Dois livros de Catarina Costa (n. 1985) publicados quase
em simultâneo reclamam para a sua poesia uma atenção que seria indevido não
oferecer. Chiaroscuro (Douda Coreria, Julho de 2016) e A Ração da Noite
(Setembro de 2016) estão longe de ser estreias, apesar da juventude da autora.
A estreia sucedeu em 2008, com Marcas de Urze (Cosmoroma), ao qual seguiram-se Dos Espaços Confinados (Deriva, 2013) e Síndrome de Estocolmo (Textura, 2014).
A poesia de Catarina Costa revelada nestes dois últimos livros oferece
continuidade a um trabalho de apuramento da relação estabelecida entre palavra
e imagem, problematizando em consequência desse labor as possíveis conexões do
texto com a realidade. O próprio título Chiaroscuro remete para um jogo de
contrastes entre luz e sombra, sendo perceptível nos poemas que estes
contrastes incluem, por sugestão e comparação, oposições do presente face à
memória, dos espaços físicos e materiais face aos espaços da imaginação, em
suma da realidade face à palavra.
Ambos divididos em três partes, não é apenas esse
pormenor organizacional que aproxima os dois livros. Neles reconhecemos igualmente
uma obsessão pelo anómalo. Se no primeiro conjunto de A Ração da Noite,
intitulado Neoplasias, são as disformidades da matéria corporal que estão em
evidência, sendo os poemas ocupados por termos tais como verruga, inchaço,
tumor, ferida, chagas, doença, dor, num complexo lexical que reforça com
extrema violência e de um modo algo perturbador a dimensão patológica que
enforma os poemas, já em Chiaroscuro as disformidades da matéria dão lugar a um outro plano do anómalo, o qual seja o da desfiguração e da
desfocagem do olhar. A ideia de desfocagem que percorre os textos faz-se
acompanhar das opacidades que dificultam a relação do ser com a memória, da
memória com a realidade, da realidade com o pensamento, deste com a linguagem,
instalando entre todas estas dimensões um factor desorientador da verdade, a
qual resultará invariavelmente sob a forma fantasmagórica de uma indefinição e
de um desfasamento.
Deste modo, seja quando observa uma fotografia de um
jornal antigo, quando recorda as impressões causadas pela observação de Las
meninas aos 10 anos, quando recorda o bolo de aniversário aos seis anos ou
quando revê o registo fotográfico de uma máscara de carnaval aos 11 anos, as memórias aparecem invariavelmente «envoltas num manto nevado» e o que emerge desse manto
é a declaração de uma mentira: «São mentiras infantis, pequenas coisas / que me
vejo na obrigação de esconder: / por exemplo um espelho que quebrei / e que
agora distorce de tal modo o que espelha / que não mostro a ninguém, / apesar
de não querer que os meus dedos / sejam os únicos a tocarem o rebordo». Sublinhe-se
nesta estrofe, além do mais, a “obrigação de esconder” a par de um desejo de
partilha acompanhado por uma vontade: «não querer que os meus dedos / sejam os
únicos a tocarem o rebordo». Não por acaso, a segunda pessoa que surge a
espaços nos dois livros parece assumir, por vezes sem sucesso, esse papel de
confidente, ao qual caberá contribuir para o degelo (título do terceiro
conjunto do livro A Ração da Noite) de uma intimidade recalcada, o das memórias
«envoltas num manto nevado».
Eminentemente psicanalítica, a linguagem destes poemas extrema
as faltas de um sujeito poético marcado pela carência e pelo insucesso da
poesia enquanto catarse, pois também o poema detém filtros que obstaculizam a
revelação: «és carne desamparada / enquanto o sono não desce» —
diz-se assim mesmo, a páginas 43, no poema que oferece título ao volume A Ração
da Noite. Não obstante, sobressai destes trabalhos do olhar uma problematização
do ser que de algum modo realça a sua natureza complexa. Ainda que a espaços a densidade
de alguns poemas dificulte essa percepção, desviando-nos ou distraindo-nos daquele
que possa constituir o seu principal foco, a impressão final é a de uma viagem
mais reflexiva do que contemplativa pelos interstícios da mente humana.
Porventura num comboio por baixo da terra:
Um comboio por baixo da terra
vamos num comboio por baixo da terra
anunciaste, e eu incrédula, a imaginar
uma locomotiva feita máquina escavadora
a esburacar a terra à sua passagem
temia não um descarrilamento, acidente
demasiado técnico, não um despenho,
sendo ainda cedo para imaginar o primeiro,
mas que a aceleração nos projectasse
para onde fôssemos soterrados
hoje parada à beira das linhas assisto
a um enterro de cada vez que passa o comboio,
um repisar infernal ao fundo da terra,
e resguardada estou da intempérie dos céus
o que quer que tenha caído já foi esmagado
mil vezes em síncope cronometrada,
o metropolitano todo ele uma mesma escavação,
ao nível dos mortos
vamos num comboio por baixo da terra
e eu com medo, sem ainda saber que não haveria
viagem mais segura do que a dessa manhã
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