É a autora quem o explica num epílogo, “libros
redondos” foi o nome atribuído pelo sacerdote Diego de Torres Villarroel (n. 1693
– m. 1770) aos globos terrestres que adquiriu numa viagem por vários países
europeus: «sínteses esmeradas do mundo. Livros que guardam a forma, que repetem
o movimento: o círculo, o ciclo, o completo-incompleto, o um», acrescenta
Catarina Nunes de Almeida (n. 1982). Tendo em conta os estudos orientais a que
a poeta se tem dedicado, a tentação imediata de associar esta síntese ao velho
problema da unidade e da multiplicidade do ser pode não constituir pecadilho
maior. Todo o pensamento filosófico do Ocidente foi sendo erigido a partir
desta relação problemática, a qual encontra no taoísmo uma solução que aceita
entre o diverso relações unificadoras de complementaridade. Deus é o problema
ocidental por excelência, o Deus uno e indivisível herdado da tradição
judaico-cristã. Ora, independentemente do entendimento que fizermos desta noção
de divindade, o que importa reter é o conceito de Universo, mistério
imenso para o qual nem ciência nem religião vislumbram explicações definitivas.
As epígrafes que surgem como separadores
neste Livro Redondo (Língua Morta, Abril de 2019) dão conta de uma preocupação
com a temática do sagrado que tem nos autores convocados exemplos maiores de
inquietação e complexidade, sejam eles Pasolini, Adélia Prado, Ruy Belo,
Alberto Caeiro, Anacrenote. Nos poemas de Catarina Nunes de Almeida essa
preocupação é ponto de partida temático para o desenvolvimento de uma «arte dos
entrelaçamentos» (p. 8) que tende para o amor, sobretudo o amor materno, como
momento de superação. Esse amor relativiza o problema essencial, ontológico,
cosmológico, na medida em que o chama à terra impondo dúvidas maiores: «Como
descrever a sintaxe dum seio que se encheu de leite? / Que importa a
meteorologia dos planetas lá longe?» (p. 69). Os últimos versos concluem a
favor de uma reconciliação que tem que ver com certa forma de olhar e aceitar
as coisas do mundo, sejam elas do domínio material (finitas) ou espiritual
(eternas). Entre o Universo e aquele que procura compreendê-lo deixa de haver
distância, mas antes um acolhimento e necessidade de cuidar cuja urgência
dispensa teorias.
Apercebemo-nos ao longo desta viagem de uma
espécie de divisão que poderia corresponder aos elementos essenciais ou aos
pontos cardeais de uma rosa-dos-ventos, sendo certo que o mais estimulante e revelador
nesta poesia é a capacidade denotada de exceder fronteiras concentrando-se num
livre cruzamento de referências e alusões. De livros sagrados mais ou menos
obscuros a mitologias diversas, dos evangelhos aos clássicos científicos, de obras fundadoras de culturas e civilizações, passando inclusive pelos domínios do esotérico e das artes divinatórias, tudo
vale no contexto de uma indagação viva e intensa dos temas que dizemos serem de
fé: «Compelir os cépticos mais zelosos a aceitar / a realidade das máquinas
voadoras / o que me traria há três ou quatro séculos? / Uma corda ao pescoço. /
É por isso preferível à leitura dos búzios / a leitura da receita da feijoada
de búzios. / A divisão matemática do tempo / sem as numerologias as
aromaterapias as teosofias / e os seus vibrantes murais» (p. 32). Qualquer que
seja a conclusão, certo é que a secularidade e a degeneração de múltiplos representantes
do divino na Terra vieram impor novas formas de organização interna dessa força
inerente ao homem que dá pelo nome de «sentimento do sagrado». Julgo que este
livro pode ser lido a partir desse ímpeto questionador, sem prejuízo do cruzamento
que nele se opera entre tradição e actualidade.
Alguns poemas surgem-nos como orações
dirigidas a uma segunda pessoa com corpo e forma indefinidas, outros resultam
de um pensamento inquieto em festa, cruzando-se neles o trivial quotidiano e o
indecifrável, já não apenas como elevada e inalcançável sublimação de um
mistério, mas sob a forma de ideia intrometida nas horas domésticas. Há ainda
aqueles em que o tom de confissão emerge sem tropeçar necessariamente naquilo a
que daríamos o nome de confessionalismo: «Confesso-te, hoje bastava-me furar um
bolo quente madrugada adentro / fazer do indicador o centro de irradiação da
meninice / e sair para a rua pedindo a palavra» (p. 31). Ironia e metáfora (“olho
simbólico”) minam o sentido literal do texto, o corpo material e os «nomes
de deus» confundem-se, misturam-se, estabelecendo-se entre lucidez e
fé uma irónica relação de impossibilidades. Para ver fecha os olhos. Nos
últimos poemas torna-se evidente como é no corpo que o sagrado opera: «Uma luz
tem jorrado na obscuridade do corpo / precisa como deus» (p. 63). Homem e
mulher são a dualidade reconciliada pelo amor cujo fruto é recomeço, princípio,
residindo aí o verdadeiro mistério desse “livro redondo” que é o Universo, terra onde o ciclo da vida se cumpre independentemente dos edifícios teóricos
que possam ser arquitectados acerca do tema. Talvez em busca de uma inocência perdida, uma inocência de ver e de contemplar, não no sentido de ausência de culpa, inocência anterior à culpa, olhar livremente estendido sobre as coisas para delas colher a luz irradiada.
4 comentários:
Isso: promove os livros dele enquanto ele caga nos teus. Abriu vaga de santo, foi?
Anónimo disse...
O anónimo disse que pareces esquecer que isto não tem a ver com livros bons ou maus, mas com quem está por trás deles, e se quem está é um filho da puta como ele, os livros, por muito bons que sejam, merecem, no mínimo, desprezo (e idem para autores que se fazem publicar por filhos da puta).
Anónimo disse...
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