quarta-feira, 7 de abril de 2021

OUTRO POEMA DE MANUEL DE FREITAS

 




PAULINE E VILHELM

O meu marido foi para Skagen, pois
acredita, mais do que eu, que
a missão da actual pintura dinamarquesa
é trazer-nos com rudeza e pormenor
imagens cruas da província,
daquilo a que chamamos Natureza,
mesmo no que possa ter de humano.

Preferi ficar em Copenhaga e passear
logo de manhã pelos lagos, na
companhia de Vilhelm, que por uma vez
condescendeu. Vimos — além de cisnes,
patos e parais — aqueles graciosos e ridículos
pássaros azuis cujo nome desconhecemos
ambos. Saltitam, voam mal e grasnam ainda pior.

Pergunto-me às vezes se a arte, o futuro
que dela nos é lícito imaginar, nõ será
uma coisa assim, uma cáustica despedida
do real que constitui, para Heinrich,
um valor supremo. Mas seria indelicado,
da minha parte, colocar essa questão a Vilhelm.
Já foi violência bastante tê-lo obrigado a este passeio.

De resto, ele nunca se interessou por animais.
A não ser, claro, por aquele a que chamamos
homem. Onde eu via pousar uma ave, ele via
apenas uma árvore, a irrepetível configuração
das sombras que a envolvem e é a imagem
mesma de tudo o que se perde numa
manhã de Agosto, ou durante a vida inteira.

Talvez seja por isso que se obstina
em pintar mulheres sem rosto,
salas desertas e lições de trevas, portas
tão fechadas como os dias. Não me surpreendeu
que recusasse tomar um chá connosco 
na próxima semana e msotrar-nos os seus últimos
trabalhos, que Heinrich moderadamente apreciaria.

Tentei desaconselhá-lo de pintar interiores
estéreis, quase previsíveis. «A melancolia,
caro Vilhelm, é um vício plebeu, um disparate».
Só quando nos despedimos percebi que a vida
de que lhe falava tinha, para ele, a espessura
exacta da morte, das portas tão fechadas como os dias.

Copenhaga, Agosto de 2007

Manuel de Freitas, in Brynt Kobolt, Averno, Abril de 2008, pp. 31-32. O poema remete para Heinrich e Pauline Hirschsprung, detentores de uma colecção de arte hoje instalada nos parques do Østre Anlæg nas antigas muralhas de Copenhaga (aqui). A imagem ao alto é do quadro Interior com jovem a ler (1898), de Vilhelm Hammershøi.

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