou seja, o seu apego a uma prática reflexiva que faz o poema resultar mais do pensamento do que da emoção. 
Não quero com isto adoptar barreiras entre as diversas dimensões do ser, que se interligam por vias outrora renegadas mas agora comprovadas. Nenhum pensamento é independente da sensação, nenhuma razão nega a emoção, ambas as dimensões convivem sob uma mesma ordem, num mesmo mundo, que no poema surge transfigurada sob a forma de linguagem. Esta poesia, epigramática e de índole aforística, liga-se pois a uma necessidade de reflectir. Não estamos unicamente num domínio testemunhal do tempo nem da transfiguração dos dias, não estamos no domínio da confissão nem do apontamento diário, não estamos no domínio lúdico e humorístico da sátira política ou da auto e hetero ironia. Não estamos, definitivamente, no domínio da lamentação comezinha. Estamos no domínio de uma prática poética que acaba por ser uma interrogação sobre si mesma, na medida em que aprofunda a essencialidade da linguagem questionando o lugar da humanidade. E esse lugar aparece-nos obsidiado pelo tempo, umbilicalmente ligado à noção da morte, mas colocado numa encruzilhada onde as ideias de Natureza e de Deus parecem ainda ser os pesos que (des)equilibram o humano no seu contexto existencial. 
Podendo ser repensadas e redesenhadas na relação que estabelecem entre si através do ser humano, as ideias de Natureza e Deus (as maiúsculas são minhas) manifestam-se por vezes em confrontos violentos que o próprio prosaísmo dos dias releva. A necessidade, o trabalho, a obrigação, a sobrevivência, são aqui elementos fundamentais que exclamam as contradições de uma eventual unidade entre o profano e o sagrado e que a perturbam. Veja-se, por exemplo, como um parto aparece arrostado no Exercício 9 (pp. 16-17):

na tua origem
está um líquido viscoso
esbranquiçado e sujo
invadindo o ventre de alguém

transtornada de luxúria
e de palavras mágicas
dentro do corpo a sujidade infecciona
e a carne incha como um furúnculo
por longos meses de febre e luta

e um dia a sujidade invade o mundo
nua coberta só de sangue e plasma
aos gritos
sem nada e sem saber nada
sequer uma palavra

uma lâmina afiada confere-te individualidade
lavam-te o corpo põem-te um seio na boca
dão-te um nome
passas então a existir

tendo como futuro breve um deixar de ser
no estômago destes monstros
como não ver aqui o início da música
o início da escrita
o combate
entre a resistência da matéria e a acção do espírito

como é belo e terrível o final do frio

Este «combate entre a resistência da matéria e a acção do espírito» é o que desde sempre pontua a poesia de Paulo José Miranda. Curiosamente, mas julgo que não por acaso, a este poema segue-se um Exercício 10 de página em branco. Outro há, o Exercício 18, que repete o vazio da página, conquanto neste vazio possamos ver e entender a pausa ou o momento de suspensão que une a elevação à queda. É importante referir que não há nestes registos poéticos preocupações nítidas de seduzir o leitor com imagens convencionais ou truques retóricos, sendo mais certa a urgência de abrir o discurso a uma exigente prática do verso enquanto capacidade de síntese. É verdade que, por vezes, parecemos atraídos para uma simulação de profundidade sobre as inevitáveis banalidades do dia doméstico, com questões e problemas que não podem ser respondidas — ou podendo, não devem — no tom sentencioso dos mestres. Cabe ao poeta ultrapassar a sentença, desbravando caminho para que livremente a palavra faça estremecer, e não adormecer, o leitor. Ora, esse estremecimento é frequente nestes exercícios. E isso é o que mais podemos deles esperar:

EXERCÍCIO 89

é fácil chegar ao fim da vida
mas leva o seu tempo

deveria ser esta a máxima
inscrita no altar de uma escola de línguas

mas ao invés disso
anotam-se palavras sem serem escritas
cortadas pela metade
por um terço
por um quarto de palavra
imagine-se aqui os bárbaros pilhando cidades
lacerando o gado destruindo livros

não se sabe ainda com precisão se a fala é pior
nem sequer o que seja isso a fala

diz hoje o mundo
com sua fortaleza coroada com a arrogância do presente
que a sua moeda preciosa
não é dúctil nem dourada
apenas brilhante e maleável
preciosa não precisa
as missangas a comunicação

havemos de retornar às árvores
dançando de ramo em ramo
fazendo-nos entender com esforçados risos
alguns paus e pedras nas mãos
e desconhecendo por completo o mistério
que fez de nós sua morada

o belo deus da linguagem



Paulo José Miranda, in Exercícios de Humano, Abysmo, Maio de 2014, pp. 103-104.

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente leitura interpretativa de um excelente Humano!
Se eu soubesse dizer assim assim diria.

Imf