Poderia perguntar, além disso,
quantas palavras seriam necessárias
para rasurar uma palavra,
quantas, quais e com que prazo de validade.
Qual o procedimento, estratégia ou artifício,
que lhe permitiria detê-las antes que jorro
lhe empapasse a boca. Cuspia as que podia,
mas alguma coisa por detrás da garganta
lhe alimentava a língua, solta e descontrolada
como uma mangueira de incêndio.
Álcool sobre as chamas, gasolina,
em golfadas fundas que ameaçavam,
via, sepultar o mundo sob o seu peso.
Tentava evitá-las. Retinha a respiração,
premia as mãos contra a cova da boca, mas
era inútil, jorravam-lhe como de uma ferida aberta.
E ainda que soubesse controlar-se,
à sua volta havia
mais bocas do que aquelas que conseguia calar.
Multiplicavam-se. Na rua, nos livros, nos ecrãs,
num débito verbal que ultrapassava tudo
o que algum dia pudessem ter tido para dizer.
Bocas velhas,
novas, brancas, negras, de machos, de fêmeas,
de todas as formas, de todas as línguas.
Bocas virgens,
bocas penetradas, bocas pervertidas,
cínicas, ingénuas, generosas, bocas, bocas, bocas.
Há muito que, de facto,
esmagadas por um peso que as sufocava,
as coisas se afundavam sob tantas palavras.
Por vezes procurava-as. Era em vão.
Talvez, se cosesse a boca, como quem cose a vulva
para não parir o filho do ventre,
a sua, a das outras, a de todas, a de todos,
a humanidade inteira
numa censura prévia e sem piedade.
Talvez, se arrancasse o nome às coisas, como quem
retira a roupa para expor a carne, crua mas concreta,
ou raspa da pele o pó acumulado pelos anos.
Talvez, se os objectos se revoltassem, como cavalo
que rejeita a rédea, talvez, talvez, talvez
tivéssemos direito a um pouco de realidade.
Madalena de Castro Campos (n. 1984), in A Gun in the
Garland. Três livros publicados na Companhia das Ilhas: O fardo do homem branco
(2013), La mariée mise à nu (2017), A gun in the Garland (2019). Recorrendo amiúde a terceira pessoa, os versos remetem para uma figura feminina gerando um
efeito de reflexo que acrescenta ambiguidade ao sujeito poético. A linguagem é
crua, violenta, agressiva, desconstrói os padrões de feminilidade impostos por
uma sociedade machista. Onde seria de esperar uma figura frágil, carente de
protecção, encontramos antes uma personagem rude, provocadora, «tentando não
ceder à moralidade». Transformada em tema, a poesia surge num quadro de doença
contaminadora do meio. Poemas tais como Lavandaria Lusitana ou O meio literal
português colocam-nos um problema: não percebermos se os retratos surgem a
partir do olhar de quem se sente por estar fora ou de quem observa à distância,
menosprezando tácticas, gestos, hábitos, manias, nos quais não se revê mas com
os quais perde tempo (pelo menos o de denunciá-los com versos furiosos). Prefiro
quando a atenção se desvia para os deuses, para a actualidade, para os temas
sociais e políticos, tornando a violência muito mais pertinente face ao objecto.
A série intitulada Figuras do quotidiano é bom exemplo de como a notícia do
crime pode ser transposta da dispersão dos dias para um lugar fixo, readquirindo
um vigor que a intoxicação quotidiana banaliza.
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