segunda-feira, 4 de março de 2019

STAGECOACH (1939)



   1939 foi um ano diferente dos outros, marcado pelo início da Segunda Guerra Mundial com os avanços da ameaça nazi por todo o velho continente. Hollywood era uma máquina pujante, John Ford (1894-1973) um dos seus realizadores mais respeitados. Três filmes num ano dão conta do facto: Stagecoach/Cavalgada Heróica (1939), nomeado para os Óscares em várias categorias, entre as quais as de melhor filme e de melhor realização, acabou por valer estatuetas na música e ao actor Thomas Mitchell, pela inesquecível encarnação do médico alcoólico Josiah Boone; Young Mr. Lincoln/A Grande Esperança (1939) ficou-se pela nomeação para melhor argumento original, apesar do extraordinário desempenho de Henry Fonda no papel de Abraham Lincoln; Drums Along the Mohawk/Ouvem-se Tambores ao Longe (1939) valeu duas nomeações, uma para Edna May Oliver como melhor actriz secundária e outra para melhor cinematografia. Destes três filmes, o primeiro ganhou com o tempo o estatuto de obra-prima, western dos westerns num tempo em que 20% dos filmes produzidos anualmente em Hollywood eram filmes de cowboys
   É verdade que a maioria desses filmes eram de baixa produção, os chamados filmes de série B, produzidos com baixos orçamentos e, como recorda Mark Harris no livro Os Cinco Magníficos (Edições 70, Maio de 2018), «geralmente com menos de uma hora de duração, usados nas sessões duplas das cadeias de cinema das zonas rurais», Stagecoach distinguia-se por vários factores, entres os quais destacaremos um guião de primeira, assinado por Dudley Nichols (o mesmo que, anos mais tarde, escreveria The Tin Star para Anthony Mann), e um elenco à altura dos acontecimentos, onde estrelavam John Wayne, John Carradine, Claire Trevor e o já mencionado Thomas Mitchell. Citando novamente Mark Harris: «Cavalgada Heróica contribuiu para fazer de Wayne uma estrela e transformou Ford num realizador de primeira categoria». 
   O argumento é simples, mas de enorme eficácia: a travessia de um território sob ameaça indígena. Foi a estreia de Ford na mítica paisagem de Monument Valley, já por si suficientemente grandiosa para impressionar ainda hoje os olhos do espectador. A ameaça surge desde o início sinalizada pela evocação de um nome: Geronimo, o mais famoso dos líderes da resistência ameríndia. Não obstante as inesquecíveis cenas de conflito, esta ameaça é sobretudo um pretexto para colocar em evidência outros assuntos e temores. No interior da “diligência” seguem uma prostituta proscrita pelos moralistas da cidade onde tem início a acção, um médico alcoólico, a mulher grávida de um militar em teatro de guerra, um ex-combatente da confederação transformado em jogador profissional, um vendedor ambulante de bebidas alcoólicas, um banqueiro corrupto e, por fim, o impetuoso Ringo Kid, evadido da prisão para vingar o assassinato do pai e do irmão. 
   A contingência da personagem interpretada por Wayne é geradora de uma agradável polémica, já que John Ford como que legitimou a vingança na sequência final, transformando um prisioneiro em fuga num herói sem mácula. Não satisfeito, aproveitou ainda para lhe acrescentar o picante de uma relação apaixonada com uma prostituta socialmente proscrita, mas intrinsecamente humana e compassiva. De resto, se tivermos em conta que as personagens mais simpáticas do filme são um médico alcoólico, uma prostituta e um preso em fuga, contra as antipáticas figuras de um banqueiro corrupto e das beatas hipócritas, podemos perceber o quão ousado terá sido na América de 1939 apostar no mais tradicional dos géneros cinematográficos para retratar toda uma sociedade que perante a ameaça da guerra no velho continente se via obrigada a rever os seus valores. Assim sucedeu dois anos depois, com a revisão impulsionada pelo ataque japonês a Pearl Harbor. Tudo terminou da pior maneira, com duas bombas atómicas largadas sobre um inimigo isolado. Mas nessa altura já Ringo Kid e Dallas estavam a gozar segundas núpcias na pradaria americana.

Sem comentários: