Durante muito tempo foi para mim um mistério como certas
pessoas chegavam a certos lugares. Os anos vão dando experiência. Hoje já só é
para mim um mistério como certas pessoas se vão mantendo em certos lugares, mesmo dando provas cabais de que são autênticos pategos. Caso de bradar aos
céus é o do arquitecto. Quando comprava o Expresso e ele por lá andava, de
quando em vez tentava ler-lhe meia dúzia de linhas seguidas. Desistia prontamente.
Nunca ninguém me fez desistir tanto, juro-o pela saúde das minhas filhas.
Quando começo a ler, gosto de chegar ao fim. Mas naquele caso era impossível.
Nada fazia sentido, era tudo uma confusão de vacuidades e imbecilidades sem
justificação. Deixei de comprar o Expresso quando o tipo ainda lá estava. Nunca
mais contribuí com o meu tempo para a causa, embora tenha reagido a duas
crónicas que o tipo vomitou sobre homossexuais e classe média. Foi assunto de
blogaria e eu meti-me ao barulho em tom de brincadeira. A verdade é que, por
mais que custe admiti-lo, a nossa sociedade tresanda de tipos com a consciência
alarve que o arquitecto denota. Isto está muito para lá de partidos e de
inclinações, não tem que ver com ideologia. Nada. É o zero absoluto da
ideologia. As pessoas podem escandalizar-se agora com o livro, vão deixar-se
intoxicar pelas opiniões que inúmeros amigos dos visados facilmente emitirão e
publicarão nos mais diversificados canais de difusão opinativa onde têm lugar
cativo. Mas talvez pudessem aproveitar a oportunidade para exercícios de
consciência. Uma pergunta que me assalta é quanto das nossas vidas foi
investido no passado para que não chegássemos a este estado de coisas? A imprensa,
de um modo geral, não tem sabido resistir à tabloidização. Há dias comentava
com uma amiga a impressão que me faz olhar para as bancas de jornais e de revistas
em exposição num qualquer quiosque, cheias de notícias sobre gente acerca de
quem não julgo haver nada de interessante a saber a não ser as plásticas que
fizeram, os escândalos que alimentam, a roupa que vestem, as modas a que
aderem, o que compraram, quem lhes morreu… Ou seja, a não ser matérias sem interesse algum. Com o contributo de todos, incluindo
os que se dizem contra, a vida privada deixou de o ser. Basta percorrer o
Facebook e maravilharmo-nos com a partilha em condomínio semiprivado de filhos,
refeições, banhos, jantares, com este em relação com aquele, aquele desamigando
aquela e por aí adiante num frenesi sem par de partilhas onde o elo mais fraco
é o mais esvaziado dos valores: a amizade. Sobre a infantilização desta
sociedade, assentada no artifício, demitida do pensamento, sem espírito crítico,
avessa à onerosa tarefa de pensar e de aprofundar, já muito foi dito. Temos
vindo a fazer do mundo uma comédia sem nos apercebermos do quão trágico isso é.
Não se reivindica sisudez nem se esperam moralismos bacocos, antes pelo
contrário. Mas há pessoas que têm especiais despesas nesta matéria. Escrevem em
jornais, andam pelas televisões, saltam para as rádios, permitindo que à sua
volta o ruído da estupidificação ecoe sem grito de revolta. Sem contraditório.
Faz-se de tudo um espectáculo para consumo interno e divertimento geral, o que
até nem seria mau se não afectasse tão terrivelmente a vida de tantas pessoas.
E afecta de muitas maneiras. As trivialidades que poderão estar plastificadas no
livro do arquitecto não são, perdoem-me a discordância, um mal em si. São mais
do mesmo. Só que agora temos políticos onde antes tínhamos concorrentes do Big
Brother. Não me interessa a vida sexual dos políticos, assim como não me
interessa a vida sexual de quem quer que seja. Curiosidade zero. Na realidade,
o que o arquitecto faz com o apoio da sua editora, chamem-lhe crime ou outra
coisa qualquer, é responder a uma necessidade de mercado, tal como o pasquim da
manhã responde a necessidades de mercado, tal como a maioria dos fazedores de
opinião respondem a necessidades de mercado. Andam todos há séculos a responder
a necessidades de mercado. Só uma réstia de hipocrisia moral é que mantém os
canais eróticos em sinal fechado, porque na realidade eles respondem
precisamente às mesmas necessidades de mercado que o livro do arquitecto ou os
trinta minutos de telejornal entre chamas, no meio de fogos, a encher chouriços
com o desespero das populações afectadas. Faz-se notícia em horário nobre do
dabbing do Marcelo, atribuindo-lhe tanta relevância como, por exemplo, à
aquisição da Monsanto pela Bayer. Ora, qual é o interesse que uma notícia como
a aquisição da Monsanto pela Bayer pode ter para os telespectadores de
telejornais ou para os leitores de jornais ou para os ouvintes de rádio? Não
sei, mas espero que me expliquem. Só não espero é que se ponham para aí a
discutir o assunto como se têm ocupado do livro do arquitecto, essa aventesma
do jornalismo português a quem ainda há-de ser atribuído um Nobel da imbecilidade.
