segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

ANIMAL VEGETAL


F. S. Hill (?) tem publicado com regularidade desde o livro de estreia, intitulado Livro das Coisas Breves (Medula, 2014). Animal Vegetal (Companhia das Ilhas, Fevereiro de 2019) é o quarto que publica. Em si mesma antinómica, a expressão do título exprime os sentimentos contraditórios que esta poesia inspira. Se a brevidade é uma das suas marcas mais fortes, não menos será o facto de nessa brevidade se cometerem excessos. «Toda a escrita inteligente encaminha-se para o silêncio» é a máxima que dá o mote a uma sequência de 57 poemas muitas vezes manchados por ruídos, ainda que o 56 se redima com uma página totalmente em branco. Este caso é particularmente exemplificativo de uma redundância, se tivermos em conta o Poema Branco de Rui Costa ou A parte pelo todo de João Luís Barreto Guimarães. Não se tratando de redundância, podemos pressupor mais uma paródia num livro em que esse recurso é recorrente: «Morrer todos os dias pode ser cansativo / e quase indigesto» (p. 9), «Quando eu morrer batam-me / posso estar apenas a fingir» (p. 37), «Ai que prazer ter um livro para ler / sofrer de vista amarga / não ter com quem foder» (p. 45) ou o poema 53:

Não sou alcoólico
Nunca serei alcoólico
Não posso querer ser alcoólico
À parte isso, tenho em mim todos os poemas do mundo

   Ruidoso e excessivo nesta poesia é tudo quanto concorre para que a irrisão epigramática e os remates aforísticos de belo efeito percam força, acabando secundarizados por desequilíbrios verbais e por um humorismo dissimulador do núcleo lírico dos poemas. Assim sendo, parece-me que os dois últimos versos do poema 7 dispensavam os restantes: «O pior do mundo são as casas vazias / com gente dentro»; e a interrogação do poema 28 também não precisava de mais nada: «Quanto do meu sangue / é tédio feito horror?». Mas a mão do poeta foge amiúde para o lúdico, perdendo-se em trocadilhos e imagens cuja única característica parece ser a sua inocuidade. Exemplos? O poema 20: «Hoje bati uma punheta / mas não pensei em ti; / serei má, Pessoa?» Ou o 37: «A ter uma profissão / gostava de ter uma / das que realmente importam / em que o indivíduo se sente / como os palácios perante os bois / ou as coisas perante ausência de palavra / Eu gostava mesmo era de ter / profissão de fé / Ia rimar tanto com este café» (p. 44). O tom adiliano não convence, sobretudo pela inconsistência.
   Tudo é mais consistente nos poemas onde se tem mão na comicidade, quando se adopta a ironia enquanto ferramenta de eliminação do tédio quotidiano, das dores domésticas, do absurdo existencial. Uma das imagens mais cativantes produzidas nalguns poemas diz respeito a uma relação de volume entre entidades correlacionadas. Neste sentido, o verbo “caber” tem aqui especial relevância. Podemos questionar-nos sobre o que cabe de nós num poema? O que cabe do mundo em nós? O que cabe da realidade numa língua? O que cabe de Deus no homem? O que cabe de morte na vida? O que cabe de vegetal no animal? O problema não é tanto o da fusão entre contrários como parece ser o de um processo de assimilação inerente à definição de ser. Palavras como ventre e boca confundem-se, neste contexto, com a palavra casa, remetendo para uma interioridade que é a essência do poema.
   «Levas-me a casa / pela boca» (p. 17), diz-se no poema 11, «Quantas palavras cabem na boca do poema?», questiona-se no 21, «vem / por aqui / deixa-te de poemas mal resolvidos / faz-te boca / faz-te língua / e boca de novo» (pp. 41-42), sugere-se no 35, «E agora / o que fazer a toda esta lama / que temos na boca?» (p. 54), pergunta-se finalmente no 46, e todas estas bocas são a casa, a morada, a residência de uma língua onde o verbo se materializa. São o ventre onde a palavra germina e se tritura. A obsessão com o órgão onde tem início o processo digestivo animal leva-nos a pensar numa outra extensão irónica destes poemas, os quais parecendo tão enraizados na vida nos transportam subtilmente para os campos da morte e da ruína. É pela boca que o homem se alimenta, é pela boca que a morte nos entra no corpo. Este dúplice sentido que vislumbramos em vários versos torna tudo mais estimulante, relegando para o plano do supérfluo as armadilhas anedóticas a que por vezes se submetem os poemas.

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