quarta-feira, 19 de junho de 2019

LIVRO REDONDO


   É a autora quem o explica num epílogo, “libros redondos” foi o nome atribuído pelo sacerdote Diego de Torres Villarroel (n. 1693 – m. 1770) aos globos terrestres que adquiriu numa viagem por vários países europeus: «sínteses esmeradas do mundo. Livros que guardam a forma, que repetem o movimento: o círculo, o ciclo, o completo-incompleto, o um», acrescenta Catarina Nunes de Almeida (n. 1982). Tendo em conta os estudos orientais a que a poeta se tem dedicado, a tentação imediata de associar esta síntese ao velho problema da unidade e da multiplicidade do ser pode não constituir pecadilho maior. Todo o pensamento filosófico do Ocidente foi sendo erigido a partir desta relação problemática, a qual encontra no taoísmo uma solução que aceita entre o diverso relações unificadoras de complementaridade. Deus é o problema ocidental por excelência, o Deus uno e indivisível herdado da tradição judaico-cristã. Ora, independentemente do entendimento que fizermos desta noção de divindade, o que importa  reter é o conceito de Universo, mistério imenso para o qual nem ciência nem religião vislumbram explicações definitivas.
   As epígrafes que surgem como separadores neste Livro Redondo (Língua Morta, Abril de 2019) dão conta de uma preocupação com a temática do sagrado que tem nos autores convocados exemplos maiores de inquietação e complexidade, sejam eles Pasolini, Adélia Prado, Ruy Belo, Alberto Caeiro, Anacrenote. Nos poemas de Catarina Nunes de Almeida essa preocupação é ponto de partida temático para o desenvolvimento de uma «arte dos entrelaçamentos» (p. 8) que tende para o amor, sobretudo o amor materno, como momento de superação. Esse amor relativiza o problema essencial, ontológico, cosmológico, na medida em que o chama à terra impondo dúvidas maiores: «Como descrever a sintaxe dum seio que se encheu de leite? / Que importa a meteorologia dos planetas lá longe?» (p. 69). Os últimos versos concluem a favor de uma reconciliação que tem que ver com certa forma de olhar e aceitar as coisas do mundo, sejam elas do domínio material (finitas) ou espiritual (eternas). Entre o Universo e aquele que procura compreendê-lo deixa de haver distância, mas antes um acolhimento e necessidade de cuidar cuja urgência dispensa teorias.
   Apercebemo-nos ao longo desta viagem de uma espécie de divisão que poderia corresponder aos elementos essenciais ou aos pontos cardeais de uma rosa-dos-ventos, sendo certo que o mais estimulante e revelador nesta poesia é a capacidade denotada de exceder fronteiras concentrando-se num livre cruzamento de referências e alusões. De livros sagrados mais ou menos obscuros a mitologias diversas, dos evangelhos aos clássicos científicos, de obras fundadoras de culturas e civilizações, passando inclusive pelos domínios do esotérico e das artes divinatórias, tudo vale no contexto de uma indagação viva e intensa dos temas que dizemos serem de fé: «Compelir os cépticos mais zelosos a aceitar / a realidade das máquinas voadoras / o que me traria há três ou quatro séculos? / Uma corda ao pescoço. / É por isso preferível à leitura dos búzios / a leitura da receita da feijoada de búzios. / A divisão matemática do tempo / sem as numerologias as aromaterapias as teosofias / e os seus vibrantes murais» (p. 32). Qualquer que seja a conclusão, certo é que a secularidade e a degeneração de múltiplos representantes do divino na Terra vieram impor novas formas de organização interna dessa força inerente ao homem que dá pelo nome de «sentimento do sagrado». Julgo que este livro pode ser lido a partir desse ímpeto questionador, sem prejuízo do cruzamento que nele se opera entre tradição e actualidade.
   Alguns poemas surgem-nos como orações dirigidas a uma segunda pessoa com corpo e forma indefinidas, outros resultam de um pensamento inquieto em festa, cruzando-se neles o trivial quotidiano e o indecifrável, já não apenas como elevada e inalcançável sublimação de um mistério, mas sob a forma de ideia intrometida nas horas domésticas. Há ainda aqueles em que o tom de confissão emerge sem tropeçar necessariamente naquilo a que daríamos o nome de confessionalismo: «Confesso-te, hoje bastava-me furar um bolo quente madrugada adentro / fazer do indicador o centro de irradiação da meninice / e sair para a rua pedindo a palavra» (p. 31). Ironia e metáfora (“olho simbólico”) minam o sentido literal do texto, o corpo material e os «nomes de deus» confundem-se, misturam-se, estabelecendo-se entre lucidez e fé uma irónica relação de impossibilidades. Para ver fecha os olhos. Nos últimos poemas torna-se evidente como é no corpo que o sagrado opera: «Uma luz tem jorrado na obscuridade do corpo / precisa como deus» (p. 63). Homem e mulher são a dualidade reconciliada pelo amor cujo fruto é recomeço, princípio, residindo aí o verdadeiro mistério desse “livro redondo” que é o Universo, terra onde o ciclo da vida se cumpre independentemente dos edifícios teóricos que possam ser arquitectados acerca do tema. Talvez em busca de uma inocência perdida, uma inocência de ver e de contemplar, não no sentido de ausência de culpa, inocência anterior à culpa, olhar livremente estendido sobre as coisas para delas colher a luz irradiada.

4 comentários:

Anónimo disse...

Isso: promove os livros dele enquanto ele caga nos teus. Abriu vaga de santo, foi?

hmbf disse...

Anónimo disse...

Anónimo disse...

O anónimo disse que pareces esquecer que isto não tem a ver com livros bons ou maus, mas com quem está por trás deles, e se quem está é um filho da puta como ele, os livros, por muito bons que sejam, merecem, no mínimo, desprezo (e idem para autores que se fazem publicar por filhos da puta).

hmbf disse...

Anónimo disse...