26 de Novembro de 1937
Todos os homens têm um cancro que os
rói, um excremento quotidiano, um mal que vem periodicamente: a insatisfação; o
ponto de encontro entre o seu ser real, esquelético, e a infinita complexidade
da vida. E todos acabam por se aperceber disso, mais cedo ou mais tarde. Será
preciso procurar conhecer, imaginar, a lenta tomada de consciência, ou a
intuição fulminante de cada um. Quase todos — parece — redescobrem na infância
os sinais do horror adulto. Procurar conhecer esse viveiro de descobertas
retrospectivas, de medos, a angústia de se sentirem prefigurados nos gestos e
palavras irreparáveis da infância. Os «Fioretti» do Diabo. Contemplar sem
«pose» este horror: o que foi, será.
28 de Janeiro de 1942
Descobrimos as coisas através das recordações
que temos delas.
Recordar uma coisa significa vê-la — somente agora — pela primeira vez.
Deves criar um nexo entre o facto de que
nos momentos mais verdadeiros és inevitavelmente o que foste no passado (26 de
Novembro de 37, II) e o facto de que apenas as coisas recordadas são verdadeira
(hoje, I).
25 de Maio de 1942
Não é que a criança viva no mundo da
fantasia (como diz Cantoni, Os Primitivos, p. 256), mas a criança que em nós
sobrevive sobressalta apenas em raros momentos-recordação, o que nos faz crer —
mas não é verdade — que outrora eram imaginários.
22 de Agosto de 1942
As coisas, vi-as pela primeira vez
outrora — numa época que pertence irrevogavelmente ao passado. Se, da primeira
vez, bastava vê-las para me contentar (espanto, êxtase fantástico), agora
necessitam de um outro significado. Qual?
31 de Agosto de 1942
Desde criança que se aprende a conhecer
o mundo, não — como pareceria — por imediato e originário contacto com as
coisas, mas através dos sinais das coisas: palavras, vinhetas, histórias. Se
examinarmos qualquer momento de emoção extática diante de alguma coisa deste
mundo, verificamos que nos perturbamos porque já estávamos abalados; e estamos
já impressionados porque, um dia, algo nos surgiu transfigurado, destacado do
resto, por uma palavra, uma fábula, uma fantasia que a isso se referia. Naturalmente,
naquela época, a fantasia surgia-nos como realidade, como conhecimento
objectivo e não como invenção. (Visto que a ideia de que a infância é poética é
apenas uma fantasia da idade madura. Cfr. 25 de Maio.)
26 de Setembro
Não existe um «ver as coisas pela
primeira vez». O que recordamos, que anotamos, é sempre uma segunda vez (28 de
Janeiro diz a mesma coisa e 22 de Agosto acaba por ser ilusório, o 31 de Agosto
é decisivo).
Cesare Pavese, in O Ofício de Viver –
Diário (1935-1950), trad. Alfredo Amorim, intr. Margarida Periquito, Relógio D’Água,
Fevereiro de 2004.
Recordar uma coisa significa vê-la — somente agora — pela primeira vez.
1 comentário:
Fabuloso livro... excelente dica, muito obrigado. Abraço.
Enviar um comentário