sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

JOKER


Em 1999 já só teríamos um ano pela frente, o mundo implodiria em 2000. Um bug informático, uma catástrofe natural, a tão anunciada guerra nuclear, a terceira grande guerra depois de duas sobre as quais tantas ocorreram, deixariam o planeta em pedaços. A humanidade teria o mesmo destino que os dinossauros. A cultura popular ofereceu-nos por esses dias diagnósticos, previsões, retratos de um destroçado mundo em ruínas. A Tricky, músico de Bristol, devemos a melhor legenda da época, o álbum de 1996 intitulado “Pre-Millennium Tension”. Entretanto, passaram 20 anos. O mundo não acabou, mas é como se tivesse acabado. A morte é lenta, tsunami que arrasta os detritos do colapso financeiro, político, religioso, económico, artístico, humano. Acrescentámos à nossa história os horrores de um renovado terrorismo religioso, o Estado Islâmico, o sobreaquecimento global, a ascensão do populismo e de novos e requintados modelos de fascismo, muros, lixo tecnológico, muito lixo, poluímos os mares, assistimos em directo ao sismo do Índico e ao acidente nuclear de Fukushima, permitimos que o Mediterrâneo tenha sido transformado em derradeiro refúgio dos miseráveis, pano de fundo das nossas vidas enquanto nos empanturramos em fast food porque estamos atrasados, temos pressa, o tempo é curto, tudo urge e a nossa capacidade de foco pouco excede a de um peixe de aquário. É neste ambiente cruel que Todd Phillips resolve recriar cinematograficamente a biografia de uma personagem de ficção, baralhando as cartas como mandam as regras num universo onde deixou de haver ficção por tudo parecer possível. “Joker” é a história de um vilão, mostra-nos como o mal é gerado, cresce e se desenvolve dentro de um homem, sem perder de vista a sua ligação à realidade. E este é, julgo, o aspecto mais relevante de um filme sobre uma personagem de BD que se nos apresenta agora como humana, demasiado humana. Tudo em “Joker” surge espantosamente verosímil aos olhos do espectador, pois entre esta Gotham City e as grandes metrópoles das culturas superiores já não há diferença alguma. Que o povo erga o vilão à condição de Messias, colocando-se do seu lado como ao lado de líderes loucos e insensíveis se colocam multidões de excluídos e desafortunados, não espanta nem assombra. Tratado pela sociedade como, no seu tempo e com as devidas distâncias, Jesus o foi pela sua, Joker é o filho de Deus cuja mensagem de ódio e de mal se funda numa dor que faz rir. Nada disto é por acaso, o riso demoníaco e incontrolável que toma conta do palhaço em situações emocionalmente stressantes representa a ruína humana neste lento apocalipse social de que aqui se faria caricatura não fossem tão realistas os traços vincados. Emocionalmente descompensado? Sim. Mas porquê? O filme pode ser visto como a biografia de um anti-super-herói, sob pena dessa perspectiva ficar aquém do possível e do recomendável. Prefiro interpretá-lo como ecografia do útero onde a personificação do mal é gerada, uma sociedade desprovida de empatia e, principalmente, de uma atitude que temos vindo a negligenciar em múltiplos contextos e de múltiplas formas neste novo século: a capacidade de irmos ao encontro do outro, de nos colocarmos no lugar do outro, de o pensarmos em função da sua história e não de acordo com paradigmas pré-estabelecidos ou face à nossa experiência singular. Esta indisposição total para o outro, que tem na sua origem uma urgência de juízos e condenações simplesmente fundados no egoísmo individualista, é o pavio que a estupidez ateia levando a explosões de crueldade inconcebíveis. Se pensarmos na facilidade com que hoje as massas são manipuladas, quer pelas redes de comunicação onde estão imersas como presa num pântano de crocodilos, quer pelos condicionalismos de uma educação humanitária deficiente, favorável às exigências de sucesso impostas pelo consumismo exacerbado, não é de espantar a adesão das pessoas aos seus jokers. É a única forma que têm de se vingar de um sistema que as oprime, as rouba, as engana, as tortura sob a promessa de as proteger. Encontramos facilmente ecos de um “Taxi Driver” no filme de Todd Phillips, podendo até ser considerada irónica a presença de Robert De Niro neste filme, num papel perverso que catalisa a emergência de Joker na personagem de Joaquin Phoenix. Ironias à parte, os inimigos mantêm-se: as sociedades de consumo e de espectáculo que reduzem os cidadãos a meros fantoches num teatro competitivo, sugando-lhes qualquer resquício de humanidade. O papel de fazer rir numa sociedade à deriva, derruindo como um castelo de cartas, é talvez o menos compensador de todos, pois numa sociedade assim o riso perde a sua função libertadora, deixa de instigar crítica e autocrítica, injectando no ser quantias absurdas da indolência que ajuda o náufrago a manter-se à superfície. Que terminemos o ano a discutir mais um atentado ao humor, desta feita no Brasil evangelizado da IURD, é sintomático de quão pertinente é este filme de Todd Phillips, o qual se arrisca a ficar para o futuro, porventura contra tudo quanto seria expectável, como um documentário naturalista destas primeiras décadas do século XXI.

Sem comentários: