Em 1999 já só teríamos um ano pela frente, o mundo
implodiria em 2000. Um bug informático, uma catástrofe natural, a tão anunciada
guerra nuclear, a terceira grande guerra depois de duas sobre as quais tantas ocorreram, deixariam
o planeta em pedaços. A humanidade teria o mesmo destino que os dinossauros. A
cultura popular ofereceu-nos por esses dias diagnósticos, previsões, retratos de
um destroçado mundo em ruínas. A Tricky, músico de Bristol, devemos a melhor
legenda da época, o álbum de 1996 intitulado “Pre-Millennium Tension”.
Entretanto, passaram 20 anos. O mundo não acabou, mas é como se tivesse
acabado. A morte é lenta, tsunami que arrasta os detritos do colapso
financeiro, político, religioso, económico, artístico, humano. Acrescentámos à
nossa história os horrores de um renovado terrorismo religioso, o Estado
Islâmico, o sobreaquecimento global, a ascensão do populismo e de novos e requintados modelos
de fascismo, muros, lixo tecnológico, muito lixo, poluímos os mares, assistimos
em directo ao sismo do Índico e ao acidente nuclear de Fukushima, permitimos que o Mediterrâneo tenha sido transformado em derradeiro refúgio dos miseráveis, pano de fundo das nossas
vidas enquanto nos empanturramos em fast food porque estamos atrasados, temos
pressa, o tempo é curto, tudo urge e a nossa capacidade de foco pouco excede a
de um peixe de aquário. É neste ambiente cruel que Todd Phillips resolve recriar
cinematograficamente a biografia de uma personagem de ficção, baralhando as
cartas como mandam as regras num universo onde deixou de haver ficção por tudo
parecer possível. “Joker” é a história de um vilão, mostra-nos como o mal
é gerado, cresce e se desenvolve dentro de um homem, sem perder de vista a sua
ligação à realidade. E este é, julgo, o aspecto mais relevante de um filme
sobre uma personagem de BD que se nos apresenta agora como humana, demasiado
humana. Tudo em “Joker” surge espantosamente verosímil aos olhos do espectador,
pois entre esta Gotham City e as grandes metrópoles das culturas
superiores já não há diferença alguma. Que o povo erga o vilão à condição de Messias,
colocando-se do seu lado como ao lado de líderes loucos e insensíveis se
colocam multidões de excluídos e desafortunados, não espanta nem assombra. Tratado
pela sociedade como, no seu tempo e com as devidas distâncias, Jesus o foi pela
sua, Joker é o filho de Deus cuja mensagem de ódio e de mal se funda numa dor que
faz rir. Nada disto é por acaso, o riso demoníaco e incontrolável que toma
conta do palhaço em situações emocionalmente stressantes representa a ruína
humana neste lento apocalipse social de que aqui se faria caricatura não fossem
tão realistas os traços vincados. Emocionalmente descompensado? Sim. Mas porquê? O filme pode ser visto como a biografia de um
anti-super-herói, sob pena dessa perspectiva ficar aquém do possível e do recomendável. Prefiro
interpretá-lo como ecografia do útero onde a personificação do mal é gerada,
uma sociedade desprovida de empatia e, principalmente, de uma atitude que temos
vindo a negligenciar em múltiplos contextos e de múltiplas formas neste novo
século: a capacidade de irmos ao encontro do outro, de nos colocarmos no lugar
do outro, de o pensarmos em função da sua história e não de acordo com
paradigmas pré-estabelecidos ou face à nossa experiência singular. Esta indisposição
total para o outro, que tem na sua origem uma urgência de juízos e condenações simplesmente
fundados no egoísmo individualista, é o pavio que a estupidez ateia levando a
explosões de crueldade inconcebíveis. Se pensarmos na facilidade com que hoje
as massas são manipuladas, quer pelas redes de comunicação onde estão imersas
como presa num pântano de crocodilos, quer pelos condicionalismos de uma educação humanitária
deficiente, favorável às exigências de sucesso impostas pelo consumismo
exacerbado, não é de espantar a adesão das pessoas aos seus jokers. É a única
forma que têm de se vingar de um sistema que as oprime, as rouba, as engana, as
tortura sob a promessa de as proteger. Encontramos facilmente ecos de um “Taxi
Driver” no filme de Todd Phillips, podendo até ser considerada irónica a
presença de Robert De Niro neste filme, num papel perverso que catalisa a
emergência de Joker na personagem de Joaquin Phoenix. Ironias à parte, os
inimigos mantêm-se: as sociedades de consumo e de espectáculo que reduzem os
cidadãos a meros fantoches num teatro competitivo, sugando-lhes qualquer resquício
de humanidade. O papel de fazer rir numa sociedade à deriva, derruindo como
um castelo de cartas, é talvez o menos compensador de todos, pois numa
sociedade assim o riso perde a sua função libertadora, deixa de instigar crítica
e autocrítica, injectando no ser quantias absurdas da indolência que ajuda o
náufrago a manter-se à superfície. Que terminemos o ano a discutir mais um
atentado ao humor, desta feita no Brasil evangelizado da IURD, é sintomático de
quão pertinente é este filme de Todd Phillips, o qual se arrisca a ficar para o
futuro, porventura contra tudo quanto seria expectável, como um documentário naturalista
destas primeiras décadas do século XXI.
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