F. S. Hill (?) tem publicado com regularidade desde o
livro de estreia, intitulado Livro das Coisas Breves (Medula, 2014). Animal
Vegetal (Companhia das Ilhas, Fevereiro de 2019) é o quarto que publica. Em si
mesma antinómica, a expressão do título exprime os sentimentos contraditórios
que esta poesia inspira. Se a brevidade é uma das suas marcas mais fortes, não
menos será o facto de nessa brevidade se cometerem excessos. «Toda a escrita
inteligente encaminha-se para o silêncio» é a máxima que dá o mote a uma
sequência de 57 poemas muitas vezes manchados por ruídos, ainda que o 56 se
redima com uma página totalmente em branco. Este caso é particularmente exemplificativo
de uma redundância, se tivermos em conta o Poema Branco de Rui Costa ou A parte
pelo todo de João Luís Barreto Guimarães. Não se tratando de redundância,
podemos pressupor mais uma paródia num livro em que esse recurso é recorrente:
«Morrer todos os dias pode ser cansativo / e quase indigesto» (p. 9), «Quando
eu morrer batam-me / posso estar apenas a fingir» (p. 37), «Ai que prazer ter
um livro para ler / sofrer de vista amarga / não ter com quem foder» (p. 45) ou
o poema 53:
Não sou alcoólico
Nunca serei alcoólico
Não posso querer ser alcoólico
À parte isso, tenho em mim todos os poemas do mundo
Ruidoso e excessivo nesta poesia é tudo quanto concorre
para que a irrisão epigramática e os remates aforísticos de belo efeito percam
força, acabando secundarizados por desequilíbrios verbais e por um humorismo dissimulador
do núcleo lírico dos poemas. Assim sendo, parece-me que os dois últimos versos
do poema 7 dispensavam os restantes: «O pior do mundo são as casas vazias / com
gente dentro»; e a interrogação do poema 28 também não precisava de mais nada:
«Quanto do meu sangue / é tédio feito horror?». Mas a mão do poeta foge amiúde
para o lúdico, perdendo-se em trocadilhos e imagens cuja única característica parece
ser a sua inocuidade. Exemplos? O poema 20: «Hoje bati uma punheta / mas não
pensei em ti; / serei má, Pessoa?» Ou o 37: «A ter uma profissão / gostava de
ter uma / das que realmente importam / em que o indivíduo se sente / como os
palácios perante os bois / ou as coisas perante ausência de palavra / Eu
gostava mesmo era de ter / profissão de fé / Ia rimar tanto com este café» (p.
44). O tom adiliano não convence, sobretudo pela inconsistência.
Tudo é mais consistente nos poemas onde se tem mão na
comicidade, quando se adopta a ironia enquanto ferramenta de eliminação do
tédio quotidiano, das dores domésticas, do absurdo existencial. Uma das imagens
mais cativantes produzidas nalguns poemas diz respeito a uma relação de volume entre
entidades correlacionadas. Neste sentido, o verbo “caber” tem aqui especial
relevância. Podemos questionar-nos sobre o que cabe de nós num poema? O que
cabe do mundo em nós? O que cabe da realidade numa língua? O que cabe de Deus
no homem? O que cabe de morte na vida? O que cabe de vegetal no animal? O
problema não é tanto o da fusão entre contrários como parece ser o de um
processo de assimilação inerente à definição de ser. Palavras como ventre e
boca confundem-se, neste contexto, com a palavra casa, remetendo para uma
interioridade que é a essência do poema.
«Levas-me a casa / pela boca» (p. 17), diz-se no poema
11, «Quantas palavras cabem na boca do poema?», questiona-se no 21, «vem / por
aqui / deixa-te de poemas mal resolvidos / faz-te boca / faz-te língua / e boca
de novo» (pp. 41-42), sugere-se no 35, «E agora / o que fazer a toda esta lama
/ que temos na boca?» (p. 54), pergunta-se finalmente no 46, e todas estas bocas
são a casa, a morada, a residência de uma língua onde o verbo se materializa. São o ventre onde a palavra germina e se tritura. A
obsessão com o órgão onde tem início o processo digestivo animal leva-nos a pensar numa outra extensão irónica destes poemas, os quais parecendo tão enraizados
na vida nos transportam subtilmente para os campos da morte e da ruína. É pela
boca que o homem se alimenta, é pela boca que a morte nos entra no corpo. Este dúplice
sentido que vislumbramos em vários versos torna tudo mais estimulante, relegando para o plano do supérfluo as armadilhas anedóticas a que por vezes
se submetem os poemas.
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