sexta-feira, 7 de junho de 2019

SARA


Além de integrar o corpo editorial da revista TrêsTrês, Ricardo Norte (n. 1978) editou uma sequência de cadernos intitulados Perigo, onde se propunha reflectir o niilismo contemporâneo num diálogo aberto entre textos da sua autoria e de outros autores, a maioria estrangeiros por si traduzidos. Um dos aspectos mais singulares dessas publicações era a resistência a interpretações unívocas, preferindo-se arriscar a palavra em territórios do pensamento e da expressão que, não sendo labirínticos, imprimiam no leitor uma estimulante estranheza. Neles o texto surgia alienado de géneros, impondo-se pela força sugestiva das imagens e das associações. Sara (Língua Morta, Abril de 2019) de algum modo oferece continuidade a esse processo de geminação, enxertando a palavra poética no contexto de uma narrativa constituída por fases sem delimitações evidentes. 
   Podemos dizer que numa primeira fase, destacada pelo uso do itálico, como que somos enviados para um lugar iniciático: «A passagem do lume para a tosse do primeiro travo foi o começo de uma exploração carnívora» (p. 5). A linguagem é metafórica, fazendo uso de termos cuja carga simbólica remete para mitos criacionistas. Não é clara a natureza do narrador, embora o uso do passado e da primeira pessoa do plural nos leve a crer em situações modeladas pela memória. Ao sermos colocados no «começo de uma exploração carnívora» percebemos que estamos já numa fase posterior à inocência, momento em que à explosão do desejo nos corpos correspondem sinais de ruína e de perda. Os nomes próprios escolhidos são bíblicos, embora entre eles as conexões sejam altamente livres. Ricardo Norte concebe através das suas personagens uma cosmogonia diversa daquela que a história consagra, repensa a jovialidade, o adolescer, a entrada no mundo do desejo carnal a partir de pressupostos de algum modo anteriormente estabelecidos por George Bataille (1897-1962), citado em epígrafe, em livros como “O Erotismo” ou “As Lágrimas de Eros”. O corpo é o palco onde a grande aventura espiritual actua, já sem Deus de atalaia e com uma espécie de “niilismo radical” a estilhaçar as fronteiras da lei, da regra, da norma. 
   Num segundo momento do livro, a imagem inicial dos cães agarrados é suficientemente elucidativa do modo como sexualidade e violência se conjugam no centro desta aventura. As personagens surgem com deformações corporais (perna esquerda paralisada, maxilares colados, sem braços), são transgressivas, selváticas, apaixonadas. Há uma vila, uma taverna, actividades comuns, mas os cenários e a acção muitas vezes redundam num ambiente onírico. Há referências à puberdade, a erupções de entusiasmo, a um erotismo carnal, nada platónico, nada ideal, (im)puro tesão. Entre o narrador e Sara estabelece-se uma relação de distância, de admiração, desejo. Quem é Sara? «Sara, monda de olhos, ouve as membranas celestes e os ratos que copulam pelas caves» (p. 22). «Sara, uma leoa cega», é objecto desejado cuja inacessibilidade fortalece o próprio desejo: «o seu corpo é esse impossível que olho com palavras» (p. 42). Sara é o fruto proibido, a violenta dor de um querer insatisfeito. Apesar de se tocarem, o ser desejante e o objecto desejado nunca consubstanciam a vontade carnal, o sexo fica suspenso como uma espécie de condenação. 
   A comunicação entre aquele que deseja e o objecto desejado surge num terceiro momento, ainda que através de intermediário. Percebemos que existem camadas no texto onde a posição do narrador vai sendo diferente. Já saídos da infância e da adolescência, Sara e Simão correspondem-se. Ana é o mensageiro. «Possa por momentos voltar da minha morte adolescente» (p. 73), diz Simão. E nesse instante percebemos o jogo que entre ambos se estabelece, mística de uma carne onde o pensamento se processa. Se quiséssemos abusar poderíamos arriscar analogias com Simão, depois Pedro, primeiro bispo de Roma, pedra sobre a qual a igreja edificou todas as muralhas contra o desejo. E podíamos também ver nesta Sara a mulher estéril de Abraão, a que teve Isaac numa idade em que já não era suposto ter filhos. E foi de Isaac, o filho com que deus pôs à prova Abraão, que toda a humanidade descendeu. «Se tudo é amor porque hei-de querer a pedra onde ele se acumula como limo?» (p. 77) As alusões bíblicas estimulam os abusos interpretativos, embora reconheçamos o abuso. 
   Sara e Simão são aqueles a quem encanta o joio, são os transgressores, aqueles que amam para lá do desejo e da morte, amam com o corpo ferido de insatisfação, sem limites.  É este o paradoxo. Nisto têm qualquer coisa de sagrado, um sagrado selvagem de que restam apenas vestígios no vazio das fórmulas universais para o amor. Estão um dentro do outro sem que entre ambos tenha havido sexo, simplesmente toque, o toque ligeiro de quem sente ter ficado aquém do desejo desejando, desejando ardentemente. A sua história é uma história de crescimento a caminho do nada, tal como a história do poeta que do amor à palavra colhe apenas o brilho silencioso de uma imagem que irrompe na cabeça. Belo e inquietante livro.

2 comentários:

Carlos Ramos disse...

Parabéns ao Ricardo que ele bem merece.

Vasco Tomás disse...

Penso adquirir o livro, mas confesso ter ficado impressionado, bem impressionado, pelo simples folheio de algumas das suas páginas. Pareceu-me uma narrativa de forte simbolismo, e por isso de leitura a requerer algum esforço de interpretação. Será por isso uma obra que perdurará, e oxalá que a sua irradiação se amplifique cada vez mais.

Também esta apresentação da obra pelo Henrique tem aquele marca de saber e de arte de escrita que lhe é peculiar.

Obrigado aos dois. Do melhor que por aqui vai havendo, nestes tempos pouco pródigos da qualidade.