segunda-feira, 20 de agosto de 2018

A ORDEM DO DIA


Segunda-feira, 20 de Fevereiro de 1933. A “nata” empresarial germânica reúne-se secretamente com Hermann Göring e Adolf Hitler, tendo em vista o patrocínio financeiro da campanha nazi. Aquela que foi baptizada como II Grande Guerra ainda não se avista com clareza, mas quem a busque no horizonte não sentirá dificuldades em vislumbrá-la. Os nazis prometiam um regime de aço, o afastamento da ameaça comunista, acabar com sindicatos, «permitir que cada patrão seja um Führer na sua empresa» (p. 23). Os convidados arregalaram os olhos, lamberam as beiças. À mesa estão Gustav Krupp, que anos mais tarde será julgado em Nuremberga por praticar escravidão (é o homem da capa), Albert Vögler, industrial conhecido por temer a ascensão do comunismo, Günther Quandt, o homem do império onde hoje se inclui a BMW, divorciado de Magda Ritschel, que viria a ser mulher de Goebbels. Estão também Friedrich Flick, um dos homens da Mercedes, que, apesar de condenado a 7 anos em Nuremberga, não se livrou de morrer como um dos homens mais ricos do mundo. As contribuições ao Partido Nazi renderam mais de dois milhões de marcos. Só a IG Farben, onde se incluíam a BASF (lembram-se?) e a Bayer, contribuiu com 400000. O francês Éric Vuillard (n. 1968) começa por aqui a sua extraordinária narrativa A Ordem do Dia (Publicações Dom Quixote, Abril de 2018, trad. João Carlos Alvim), Prémio Goncourt 2017. Romance? Novela? Conto? Ensaio? História? Ficção? Pouco importa o género, o tipo, a forma, quando o que está em causa é um belíssimo livro que ler-se-ia de fôlego não fosse obrigar-nos tantas vezes a parar para colocar as emoções e o pensamento em níveis arteriais recomendáveis.
   Primeiro, a promiscuidade entre os mundos empresarial e político a revolutear-nos o estômago. Com consequências por todos conhecidas. Depois, o oportunismo, a avidez, a cegueira de uma ganância transversal. Apanha políticos, ataca indústria e finança, dissemina-se socialmente. Vuillard salta de um episódio para outro, nunca perdendo de vista o propósito de denunciar aquilo que leva ao abismo. Contra as ambições nazis restava ao mundo a oposição internacional. Em vésperas de Grande Guerra, Edward Frederick Lindley Wood, 1.º Conde de Halifax, visitou a Alemanha a convite de Göring. O retrato do encontro provoca-nos asco, o asco das subtilezas políticas, sempre rodeadas de um charme que contrasta com a miséria dos povos. Que terá visto Halifax em Göring? Podia ele ver alguma coisa? Afinal: «Não foi o muito honorável primeiro visconde de Halifax, que, na qualidade de chanceler do Tesouro, se opôs firmemente a que fosse concedida qualquer ajuda suplementar à Irlanda durante todo o tempo em que desempenhou esse cargo? A fome provocou um milhão de mortos» (p. 31). Sempre num degrau acima da realidade, estes agentes políticos a quem a realidade sustenta caprichos, ambições desmesuradas, loucuras, delírios, são tratados por Éric Vuillard sem piedade. 
   Segue-se Kurt Schuschnigg, «o pequeno déspota austríaco» (p. 34), hoje lembrado como «o último chefe de estado austríaco antinazista antes da anexação da Áustria à Alemanha». Como o apresenta o autor de A Ordem do Dia? Fraco, cobarde, esotérico, atabalhoado, submisso, «o pequeno ditador que Hitler tiraniza» (p. 58). Passará a guerra numa prisão nazi, é certo. Libertado pelos Aliados, «tornar-se-á um americano exemplar, um católico exemplar, um professor universitário exemplar, na universidade católica de Saint Louis» (p. 68). Exemplar! Éric Vuillard domina os temas, escreve com aquela simplicidade apenas possível a quem conhece profundamente o assunto a que se dedica, não se inibindo de tecer considerações, de lançar um olhar irónico sobre os podres da política. Leia-se, que merece mesmo ser lido:

«Na época em que era prisioneiro dos italianos, ainda jovem, durante a Primeira Guerra, Schuschnigg deveria ter lido os artigos de Gramsci, em lugar de romances de amor; teria assim talvez dado com estas linhas: «Quando discutes com um adversário, tenta pôr-te na pele dele.» Mas ele nunca se colocou na pele de ninguém, quando muito envergou o fato de Dollfuss, depois de lhe ter, durante alguns anos, lambido as botas. Pôr-se na pele de alguém? Nem sequer vê muito bem para que é que isso serve! Não se pôs na pele dos operários espancados, nem dos sindicalistas presos, nem dos democratas torturados; então, agora, só faltaria mesmo que conseguisse pôr-se na pele dos monstros! Hesita. É o derradeiro minuto da última hora. E, como de costume, capitula. Ele, a força e a religião, ele, a ordem e a autoridade, ei-lo que anui a tudo aquilo que lhe pedem. Basta que não lho peçam com delicadeza. Disse que não à liberdade dos sociais-democratas, com firmeza. Disse que não à liberdade de imprensa, com coragem. Disse que não à conservação de um parlamento eleito. Disse que não ao direito à greve, às reuniões, à existência de outros partidos para além do seu. E contudo, será esse mesmo homem que será contratado, no pós-guerra, pela nobre universidade de Saint Louis, no Missuri, como professor de ciência política» (pp. 70-71). 

   Lembra-vos alguma coisa? Notam alguma contradição? A Ordem do Dia parte de acontecimentos históricos, de uma história relativamente recente, num período que é o daqueles que caminham para o precipício. Sabemos dos factos, conhecemos a catástrofe, ficamos a perceber melhor como ela foi sendo anunciada «com pezinhos de lã», envolta no descaso geral de agentes políticos, económicos, financeiros, com a capacidade de contaminar toda a sociedade civil. À pergunta “como foi possível?”, podemos hoje responder “foi possível com conformismo, passividade, indiferença”. O que não é o mesmo que dizer “foi possível com desinteresse”. Pois, como prova a reunião secreta de 20 de Fevereiro de 1933, interesses havia muitos. Uma Europa a dormir foi recebendo com salvas, mais ou menos encenadas, os actos da catástrofe. Como se estivesse a assistir a uma peça de teatro em actos sucessivos onde os mortos eram reais, onde a morte, a tortura, a fome, a miséria, era real. Ou seja, não estava um degrau acima. A conclusão vale tanto sobre o tempo que passou como para o presente, como facilmente entenderá quem não faça como "os três macacos japoneses" e abra os olhos, escute com atenção, questione, duvide, critique: «Não se cai nunca duas vezes no mesmo abismo. Mas cai-se sempre da mesma forma, com uma mistura de ridículo e de pavor» (p. 141). Excelente livro.

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