A Ordem do Dia, de Éric Vuillard, é um dos melhores livros
que li este ano. Referi-me a ele aqui. Como foi possível o nazismo chegar ao
poder e levar a cabo tudo o que se seguiu? É uma pergunta que se ouve muitas
vezes, como se para ela não houvesse explicação. Mas há. E a mais simples é a
mais correcta: quando o ódio se mistura com o deslumbramento, quando este se
promove com a indiferença, temos uma mistura explosiva. Deslumbramento e
indiferença. Aquele, excitado pelas massas em fúria; este, adormecido pelas
massas resignadas, confortavelmente instaladas, laxistas, tolerantes,
permissivas.
Lembrei-me muitas vezes da fotografia ao alto enquanto lia o
livro. No meio de uma multidão obediente, um homem, com um simples gesto,
mostra que estava do lado certo ao não fazer a saudação nazi quando todos os
outros a faziam. A História mostrou-nos que ele estava certo. Vuillard não fala
daquele homem, prefere lembrar quanto todos os outros à volta dele contribuíram
para que fosse possível o nazismo ascender ao poder e fazer tudo aquilo que
sabemos hoje que fez.
Vuillard lembra os empresários que beneficiaram com o
nazismo, aproveitando a mão-de-obra barata dos campos de concentração, os benefícios
fiscais por terem passado o cheque ao Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães, dito nazifascista, anticomunista, antissocialista.
Vuillard lembra igualmente todos os cidadãos anónimos que se deixaram fascinar
pelo ódio, não querendo ver o que estava à vista de todos, acenando
«bandeirolas que estremecem à passagem do cortejo», e «os padres [que] apelaram
no púlpito a que se votasse a favor dos nazis», e os empresários oportunistas.
A dúvida que coloca já não é sobre como foi possível, pois essa está explicada.
É outa: «Serpentinas, papelinhos, bandeirolas. Que terá acontecido a essas
meninas loucas de entusiasmo, o que terá sucedido aos seus sorrisos? à sua
despreocupação? aos seus rostos tão sinceros, tão alegres! a todo esse júbilo
de março de 1938? Se uma delas de repente hoje se reconhece no ecrã, em que é
que pensará?»
Pois bem, no futuro quero ver-me no ecrã como aquele homem
isolado da fotografia ao alto. Quero não sentir vergonha por ter apoiado quem
prometendo ordem apenas semeou caos, quem prometendo paz o fez apelando ao uso
da força, das armas, quem prometendo países grandiosos o fez amesquinhando
seres humanos. Porque as desculpas não se pedem, evitam-se. E vergonha na cara talvez
não pese tanto quanto orgulho ferido, mas a falta dela transforma o rosto numa
coisa odiosa.
2 comentários:
Agradeço a dica, não conhecia. A este respeito, conheço "Os Carrascos Voluntários de Hitler", de Daniel Goldhagen, que ainda citando por estes dias
" O povo alemão da época não deve ser visto como um fantoche passivo ou vítima aterrorizada por seu próprio governo. Como mostram as ações do alemães relativas a uma variedade de políticas nazistas, eles eram agentes voluntários, fazendo escolhas conscientes de acordo com suas crenças e valores preexistentes e em evolução."
('Os Carrascos Voluntários de Hitler, Daniel Goldhagen; p. 129)
Enviar um comentário