9 comentários:
Concordo com o texto. Mas o "assunto" da compra da Monsanto pela Bayer é relevante. Neil Young chegou a compor uma canção contra a Monsanto (Monsanto Years), que monopoliza ao menos 25% do mercado mundial de sementes e pesticidas. Suas práticas são terríveis. Em países subdesenvolvidos, por exemplo, há relatos de pequenos e médios agricultores que perderam suas propriedades devido a processos milionários movidos pela Monsanto sob a alegação de supostas quebras de patente de sementes (algo absurdo por si só - patentear sementes); ou melhor, suposto uso de sementes patenteadas que, na verdade, a própria Monsanto cedeu em algum momento. E assim a Monsanto vai "adquirindo" cada vez mais propriedades e monopolizando cada vez mais o nicho do mercado. Há também estudos como o referido neste link: https://realagenda.wordpress.com/tag/a-monsanto/
Sementes transgênicas são desenvolvidas em laboratório com fins tais como tornar estéreis seres humanos e conter o processo de superpopulação global. Entre muitas outras práticas inaceitáveis e absurdas. É só inserir as palavras certas no Google e dedicar alguns minutos à leitura para ter a exata noção do tamanho dos absurdos cometidos pela Monsanto com a anuência dos governos. Há campanhas sem fim colhendo assinaturas contra as mais diversas práticas da Monsanto em um sem-número de países. Agora isso tudo será monopólio da Bayer. Da empresa alemã Bayer. Acho pertinente a notícia. Uma daquelas raras notícias pertinentes com as quais se depara quem acompanha telejornais, periódicos e afins. Mas as implicações da notícia realmente só se tornam claras quando se tem uma ideia do que é e faz a Monsanto.
Seguem mais alguns links, melhores, pois pesquisados mais demoradamente, se houver interesse de se aprofundar no assunto:
http://www.agrisustentavel.com/trans/crisanto.htm
https://www.youtube.com/watch?v=sWxTrKlCMnk
http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2010-05-18/agricultores-reclamam-que-monsanto-restringe-acesso-sementes-de-soja-convencional
http://averdadenomundo.blogspot.com.br/2012/04/monsanto-quer-monopolizar-agricultura.html
http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/Monsanto-a-semente-do-diabo/3/31252
E muitos outros...
«Mas o "assunto" da compra da Monsanto pela Bayer é relevante. »
Eu não digo o contrário.
Entendo que para "os telespectadores de telejornais ou para os leitores de jornais ou para os ouvintes de rádio" a notícia da compra da Monsanto pela Bayer pode não parecer de interesse. Mas deveria ser tal como deveria ser de interesse saber qual é a comida que consumimos. Pois é a partir das sementes que sairão do laboratório de uma farmacêutica que a comida nos chegará aos pratos. Ou boa parte da comida que levamos à mesa. Comida que nem alimento é considerado em certos países, ou mesmo pelos órgãos "competentes" da ONU, para que não seja rotulado como transgênico e passe despercebido aos olhos do "consumidor".
Relendo entendi melhor o que quiseste dizer. Mas que a notícia deveria ser do interesse dos leitores e telespectadores e ouvintes, deveria.
Pois, mas para tal era preciso os "media" cumprirem a sua função, fazendo dessa notícia realmente notícia e não nota de rodapé. Como foi o caso.
O pior é que o "media" que quisesse torná-la realmente notícia não encontraria veículo nas comunicações de massa disposto a "comprar a briga", em outras palavras, noticiar. No Brasil e, creio, em todo o mundo, também não passou de nota de rodapé.
Acho que o Henrique quis dizer que aquilo que efetivamente deveria ser notícia, porque importa, porque nos afecta diretamente - afinal todos comemos - seja agora ou daqui a 20 anos, foi tratado como assunto marginal.
E é por isto que deixei de ver noticiários fsz tempo...
E se não me engano a Monsanto já tem atividade no Alentejo. Notícia no jornal Mapa, creio.
Sobre sementes, há um artigo publicado na revista Visão, datado de Abril ou Maio deste ano, que é assustador, sobre tudo.o que tem a ver com o controlo e homogeneização das culturas,.com os consequentes perigos que isso acarreta.
Sim, Ivo, era isso que eu pretendia dizer. Aliás, é isso que está escrito.
Enviar um comentário