Passados quase oitenta anos sobre a primeira edição de
Nome de Guerra, esboçado, alinhado, escrito em 1925, podemos hoje garantir não
ter sido por acaso que tal romance se tornou um símbolo maior do modernismo português.
Não fosse por outra razão, bastaria a José de Almada Negreiros tê-lo escrito
para ficar na história da literatura portuguesa. Os sessenta e quatro capítulos
desta narrativa, tantas vezes com títulos que são eles mesmos aforismos para a
eternidade, dão-nos na figura de Antunes o retrato vivo de alguém que entra na
idade adulta pela porta grande de uma íntima sinceridade. Toda a gente sabe
hoje do romance entre Antunes, provinciano deslocado na cidade, e a jovem
Judite, rapariga de clube nocturno com dezanove anos de mentiras, aldrabices,
enganos e ilusões prestadas ao mundo e, por consequência, a si própria. De Maria,
a jovem enamorada de Antunes que se ficou pela província numa vã esperança de
amores futuros, pouco se fala. A notícia da sua morte actua sobre o amante longínquo
como uma espécie de epifania. A ausência da sua figura será determinante para
Antunes, sobretudo naquele momento de descoberta interior para lá do outro, para lá do que os outros pensam, para lá da experiência social, para lá
da sociedade.
Neste livro os planos são claros como raramente se nos
apresentam. A sociedade é o palco do fingimento, das intrigas, é a mesa de jogo
onde o vício impõe o bluff como verdade. Mas dentro do indivíduo, dentro do
homem que se afasta e isola, a verdade surge na forma de drama, é uma tragédia
íntima, pessoal, singular que já nada tem de logro ou fingimento. É uma verdade
superior às circunstâncias, uma verdade que chega à consciência com a raiva de
quem descobre nas suas fraquezas uma força inédita:
«Ele queria a verdadeira
mentira, essa que vale tanto de noite como a verdade de dia. Mas por mais que
fizesse não conseguia deixar de ver diante de si em todos os homens e em todas
as mulheres caricaturas grotescas, estrangeiras, tortas, incompreensíveis,
inúteis, vivas, em carne e osso, como gente, hediondas, malditas, metamorfoses
que não prosseguem, que ficam informes, aos pedaços, mal feitas, mal
fabricadas, erradas, empecilhos, envenenadores da memória, mascarados, oiro de
cenografia vista ao pé, papelão a fingir carne, barato e sem ilusão. Eles
tinham esgotada a imaginação: incapazes de ironia e de optimismo, esmagados pela
realidade, esborrachados pela vida, impossibilitados, estampados, inválidos,
parados. A imaginação reduzida à fantasia, o artifício limitado à mecânica. Nem
verdade nem mentira, nada! Nem desequilíbrio nem erro, nada! Bonecos,
fantoches, sem saída, corpos sem alma, almas que morreram primeiro do que os
corpos! Gente que ia de passagem e ali ficou para sempre. Copiam, repetem,
imitam, representam, mas de repente a sina escurece outra vez. Ficam os foles
em vez da respiração» (Assírio & Alvim, Setembro de 2001, p. 112).
Mais do
que os manifestos, este é o autêntico manifesto do modernismo português. A demanda
da verdade traz para dentro dos livros a noite lisboeta, as varinas, o comércio
nas ruas com suas tabuletas, as prostitutas, os palermas e os malandros, o
crude das relações humanas, a besta domesticada, adormecida, maquilhada,
escondida no mais fundo de cada ser, faz vir à tona o gene, o ADN, de uma
humanidade mais do que contraditória, problemática, atirando logo de intróito às
trombas do leitor a pergunta que se impõe: «Haverá assim necessidade da mentira
para defender a verdade?» (idem, p. 13) Platão, no idealismo da sua República,
responderia que sim, quando necessário. A mentira útil concilia-se amavelmente
com a Verdade Absoluta no nervo da lei, mas Almada transcende o idealismo para
mergulhar na terra. O modernismo é esse salto mortal no escuro da vida, tal
como Antunes no alto da prancha da paixão mergulhou para o vazio e ficou a ler o destino nas estrelas.
O nome de guerra já não é o de ataque, também não é o
de defesa, talvez seja o cordão umbilical do pseudónimo que descobrimos nas
entranhas do ser. «Há gente com muita vida e que não tem vida de seu»,
constata-se, ao mesmo tempo que Antunes confessa não temer a vida como teme não
vivê-la. Os homens não mudam assim tanto ao final de oitenta anos que possa a
mudança desactualizar o romance maior de Almada. Observando a actualidade de
uma janela, facilmente concluiremos serem mais as Judite do que os Antunes nas
ruas. Os problemas mantêm-se, a mania dos varrer para debaixo do tapete
glorifica os dias, passados na imensa maioria dos seus minutos a fingir que se tem
o que na realidade não se é. A confusão entre o ser e o ter vem a propósito,
como sempre nestas matérias. O exibicionismo material garante estatuto, mas não
confere verdade alguma.
Está por escrever outro romance, aquele que se
questione acerca do porquê da verdade. Afinal, precisamos da verdade para quê? Não
nos chega a ilusão pura, isto é, a ilusão sem consciência de si mesma? Andar ao
engano será assim tão mais doloroso do que ver por olhos próprios as
rugosidades do destino? A certa altura, debilitado pelas amarguras da paixão, o
nosso Antunes fala de si para si mesmo: «O mais difícil era ficar outra vez
ignorante: aquela genial ignorância das idades onde se começam todas as coisas
deste mudo». Felizes os néscios e os parvos, as crianças e os loucos, para
sofrer basta-nos abrir os olhos. Que dormir seja o remédio. Ver o longe
vendo ao longe é olhar para dentro e descobrir-se vazio, desprovido de tudo
quanto faça sentido a um homem na terra, vazio e oco como um tronco podre. Desse
tronco não brotarão frutos, ele é apenas uma vida morta.
Ora, o que se quer é
uma vida viva, uma vida vivida sem medo de ser julgada, o que se quer, afinal,
não é andar às cegas como os da parábola de Bruegel na direcção do abismo. Mais tarde ou mais cedo, por ele seremos engolidos. O que se quer é arrancar
da vida um fruto maduro para depois degustá-lo. «Ninguém pode escolher o que
connosco se passa até à chegada da nossa consciência. E depois?» Depois é ver a
vida compensada. «A pessoa verdadeira prefere inimigos autênticos a admiradores
sem pontaria». Duvidam?
2 comentários:
Gostei tanto de ler o " Nome de Guerra" :) saúde
É uma bela malha, é. Saúde,
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