domingo, 7 de outubro de 2018

BOLSONARO E RONALDO



Como dizê-lo? Talvez o problema esteja no tempo. Quero dizer, não no clima, mas na nossa relação com o tempo, isto é, com a forma que damos ao tempo. As "altercações climáticas" também estarão relacionadas com o mesmo problema, mas concentremo-nos nisso do tempo. Imaginemos que estamos na sala de espera de um consultório, pegamos numa revista, pode ser a Maria, e começamos a folheá-la. Fazemo-lo para passar o tempo, para que o tempo passe depressa, para nos mantermos entretidos enquanto a assistente do médico não chama por nós. Acontece que ultimamente, de há uns tempos a esta parte, grande parte da nossa vida é passada a folhear revistas ao acaso, como a Maria ou a Nova Gente, para passar o tempo. Grande parte do tempo de que dispomos é ocupado a folhear revistas, a passar os dedos pelas imagens, a ver fotografias, a ler títulos, letras grossas desprovidas de nutrientes básicos, apenas gordura e mais gordura e mais gordura. 


Não duvido que este modus vivendi seja de algum modo responsável pela ascensão do chamado populismo, que mais não é do que entretenimento para quem passa a vida a folhear revistas no consultório. A guerra passa a ser entre o entretenimento e a ideia de fake news, que mais não é do que um eufemismo para desligar. Sim, desligar. Desligar o pensamento, isto é, aceitar qualquer frase, imagem, notícia como sendo um retrato da realidade, como sendo possível. A guerra já não é entre o verdadeiro e o falso, pois o verdadeiro saiu do mapa. A guerra é mero entretenimento. O que está em causa é termos deixado de parar, termos abdicado do ócio, aquele ócio que levava ao pensamento e do pensamento nos levava à crítica e da crítica à desconfiança. Hoje não desconfiamos de nada porque desconfiamos de tudo, passamos uma grande parte, uma enorme parte, a maior parte do tempo de que disporíamos para pensar a evitar o pensamento, folheando revistas, esfregando os monitores onde a ilusão medra e o falso desafia. Evitamos o pensamento e a reflexão para andarmos entretidos.

Trump é o fenómeno dos fenómenos nesta espécie de novo mundo, Bolsonaro há-de seguir-se.  Qualquer pessoa que o ouça, isto é, qualquer pessoa que pare para o ouvir, facilmente reconhece um burgesso a debitar preconceitos, estereótipos, lugares comuns. O que ele diz é o que dizem muitas pessoas sem a responsabilidade de governar países inteiros. Às pessoas a gente habitua-se a dar desconto, andam pelas caixas de comentários dos weblogs, dos jornais, das revistas, das televisões, dos órgãos de comunicação social, como podiam andar na taberna onde exibem o machismo, o racismo, a xenofobia e, hélas, a ausência de pensamento crítico, isto é, de tempo, porque todo o tempo de que dispõem é ocupado a fintar o pensamento, a distraí-lo, a “espetacularizar” em vez de especular. 

A tal horda de gente vem juntar-se uma outra, supostamente mais esclarecida, com a obrigação de ser mais esclarecida porque, supostamente, teria tempo para pensar. Supostamente. Sucede que essa gente, a que damos o nome de fazedores de opinião ou, como agora se diz noutros contextos, influenciadores, ou simplesmente comentadores, essa gente é de tal forma chamada a perorar sobre tudo e mais alguma coisa que fica sem tempo para pensar os assuntos acerca dos quais se vê na obrigação de opinar. Depois damos no triste espectáculo da realidade, onde o mundo se assemelha a um abrigo de alucinados, quero dizer, a um lugar de alucinados à solta dizendo coisas incompreensíveis, corrijo, coisas compreensíveis à luz dos tais taberneiros que por não terem tempo para pensar sempre têm alguma desculpa. 

Exemplo: como desculpar essa gente que perante o actual caso Ronaldo se mete a sentenciar com argumentos que a gente julgava perdidos numa qualquer lixeira medieval? Tipo: pôs-se a jeito (o que, já de si, aceita a tese da violação, desprezando-a por ter a vítima estimulado o crime); ou: é puta (como se por alguém ter a mais velha profissão do mundo devesse estar disponível para todo o tipo de atentados, o que, aliás, seria uma forma de justificar a tortura). Talvez devêssemos começar por fazer notar que Ronaldo é um jovem jogador de futebol que ganha muito dinheiro, que o dinheiro por vezes sobe às cabeças, que nem sempre as duas cabeças de um homem estão devidamente equilibradas. Ou talvez nem seja necessário penetrarmos esses territórios dúbios da psicanálise, mandando alguma, apenas um poucochinho de prudência que concedamos à queixosa o benefício da dúvida como ao acusado a presunção de inocência. Isto de não resistirmos a colocar-nos logo de um lado é um pouco como a conversa supra acerca do equilíbrio entre cabeças. 

Em suma, não vos admireis que Bolsonaro, o tal que defende a tortura, exibe tiques racistas, fala de estupro como quem fala de direitos, acha que a homossexualidade se cura à reguada, julga que as mulheres provêm de espermatozóides débeis, é favorável à pena de morte e etc, etc, etc, não vos admireis que esse indivíduo chegue a presidente do Brasil. Não estais lembrados do triste espectáculo que foi o processo de impeachment de Dilma Rousseff? Julgais improvável que um burgesso chegue ao poder naquele país? Então andais a desperdiçar demasiado tempo folheando revistas. Quando à nossa volta é tudo espectáculo mediático, quando as regras desse espectáculo são a urgência da opinião, o tempo para reflectir foi-se. E quando o tempo para reflectir se foi, tudo é possível. Até um homem ser acusado de violar uma mulher e haver mulheres que o desculpem porque a violada quis deitar-se com o homem numa cama. Trump e Bolsonaro não são, pois, a origem do mal, são a consequência de um mal que é anterior a eles. E esse mal é simples de identificar quando ligamos televisões, percorremos o feed de notícias, lemos os mais populares fazedores de opinião.

2 comentários:

Paulo Costa disse...

O "mal" é milenar, os meios onde se reproduz serão mais ou menos recentes, talvez daí andarmos atarantados. Lúcida análise (comme d'habitude) que dá vontade de reproduzir e fazer ecoar o mais possível, posso?

Anónimo disse...

Olá hmbf,
Não costumo vir muito assiduamente ao seu blogue porque, como muito bem o escreveu, andamos com o tempo demasiado preenchido e ler opiniões alheias esgota o tempo para as nossas. Mas sempre que por aqui passo fico um pouco mais descansada porque ainda há gente por este mundo a tentar endireitá-lo. Obrigado. Ana