Segunda-feira, 20 de Fevereiro de 1933. A “nata”
empresarial germânica reúne-se secretamente com Hermann Göring e Adolf Hitler,
tendo em vista o patrocínio financeiro da campanha nazi. Aquela que foi
baptizada como II Grande Guerra ainda não se avista com clareza, mas quem a
busque no horizonte não sentirá dificuldades em vislumbrá-la. Os nazis
prometiam um regime de aço, o afastamento da ameaça comunista, acabar com
sindicatos, «permitir que cada patrão seja um Führer na sua empresa» (p. 23).
Os convidados arregalaram os olhos, lamberam as beiças. À mesa estão Gustav
Krupp, que anos mais tarde será julgado em Nuremberga por praticar escravidão (é
o homem da capa), Albert Vögler, industrial conhecido por temer a ascensão do
comunismo, Günther Quandt, o homem do império onde hoje se inclui a BMW,
divorciado de Magda Ritschel, que viria a ser mulher de Goebbels. Estão também
Friedrich Flick, um dos homens da Mercedes, que, apesar de condenado a 7 anos
em Nuremberga, não se livrou de morrer como um dos homens mais ricos do mundo. As
contribuições ao Partido Nazi renderam mais de dois milhões de marcos. Só a IG
Farben, onde se incluíam a BASF (lembram-se?) e a Bayer, contribuiu com 400000.
O francês Éric Vuillard (n. 1968) começa por aqui a sua extraordinária
narrativa A Ordem do Dia (Publicações Dom Quixote, Abril de 2018, trad. João Carlos Alvim), Prémio Goncourt 2017. Romance? Novela? Conto? Ensaio?
História? Ficção? Pouco importa o género, o tipo, a forma, quando o que está em
causa é um belíssimo livro que ler-se-ia de fôlego não fosse obrigar-nos
tantas vezes a parar para colocar as emoções e o pensamento em níveis arteriais recomendáveis.
Primeiro, a promiscuidade entre os mundos empresarial e político a
revolutear-nos o estômago. Com consequências por todos conhecidas. Depois, o
oportunismo, a avidez, a cegueira de uma ganância transversal. Apanha
políticos, ataca indústria e finança, dissemina-se socialmente. Vuillard salta de um episódio para outro, nunca perdendo de vista o propósito de denunciar aquilo que leva ao abismo. Contra as ambições nazis restava ao mundo a oposição
internacional. Em vésperas de Grande Guerra, Edward Frederick Lindley Wood, 1.º
Conde de Halifax, visitou a Alemanha a convite de Göring. O retrato do encontro
provoca-nos asco, o asco das subtilezas políticas, sempre rodeadas de um charme
que contrasta com a miséria dos povos. Que terá visto Halifax em Göring? Podia
ele ver alguma coisa? Afinal: «Não foi o muito honorável primeiro visconde de
Halifax, que, na qualidade de chanceler do Tesouro, se opôs firmemente a que
fosse concedida qualquer ajuda suplementar à Irlanda durante todo o tempo em
que desempenhou esse cargo? A fome provocou um milhão de mortos» (p. 31).
Sempre num degrau acima da realidade, estes agentes políticos a quem a
realidade sustenta caprichos, ambições desmesuradas, loucuras, delírios, são
tratados por Éric Vuillard sem piedade.
Segue-se Kurt Schuschnigg, «o pequeno
déspota austríaco» (p. 34), hoje lembrado como «o último chefe de estado
austríaco antinazista antes da anexação da Áustria à Alemanha». Como o
apresenta o autor de A Ordem do Dia? Fraco, cobarde, esotérico, atabalhoado,
submisso, «o pequeno ditador que Hitler tiraniza» (p. 58). Passará a guerra
numa prisão nazi, é certo. Libertado pelos Aliados, «tornar-se-á um americano
exemplar, um católico exemplar, um professor universitário exemplar, na
universidade católica de Saint Louis» (p. 68). Exemplar! Éric Vuillard domina
os temas, escreve com aquela simplicidade apenas possível a quem conhece profundamente o assunto a que se dedica, não se inibindo de tecer considerações, de lançar um
olhar irónico sobre os podres da política. Leia-se, que merece mesmo ser lido:
«Na época em que era
prisioneiro dos italianos, ainda jovem, durante a Primeira Guerra, Schuschnigg
deveria ter lido os artigos de Gramsci, em lugar de romances de amor; teria
assim talvez dado com estas linhas: «Quando discutes com um adversário, tenta
pôr-te na pele dele.» Mas ele nunca se colocou na pele de ninguém, quando muito
envergou o fato de Dollfuss, depois de lhe ter, durante alguns anos, lambido as
botas. Pôr-se na pele de alguém? Nem sequer vê muito bem para que é que isso
serve! Não se pôs na pele dos operários espancados, nem dos sindicalistas
presos, nem dos democratas torturados; então, agora, só faltaria mesmo que
conseguisse pôr-se na pele dos monstros! Hesita. É o derradeiro minuto da
última hora. E, como de costume, capitula. Ele, a força e a religião, ele, a
ordem e a autoridade, ei-lo que anui a tudo aquilo que lhe pedem. Basta que não
lho peçam com delicadeza. Disse que não à liberdade dos sociais-democratas, com
firmeza. Disse que não à liberdade de imprensa, com coragem. Disse que não à
conservação de um parlamento eleito. Disse que não ao direito à greve, às
reuniões, à existência de outros partidos para além do seu. E contudo, será
esse mesmo homem que será contratado, no pós-guerra, pela nobre universidade de
Saint Louis, no Missuri, como professor de ciência política» (pp. 70-71).
Lembra-vos alguma coisa? Notam alguma contradição? A Ordem do Dia parte de
acontecimentos históricos, de uma história relativamente recente, num período
que é o daqueles que caminham para o precipício. Sabemos dos factos, conhecemos
a catástrofe, ficamos a perceber melhor como ela foi sendo anunciada «com
pezinhos de lã», envolta no descaso geral de agentes políticos, económicos, financeiros,
com a capacidade de contaminar toda a sociedade civil. À pergunta “como foi
possível?”, podemos hoje responder “foi possível com conformismo, passividade,
indiferença”. O que não é o mesmo que dizer “foi possível com desinteresse”.
Pois, como prova a reunião secreta de 20 de Fevereiro de 1933, interesses havia
muitos. Uma Europa a dormir foi recebendo com salvas, mais ou menos encenadas,
os actos da catástrofe. Como se estivesse a assistir a uma peça de teatro em
actos sucessivos onde os mortos eram reais, onde a morte, a tortura, a fome, a
miséria, era real. Ou seja, não estava um degrau acima. A conclusão vale tanto
sobre o tempo que passou como para o presente, como facilmente entenderá quem
não faça como "os três macacos japoneses" e abra os olhos, escute com atenção, questione, duvide,
critique: «Não se cai nunca duas vezes no mesmo abismo. Mas cai-se sempre da
mesma forma, com uma mistura de ridículo e de pavor» (p. 141). Excelente livro.
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