sábado, 3 de abril de 2021

O PENSAMENTO EM CONSTRUÇÃO


 

 

26 de Novembro de 1937
 
   Todos os homens têm um cancro que os rói, um excremento quotidiano, um mal que vem periodicamente: a insatisfação; o ponto de encontro entre o seu ser real, esquelético, e a infinita complexidade da vida. E todos acabam por se aperceber disso, mais cedo ou mais tarde. Será preciso procurar conhecer, imaginar, a lenta tomada de consciência, ou a intuição fulminante de cada um. Quase todos — parece — redescobrem na infância os sinais do horror adulto. Procurar conhecer esse viveiro de descobertas retrospectivas, de medos, a angústia de se sentirem prefigurados nos gestos e palavras irreparáveis da infância. Os «Fioretti» do Diabo. Contemplar sem «pose» este horror: o que foi, será.
 
28 de Janeiro de 1942
 
   Descobrimos as coisas através das recordações que temos delas.
   Recordar uma coisa significa vê-la — somente agora — pela primeira vez.
 
 Deves criar um nexo entre o facto de que nos momentos mais verdadeiros és inevitavelmente o que foste no passado (26 de Novembro de 37, II) e o facto de que apenas as coisas recordadas são verdadeira (hoje, I).
 
25 de Maio de 1942
 
   Não é que a criança viva no mundo da fantasia (como diz Cantoni, Os Primitivos, p. 256), mas a criança que em nós sobrevive sobressalta apenas em raros momentos-recordação, o que nos faz crer — mas não é verdade — que outrora eram imaginários.
 
22 de Agosto de 1942
 
   As coisas, vi-as pela primeira vez outrora — numa época que pertence irrevogavelmente ao passado. Se, da primeira vez, bastava vê-las para me contentar (espanto, êxtase fantástico), agora necessitam de um outro significado. Qual?
 
31 de Agosto de 1942
 
   Desde criança que se aprende a conhecer o mundo, não — como pareceria — por imediato e originário contacto com as coisas, mas através dos sinais das coisas: palavras, vinhetas, histórias. Se examinarmos qualquer momento de emoção extática diante de alguma coisa deste mundo, verificamos que nos perturbamos porque já estávamos abalados; e estamos já impressionados porque, um dia, algo nos surgiu transfigurado, destacado do resto, por uma palavra, uma fábula, uma fantasia que a isso se referia. Naturalmente, naquela época, a fantasia surgia-nos como realidade, como conhecimento objectivo e não como invenção. (Visto que a ideia de que a infância é poética é apenas uma fantasia da idade madura. Cfr. 25 de Maio.)
 
26 de Setembro
 
   Não existe um «ver as coisas pela primeira vez». O que recordamos, que anotamos, é sempre uma segunda vez (28 de Janeiro diz a mesma coisa e 22 de Agosto acaba por ser ilusório, o 31 de Agosto é decisivo).
 
Cesare Pavese, in O Ofício de Viver – Diário (1935-1950), trad. Alfredo Amorim, intr. Margarida Periquito, Relógio D’Água, Fevereiro de 2004.

1 comentário:

Transhümantes disse...

Fabuloso livro... excelente dica, muito obrigado. Abraço.