1939 foi um ano diferente dos outros, marcado pelo início da
Segunda Guerra Mundial com os avanços da ameaça nazi por todo o velho
continente. Hollywood era uma máquina pujante, John Ford (1894-1973) um dos
seus realizadores mais respeitados. Três filmes num ano dão conta do facto:
Stagecoach/Cavalgada Heróica (1939), nomeado para os Óscares em várias categorias,
entre as quais as de melhor filme e de melhor realização, acabou por valer
estatuetas na música e ao actor Thomas Mitchell, pela inesquecível encarnação
do médico alcoólico Josiah Boone; Young Mr. Lincoln/A Grande Esperança (1939)
ficou-se pela nomeação para melhor argumento original, apesar do extraordinário
desempenho de Henry Fonda no papel de Abraham Lincoln; Drums Along the Mohawk/Ouvem-se Tambores ao Longe (1939) valeu duas nomeações, uma para Edna
May Oliver como melhor actriz secundária e outra para melhor cinematografia. Destes
três filmes, o primeiro ganhou com o tempo o estatuto de obra-prima, western
dos westerns num tempo em que 20% dos filmes produzidos anualmente em Hollywood
eram filmes de cowboys.
É verdade que a maioria desses filmes eram de baixa produção,
os chamados filmes de série B, produzidos com baixos orçamentos e, como recorda
Mark Harris no livro Os Cinco Magníficos (Edições 70, Maio de 2018),
«geralmente com menos de uma hora de duração, usados nas sessões duplas das
cadeias de cinema das zonas rurais», Stagecoach distinguia-se por vários
factores, entres os quais destacaremos um guião de primeira, assinado por
Dudley Nichols (o mesmo que, anos mais tarde, escreveria The Tin Star para
Anthony Mann), e um elenco à altura dos acontecimentos, onde estrelavam John
Wayne, John Carradine, Claire Trevor e o já mencionado Thomas Mitchell. Citando
novamente Mark Harris: «Cavalgada Heróica contribuiu para fazer de Wayne uma
estrela e transformou Ford num realizador de primeira categoria».
O argumento é
simples, mas de enorme eficácia: a travessia de um território sob ameaça
indígena. Foi a estreia de Ford na mítica paisagem de Monument Valley, já por
si suficientemente grandiosa para impressionar ainda hoje os olhos do espectador.
A ameaça surge desde o início sinalizada pela evocação de um nome: Geronimo, o
mais famoso dos líderes da resistência ameríndia. Não obstante as inesquecíveis
cenas de conflito, esta ameaça é sobretudo um pretexto para colocar em
evidência outros assuntos e temores. No interior da “diligência” seguem uma
prostituta proscrita pelos moralistas da cidade onde tem início a acção, um
médico alcoólico, a mulher grávida de um militar em teatro de guerra, um
ex-combatente da confederação transformado em jogador profissional, um vendedor
ambulante de bebidas alcoólicas, um banqueiro corrupto e, por fim, o impetuoso Ringo Kid, evadido da prisão para vingar o assassinato do pai e do
irmão.
A contingência da personagem interpretada por Wayne é geradora de uma agradável polémica, já que John Ford
como que legitimou a vingança na sequência final, transformando um prisioneiro em fuga num herói sem mácula. Não satisfeito, aproveitou ainda para lhe acrescentar o picante de uma relação apaixonada com uma prostituta socialmente proscrita, mas intrinsecamente humana e compassiva. De resto, se tivermos
em conta que as personagens mais simpáticas do filme são um médico alcoólico,
uma prostituta e um preso em fuga, contra as antipáticas figuras de um banqueiro
corrupto e das beatas hipócritas, podemos perceber o quão ousado terá sido na
América de 1939 apostar no mais tradicional dos géneros cinematográficos para
retratar toda uma sociedade que perante a ameaça da guerra no velho continente
se via obrigada a rever os seus valores. Assim sucedeu dois anos depois, com a
revisão impulsionada pelo ataque japonês a Pearl Harbor. Tudo terminou da pior
maneira, com duas bombas atómicas largadas sobre um inimigo isolado. Mas nessa
altura já Ringo Kid e Dallas estavam a gozar segundas núpcias na pradaria americana.
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