Fala-se
amiúde de uma América pobre, de rios poluídos e com ruas repletas de gente sem
casa, a América dos desempregados, das empresas falidas, das cidades fantasma,
uma América violenta, sem rei nem roque, algures perdida entre um sonho
desfeito pela realidade e uma realidade desfeita pelo desencanto, a América da
sobrevivência, estreitos caminhos para o crime, esquinas de maldade, fantasmas
que cambaleiam, corpos que se arrastam, a América dos biscates, da exploração
de mão-de-obra barata, das prostitutas, das milícias, uma América cujos traumas
se reflectem em famílias disfuncionais, espaços desorganizados, uma América
desarrumada. O bas-fond desse Novo Mundo entretanto envelhecido é-nos
imaginável, mas raramente temos dele uma transfiguração realista. Aos livros e
ao cinema vamos buscar histórias que o representam, com maior ou menor
proximidade e autenticidade. Difícil é senti-lo como sentimos as nossas
próprias misérias, ou seja, sem censura nem comiseração, elaborando, tanto quanto
possível, o entendimento de algo que nos parece sempre incompreensível. Joe é
uma notável recriação deste mundo umbroso, e isso deve-se à capacidade de David
Gordon Green para filmar sem distracções nem contemplações.
A personagem de Nicolas Cage, que oferece o título ao
filme, podia ser a da canção que Jimi Hendrix imortalizou: um indivíduo em
estado de sítio emocional, contendo uma fúria, uma raiva, uma violência que
pode a qualquer instante espoletar. O encontro com o jovem Gary, vítima de
violência doméstica, é a faísca que ateará a chama. Tye Sheridan interpreta
este jovem, o mesmo Tye Sheridan que já nos tinha surpreendido em The Tree of
Life, de Terrence Malick, e surge como contraponto ideal ao musculado e tatuado
Cage. Em Gary encontramos o autodomínio que Joe se esforça por conquistar. De
Gary esperamos que se revolte, de Joe esperamos que consiga conter-se. A fragilidade
de um é a virilidade do outro. Dão forma a uma relação extraordinariamente
complexa onde nenhuma lei, nenhuma regra, nenhuma certeza podemos asseverar
sobre as vantagens do autodomínio e do autoconhecimento. E entre ambos temos o
pai de Gary, soberba “interpretação” de um tal Gary Poulter. As aspas têm a sua
razão de ser. Gary Poulter era um sem-abrigo na vida real recrutado para o filme por uma equipa de
castings. Faleceu pouco depois das
filmagens terem terminado, não tendo oportunidade de apreciar na tela o seu excelente,
perturbador e comovente desempenho. Presa do álcool, esta perversa personagem actua
impelido por um vício ao qual não consegue resistir. Mata por uma garrafa de
vinho, mas beija a sua vítima. Odiamo-lo, mas somos incapazes de o desprezar.
Talvez ele seja a árvore velha que importa cortar para que outras árvores
floresçam. Esta bela metáfora que o filme explora exaustivamente tem na sua
origem uma perspectiva discutível sobre aquilo a que chamamos natureza humana. As
cenas filmadas no meio da floresta, com um grupo de trabalhadores a envenenarem
árvores velhas para que possam vir a ser abatidas, permitindo assim a plantação
de novas árvores, são especialmente reveladoras. Podemos ter da humanidade a
mesma percepção que temos de uma floresta? Talvez estejamos a extrapolar os propósitos
do filme aludindo aos problemas que o seu visionamento nos coloca. Na
realidade, são problemas nossos que o filme apenas desperta. Não são
necessariamente questões inerentes a uma narrativa onde o conceito de família
é o centro a partir do qual tudo se desenvolve. Entre posturas
reverenciais e um total desrespeito pelas convenções, estas personagens
encontram-se algures entre o banco da vítima e o banco do réu. Veja-se, por
exemplo, como Joe é implacável para com os homens que com ele trabalham, mas
não consegue respeitar as figuras da autoridade e da lei. Veja-se como o jovem
Gary se perde entre a vontade de matar o pai e a incapacidade de lhe fazer
frente. Veja-se como o pai de Gary termina com uma vida que, afinal, até para
ele já não era suportável. Não se trata de contradições, as pessoas são assim mesmo. A
sua coerência reside na forma como abrigam estes conflitos, estas disputas
íntimas, este desassossego.
Sem comentários:
Enviar um comentário