terça-feira, 17 de março de 2020

DIÁRIO DA QUARENTENA #1


Saí para comprar tabaco. As lojas do bairro estão todas encerradas, à excepção de dois cafés, da mercearia e do restaurante de kebab. Caldas cumpre o cenário deprimente a que estamos confinados. Entrei na mercearia do bairro e abasteci-me de alho francês e pimentos, polpa de tomate, bananas. O pão estava esgotado. Cruzei-me com uma pessoa conhecida, não nos cumprimentámos. No café onde compro tabaco estavam três clientes em mesas consideravelmente afastadas umas das outras, um deles usava máscara. A empregada tinha luvas. Meti-me no carro para desenferrujar o motor, dei uma volta pelo quarteirão. Na rádio passava “O Primeiro Dia”, do Sérgio Godinho. Deve ter sido a primeira vez que não gostei de ouvir aquele refrão. Isto parece uma cidade fantasma. No E.Lecrec havia fila à entrada, no Pingo Doce também, mais curta. Estacionei e esperei pela minha vez na fila, o segurança esticava as luvas, ajeitava a máscara, borrifava o ar com gestos convictos e aparentemente eficazes. Pareceu-me realizado e com espírito de missão. Ninguém ousou faltar-lhe ao respeito, subiu alguns degraus no seu estatuto de mero segurança de hipermercado. Parecia um daqueles polícias que vemos em séries do tipo CSI. A senhora do pão foi muito simpática, acabei por lhe comprar também brioches e pampilhos. Os melhores pampilhos são os do meu amigo Paulo, que está em Curitiba e vai ser pai pela segunda vez. Que lhe corra tudo bem. Regressei ao carro e devolvi-me ao lar, onde agora estou sentado a escrever enquanto escuto os meus vizinhos ciganos a jogar à malha. Nunca o som daqueles ferros a baterem no chão cimentado me soou tão melódico.

1 comentário:

Figueiredo disse...

«...o segurança esticava as luvas, ajeitava a máscara, borrifava o ar com gestos convictos e aparentemente eficazes. Pareceu-me realizado e com espírito de missão...»

Mais um frustrado que queria pertencer aos quadros do Exército, Marinha, Força Aérea, Polícia de Segurança Pública (PSP), ou Guarda Nacional Republicana (GNR), mas não conseguiu.

Portugal, um país de parolos(as).