segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #11


Se há conselho que me sinto obrigado a vos transmitir nestes tempos desmemoriados, então esse conselho é o de que jamais vos esqueceis de onde vindes. Nas origens perdura a semente, pela raiz chegamos à essência que elucida sobre o lugar por nós ocupado no mundo. Tudo se torna próximo e uno quando de tal lucidez retiramos a conclusão definitiva: as dissemelhanças que nos distinguem à superfície provêm da mesma câmara onde se forma o magma humano. Ficai pois sabendo, queridas filhas, que nas veias nos corre sangue sarraceno, e disso não vos olvideis sob pena de julgardes ser únicas e eleitas onde afinal sois finitas, mortais, efémeras, nesta terra apenas ímpar por nela vinho, pão e música bastarem para que valha a pena ver o sol nascer.
   Muito antes das cruzes do Norte terem pesado sobre os costados dos nossos antepassados, andaram por estas terras povos a que chamaram mouros. Alá era o seu Deus, o vento os guiava, o sol lhes tingia a tez. Deles herdámos cultura, palavras, ciência, pensamento, poesia. Deles herdaram vossos avós a classe saloia à qual pertenceram, abrindo caminho para que pudésseis hoje ler os poetas árabes de Portugal coligidos por Adalberto Alves em O Meu Coração é Árabe – A Poesia Luso-Árabe (Assírio & Alvim, Outubro de 1987). Através destas páginas podeis travar conhecimento com Ibn ‘Ammar e com Al-Mu’Tamid, podeis ficar a conhecer poetisas árabes antigas como Maryam Al-Ansari e As-Silbia, e podeis ainda desfazer o preconceito de que dos árabes nada de bom nos ficou.
   Nascido perto de Silves em 1031, Ibn ‘Ammar teve, conta-nos Adalberto Alves, uma vida que «parece arrancada a um drama shakespeariano». Invulgarmente inteligente, mas muito pobre, tornou-se um dos maiores e mais íntimos amigos do grande Al-Mu’Tamid. Perduram especulações sobre uma relação homossexual entre ambos. Nomeado governador de Silves pelo amigo, Ibn ‘Ammar cedeu ao arrivismo começando a conspirar na ambição de um trono próprio. Aprisionado em Sevilha, acabou executado pelo próprio Al-Mu’Tamid. Entre os versos que dele restam, contam-se estes dedicados ao amigo que o matou:

Nada me move, meu príncipe,
Senão a tua vontade.
Contigo vou,
Como o viajante nocturno
Guiado pelo clarão dos relâmpagos.
Queres voltar para a tua amada?
Vai num rápido veleiro
E seguirei no teu encalço,
Ou salta antes para a sela,
Contigo irei também.
E quando,
Graças à protecção divina,
Chegarmos aos umbrais do teu palácio
Permite que torne sozinho à minha casa.
Não percas tempo a sacar a espada!
Lança-te aos pés da que tem a cintura delicada
E compensa-a do tempo perdido:
Beija-a e aperta-a contra o peito.
E murmurem vossas bocas
Meigas e doces palavras,
Como os pássaros se respondem mutuamente
Em suaves cantos ao romper da alva.

   Quanto a Al-Mu’Tamid, nasceu em Beja, no ano de 1040, numa família de gente culta e influente. Filho do rei Almutadide, foi nomeado pelo pai governador de Silves antes de ascender ao trono do reino taifa de Sevilha. Ele próprio pai dos poetas Al-Ma’Mun, Ar-Radt e Ar-Rasid, caiu em desgraça depois de ser traído por um aliado na luta contra os cristãos. Desterrado para Agmat, perto de Marraquexe, aí passou o resto da vida como poeta eremita. Morreu em 1095. A sua campa é ainda hoje local de peregrinação. Impressionante é o poema que nos outorgou nas vésperas da sua morte:

EPITÁFIO

Túmulo de um forasteiro:

Regue-te o chuvisco vespertino e matinal
Pois conquistaste dos restos de Ibn ‘Abbad.
Em ti jazem razão, sabedoria e generosidade,
Abundância na seca e água para os sequiosos.
E lança e espada e flecha no combate:
O terrível fim para o leão contrário.
Destino na vingança,
Oceano na generosidade,
Plenilúnio na sombra,
Eloquência na multidão.
Chegou o decreto do Altíssimo
E, com ele, o meu fim.
Antes de olhar este esquife
Mal sabia eu que altas montanhas
Sobre tábuas repousaram.

Que isto te baste, tumba:

Sê amável com a nobreza
Que aqui te vai confiada.
Que as taciturnas nuvens
Te reguem entre raios e trovões,
Chorando por seu irmão,
Que agasalhaste da chuva,
Sob esta laje tão larga,
Com lágrimas matinais e vespertinas.
Até as gotas do orvalho te choram
Derramando-se dos astros
Que te não deram sorte.
Para sempre a bênção de Alá
Sobre a tua sepultura
        Incontáveis vezes
                     …para sempre!

Podeis encontrar outros poemas de Al-Mu’Tamid aqui, aqui e aqui. Sugiro a impressão deste último, para guardar na carteira junto aos documentos essenciais.

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