Começar por onde? Por um país. Nascemos e dão-nos nome,
ensinam-nos uma língua, metem-nos o país dentro da cabeça. E depois? Sugiro
passeios, muitas partidas e regressos, sugiro viagens, sugiro que andeis,
caminheis, divagueis, sugiro que singrais. Temos uma pátria para podermos dizer
de onde viemos, mesmo que não sejamos de um único lugar. A nossa pátria devia
ser sempre o mundo. Ter o mundo por pátria quer dizer: respeitamos todos os
homens, adoramos a Natureza, repugnam-nos as fronteiras. Mas um homem nasce dentro de alguma coisa, somos gerados e germinamos dentro, rodeados de
paredes, protegidos por fronteiras. Estas protegem-nos do medo porque nascemos
a ter medo dos espaços abertos, livres, dos espaços de sonho. E nisso, a
pátria que nos ensinam é sempre uma pátria de medo. Em dia de país, falemos então desta "raça" de comer e calar, de calar e chorar por mais, raça de gente amorfa e respeitosamente servil, gente barata, os melhores entre os melhores, mas a preço de saldo. Daqui convenha, minhas
filhas, começar por aprender a rir do medo. Para em termos aprendido,
podermos criticar livremente, podermos dizer mal, até achincalhar, podermos
pecar sem remorso, injuriando, afrontando, ofendendo tudo quanto se oponha a
esse direito básico que é viver livre a única vida que temos, de a vivermos determinados pela nossa consciência, apenas por ela, por nada mais senão ela.
Que a crítica comece por ser feita para dentro,
de fora para dentro, que a crítica comece por ter-nos como objecto é, antes de
mais, prova de respeito por nós próprios. Não nos convençamos da verdade que se
esquiva, que a pretensão de sermos donos da verdade não nos assalte é o melhor
conselho que poderei dar-vos. Começai sempre por duvidar de vossas próprias
certezas, para que da dúvida possais erguer o edifício do pensamento com ferramentas
de riso. A quem assim opera, ficai sabendo, apelidam muitas vezes os demais de
vulgar. Vede o caso de Tomás Pinto Brandão (1664-1743), amigo da fera demoníaca
Gregório de Matos (1636-1696), com quem partiu para o desconhecido em busca de
aventura. Logo foi feito prisioneiro, degredado para Angola, e depois para o
Rio de Janeiro. Esbanjando tudo quanto ganhava, dedicou-se à poesia. Só na poesia encontrou alcova para a liberdade, regando-a com sátiras inflamadas que
causavam escândalo e polémica. Tomando-se a si mesmo como objecto de riso, não
deixou a pátria por mãos alheias. Pinto Renascido foi o volume vindo a lume em
1732.
Passados muitos anos, João Palma-Ferreira faz dele um produto de seu tempo, reconhecendo-lhe a
subtileza de haver sabido «denunciar as injustiças sociais, fraudes, corrupção
administrativa e proteccionismos escandalosos que caracterizavam o reinado».
Exemplo maior de tal denúncia: Este é o Bom Governo de Portugal, sátira
atribuída a um Gregório de Matos ressuscitado. Os versos apareceram quando há muito havia desaparecido o amigo Gregório. Aí sobressaem a “hipocrisia
nacional”, a “mediocridade dos costumes”, a “vilania das gentes”, a beatice e
os desastres da administração. Ficai com alguns exemplos e tentai mudar-lhes os
tempos, as personagens, que as vontades perduram as mesmas:
(…)
Que haja um Conselho de Estado
para mil resoluções
e que em todas as ocasiões
é sempre desacertado,
o parecer sempre errado
foi de seus desacertos
obrar com desconcertos,
e só para os bons intentos
lhe segura os entendimentos
o grão Demónio Infernal.
Este é o bom governo de Portugal.
(…)
Da Câmara e Senado
que em obras, taxas, licenças
deve com toda a presteza
ter particular cuidado,
o governo é de estado
e são as ruas da cidade
monturos e porquidade;
e o que tem que vender
o vende pelo que quer
por ter seguro o costal.
Este é o bom governo de Portugal.
Os Ministros de Justiça
que nunca a fizeram direita,
porque a valia respeita
pela puta, ou por cobiça,
o Demónio assim lhe atiça
este fogo em seus ardores,
juiz e corregedores,
letrados e escrivães,
alcaides e tabeliães,
todos vestem de um saial.
Este é o bom governo de Portugal.
(…)
Quem as conquistas governa
manda para desabonos
uns pataratas fanchonos
sem para nada prestar,
e que se hão-de aumentar;
uns redicolhos sujeitos,
sem obras, acções, nem feitos,
e se há fatal ocasião,
de ter a espada na mão,
a fuga lhe é cordial.
Este é o bom governo de Portugal.
Que a mais da Fidalguia
que na soberba se enfronha,
nela se acha sem vergonha
toda a má velhacaria;
a franqueza e a covardia
se vê contra os castelhanos,
e para os nobres paisanos
são uns tigres, uns leões,
e parecem uns supiões,
no proceder tão cabal.
Este é o bom governo de Portugal.
(…)
Que venha todo o estrangeiro
e cada um negociando,
o ouro e prata vão levando
deixando-nos sem dinheiro;
e não há já conselheiro
que seja homem de talento,
que apurado o entendimento
algum remédio lhe aplique,
para que o Reino não fique
exausto deste metal.
Este é o bom governo de Portugal.
(…)
Toda a mais canalha vil,
mercadores, vendilhões,
que estão ganhando milhões
com empregar um ceitil,
têm toda a graça gentil
para poderem roubar,
podendo-se isto emendar
com uns açoutes ou
galés,
porque assim em que lhe pês
tenham menos cabedal.
Este é o bom governo de Portugal.
(…)
Deixo sete estrofes, esperando com elas
convencer-vos da pertinência dos versos. Não sendo estes o bastante para
pensardes o poder pátrio, outros hão-de haver que sirvam para detonar o
respeitinho subserviente que é entre os males da gente um dos maiores e mais
nefastos.
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