segunda-feira, 29 de março de 2021

UM POEMA DE ADOLFO LUXÚRIA CANIBAL

 


ROCK & ROLL

Ao Ginsberg, talvez

Vi dor de minha carne
   que se soltava nas ruas em manifestações de poesia com
      uma vontade enorme de mudança
   que batia nos andaimes da crueldade e sorrindo
      continuava a bater até sangrar
   que lia Sade e Lautréamont e só depois calmamente
      enrolava um charro
   que conhecia a violência do Estado e dos cidadãos
      exemplares por a ter já sentido de forma monstruosa
      como vingança de ser jovem e ser bela
   que tripava com prazer indescritível cabelos ondulando
      nas estrelas e pegadas na areia
   que escalava o Gerês procurando o estado de Graça
      encontrando apenas a solidão absoluta
   que enlouquecia em espasmos repentinos e incontroláveis
      à uma da tarde para às sete os escrever à beira rio
   que chutava ópio nos prédios em construção utilizando
      água da chuva sem se importar com nada
   que deambulava em bando pela cidade carregada de
      drunfos tentando comunicar o desespero sem o
      conseguir
   que viajava em velhos Ford à boleia para fugir da angústia
      e ia parar a festivais de jazz
   que se embebedava por garrafas poeirentas e após
      imprecações grunhidas com raiva acabava a noite a
      vomitar nas retretes
   que chorava indefesa no regaço do amor e recebia em
      troca festinhas de consolação

Vi pedaços de mim estilhaçados pueris
   que se suicidavam na docilidade quando queriam era viver
   que se guerreavam entre si em batalhas incompreensíveis
      para não agredirem o mundo
   que sofriam em silêncio sem uma ponta de revolta sequer
      porque queriam terminar com o sofrimento
   que já fartos se encheram de rock & roll e cuspiram
      niilismo
   que impossibilitados da aventura e da vida decidiram a
      vingança como última esperança de gozo

Vi-me por fim mergulhado nesta indiferença cultivando o
      isolamento num saciar de prazeres há muito esquecidos 


Adolfo Luxúria Canibal, in No rasto dos duendes eléctricos (Poesia 1978-2018), Porto Editora, Setembro de 2019, pp. 57-58.

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