sexta-feira, 2 de julho de 2021

RELER, REVER O DISCRUSO

 


   Talvez não seja má ideia começar por uma breve contextualização histórica. Alberto Pimenta (1937) saiu de Portugal em 1960, contratado como Leitor em Heidelberg (Alemanha). Foi aí que alicerçou o gosto pelo happening e pela performance, manifestações artísticas então em voga num ciclo que compreendia criadores oriundos de diversas áreas. Outra influência terá sido a poesia concreta alemã. Este contacto com as vanguardas desse período ofereceu-lhe uma liberdade de pensamento incompatível com a então ditadura portuguesa, acabando demitido, em 1963, do cargo para o qual havia sido contratado. Não obstante o desinteresse português, Pimenta permaneceu pela Alemanha até 1977. A própria Universidade de Heidelberg não prescindiu dos seus serviços, contratando-o de novo.
   Em 1970 publicou o primeiro livro, intitulado O labirintodonte. O crítico João Gaspar Simões não lhe foi indiferente, referindo-se ao estilo como uma forma de “dizer puras verdades a brincar”. Assim era, como atesta este
 
teatro da guerra
 
no teatro
da guerra
cada dia
trabalha
nova companhia.
mas permanece
o encenador
e a peça
é sempre
do mesmo autor.
o actor                  esse fenece
esse fenece         com a cena
com a cena
e desaparece.
é um teatro
realista
que a toda a hora
muda de artista.
 
mas de hora a hora deus melhora
 
   Quando finalmente regressou a Portugal, já três anos passados sobre a revolução, Pimenta fê-lo a convite da Universidade do Porto. Levado pelo entusiasmo, quis assinalar o regresso com uma performance que consistiu em fechar-se numa jaula do Palácio dos Chimpanzés do Jardim Zoológico. Da intervenção se fez um livro, intitulado Homo Sapiens, que é, a título de curiosidade, o nome de um poema (dividido em dois) inserido em O labirintodonte. O escritor Almeida Faria, a quem cabia ir registando os comentários dos mirones, recorda:
 
Uma mulher assustada, temendo imoralidades, arrastou a filha para longe de ali, proibindo-a de olhar. O público em geral, pelo contrário, ao dar de caras com aquela cena, aproveitava a disponibilidade dominical para filosofar. Um casal não saía dali e demorava-se congeminando em voz alta:
   «É um macaco que sabe ler.»
   «É algum literato.»
   «Em todo o caso é maluco.»
   «É estrangeiro. Estão aí metidas nisso umas meninas estrangeiras.»
   «Assim já percebo.»
   "Meninas estrangeiras", ex-alunas e ainda admiradoras de um Alberto Pimenta leitor sui generis de português em Heidelberg, estavam na verdade "metidas nisso". Em dois blocos de notas, as meninas e eu anotámos observações dos mirones que viriam a aparecer no livro Homo Sapiens.
 
