A Jorge de Sena
Estão podres as palavras, Jorge,
de passarem por sórdidas mentiras...
Assim o dizes e não pões nem tiras,
ao rijo inventário do teu denso alforge
de palavras talhadas em duro corno,
a doçura de uma vírgula que pudesse
iludir a corrupção que aqui se tece,
minando de cuspo a pureza em torno.
Mentem os que falam e os que se calam,
mentem os que ficam e os que se vão,
agitam-se os cobardes em nova encarnação
desta coragem com que já abalam.
Que merda de gente, ó filho de Camões!
Junto de um seco, fero, estéril monte,
para onde me retiro, olho e vejo a ponte,
por onde fogem os sonoros campeões!
Usá-las puras, as palavras — dizes...
Que pureza a desta língua envilecida
por mil flexões de prostituta ardida?
Língua coleante, dupla, rica de matizes...
Possam as palavras ficar enfim erguidas,
um dia, como torres, entre céus e terra!
Faremos, então, com elas, a nossa guerra
aos heróis que hoje confundem as saídas.
Lourenço Marques, 1974
Eugénio Lisboa (n. 1930), in A Matéria Intensa (1985). «Crítico e ensaísta dos mais lúcidos, argutos, desassombrados e escrupulosos de toda a nossa história literária (...), Eugénio Lisboa só recentemente, com estes densos poemas de A Matéria Intensa — livro em boa hora galardoado com o Prémio de Poesia Cidade de Lisboa — se revelou também um poeta já e doravante inconfundível, cuja pessoalíssima voz — a um tempo áspera e calorosa, austera e fremente, patética e todavia com inesperados acentos lúdicos — como que de há muito fazia falta (disso agora nos apercebemos) no coral da poesia contemporânea, aliás bem rico de outros valores, mas onde não costumam abundar os referidos atributos» (David Mourão-Ferreira, in Colóquio Letras).
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