   Tem a sua graça. O que já não tem tanta piada é o facto de à conta de tal acção poética o seu autor ter perdido o cargo para o qual havia sido convidado, por haver alguém na Universidade a considerar que um tipo fechar-se numa jaula do zoológico era incompatível com fechar-se numa sala de aula a administrar conhecimentos. O lugar do homo sapiens não era o zoológico, mas sim a Universidade. A um académico fora do lugar oferecem-se 8 anos no desemprego. É neste contexto que surge o Discurso sobre o filho-da-puta, pronto a publicar desde Setembro, ou seja, dois meses passados sobre a acção zoológica. O Autor referiu-se-lhe, mais tarde, nos seguintes modos: «é um dos raros livros que escrevi em prosa, embora seja uma prosa poética pelas repetições estilísticas.
   Do Discurso sobre o filho-da-puta publicaram-se, entretanto, várias reedições, estando igualmente editado em Itália, Brasil, Espanha, França. Este interesse por uma obra tão peculiar não pode ser por acaso. O livro pode ser inserido num vastíssimo rol de obras com um forte pendor paródico e satírico, a partir das quais obtemos uma panorâmica mordaz acerca de hábitos e costumes. Lembro-me, por exemplo, Dos cornudos: suas espécies e tipos, de Charles Fourier (1772-1837), publicado postumamente, em versão truncada, no ano de 1856, ou do Manual de civilidade para meninas, de Pierre Louÿs (1870-1925), também publicado postumamente no ano de 1927. O Discurso de Pimenta não só foi publicado em vida do autor, como se distancia destes no estilo e na forma. São, no entanto, obras que partilham uma noção de denúncia da hipocrisia e um sentido de humor antipuritano fundado numa reflexão crítica acerca da contemporaneidade.
   Não percamos de vista, antes de mais, que ao dirigir-se aos seus compatriotas no início do Discurso, o autor da dissertação está a dirigir-se aos seus contemporâneos, os quais, para mal dos nossos pecados, tendo em conta o tema em análise, são mais do que aqueles que possamos imaginar numa época e num período histórico concretos. O filho-da-puta, tal como o cornudo, enquanto tipo civilizacional, é universal no tempo e na geografia. E é do homem dito civilizado que estamos a falar, como, de resto, nos indica em nota de rodapé o Capêlo Filho da 4.ª edição portuguesa, a da Centelha (1987): «fica-nos a impressão de termos diante de nós uma cartilha do homem civilizado» (p. 71). Repare-se como hoje em dia este homem civilizado foi capturado nas suas próprias armadilhas, confundindo-se, nas atitudes e nos comportamentos, com os bárbaros a quem quis impor um ponto de vista acerca do mundo, a quem quis impor uma cultura.
   Ora, é este verbo impor, no sentido de coagir, forçar, obrigar, que caracteriza precisamente o filho-da-puta. O homem civilizado é o das armas civilizadas, dos drones e da mãe de todas as bombas, é o tipo que passa à frente na fila para a toma da vacina como o Estado que pirateia ventiladores, máscaras e outros equipamentos necessários para combater uma pandemia. É o burocrata, o “burocrata”, como é o arrivista, é todo aquele que no exercício do seu poder obstaculiza a felicidade do outro impedindo-o de rir. Exemplos de homem civilizado num mundo civilizado são-nos oferecidos diariamente por números e estatísticas, os da violência doméstica, os da sinistralidade rodoviária, os do tráfico de seres humanos para trabalho escravo. Civilizado é o homem que ergue muros e barreiras aos migrantes que tentam entrar na Europa através do Mediterrâneo, são os estados que empurram esses mesmos migrantes para dentro do mar que os engole. Os incivilizados são náufragos, morrem afogados ou desaparecem extintos como os índios. Os civilizados exterminam manadas de búfalos e assistem aos naufrágios como quem deglute pipocas a delirar com catástrofes naturais em directo na TV. Civilizado é este mundo subitamente assaltado por uma voragem higienista que pretende proibir obras de arte por julgá-las desaconselháveis à saúde intelectual de um público que precisa de ser protegido porque, afinal, perdeu capacidades críticas, foi infantilizado por uma sociedade do espectáculo que se nutre do mero entretenimento como outrora o império romano se fortalecia com um povo amestrado pelo circo.
   Será suficientemente civilizado este Discurso sobre o filho-da-puta? Em que escolas o estudam? Em que planos nacionais de leitura o inseriram? Em que órgãos de comunicação social se referem a ele sem lhe disfarçarem o título? E, todavia, esta «cartilha do homem civilizado» é um dos textos mais marcantes de uma literatura portuguesa que os não tem a pontapé. Prosa poética ou poema em prosa, pouco importa. Os rótulos escapam-lhe como acontece a inúmeras grandes obras. Que género devemos atribuir ao Livro do Desassossego? Enquanto objecto artístico, essa também é uma das marcas fortes deste Discurso. Ele não obedece a um género propriamente dito. Começa com uma balada, e nisso remete logo para um contexto musical. Depois desenrola-se como um tratado filosófico dividido em três partes: quem é, como vive e como morre o objecto em análise?
   Na economia discursiva e até em certo tom oratório, lembra-nos, amiúde, a Suma Teológica de Tomás de Aquino. Ó sacrilégio. Na verdade, todo o discurso está polvilhado de alusões que enviam para uma oratória de tipo litúrgico. Sobretudo, mas não só, na última parte. Nada disto é por acaso. Os alvos de Alberto Pimenta eram escolásticos, estivessem eles escondidos sob batinas ou sob o fato e a gravata dos doutores. O lar é o lugar excelso do filho-da-puta, mas a escola não faz mais do que prolongar o lar. Há um novelo retórico que vai sendo desenrolado à medida que nos são fornecidos os traços distintivos do filho-da-puta: nunca se define à primeira vista, semeia preocupações constantes, os filhos-da-puta conhecem-se todos muito bem, são invejosos e inserem-se sempre, sem excepções, no processo em curso, qualquer que ele seja, são oportunistas, deixam morrer e fazem morrer os outros, porque os filhos-da-puta só pensam em função da mais-valia que as coisas e as pessoas possam ter. Eles sacrificam a vida, têm medo de vivê-la, acostumam-se ao sofrimento e fazem do sacrifício um valor: «A morte é para o filho-da-puta o verdadeiro começo, é o motivo de reconciliação com a vida».
   Portanto, o filho-da-puta é inimigo de qualquer forma de epicurismo ou de hedonismo, ele alegra-se com a infelicidade. Tachos e cunhas são o seu modus vivendi, operandi, faciendi. A ambição é o que o mantém à tona no seu aquário nepotista. Tem uma missão: dificultar a despreocupação, obstaculizar a despreocupação, é contra a vida despreocupada que ele age nas secretarias, lugares de omissão da vida. Portanto, o rodízio de filhos-da-puta proposto por Alberto Pimenta é muito abrangente, mas ao mesmo tempo meticulosamente preciso no modo como os desmascara, os pequenos e os grandes, porque entre eles também existem hierarquias. De resto, as hierarquias são a metodologia predilecta dos filhos-da-puta, pois é a partir das hierarquias que se fomentam as promoções e se estimula o desejo de ascender que, como é sabido, vive sempre de mão dada com as despromoções e as desclassificações.
   Esta variedade de estilos foi especialmente bem alcançada pela adaptação teatral do texto levada a cabo pelo Teatro da Rainha, num trabalho de encenação de Fernando Mora Ramos que contou com a colaboração musical do compositor Miguel Azguime. Do início ao fim do espectáculo damos com a diversidade, desde logo, plasmada num cenário simples mas adornado por retratos com uma componente simbólica efabulatória que não é difícil de decifrar. Lá estão o homem cabeça de tubarão (poder), a cobra (veneno), a cabeça de pistola (gangster, belicismo), a ave de rapina (saque, pilhagem), o abutre, claro, porque «a morte é para o filho-da-puta o verdadeiro começo, é o motivo de reconciliação com a vida», e o jacaré, com o seu estatuto de insídia. É quando mais quieto parece que melhor ataca a presa.
   Num espectáculo que se aproxima do musical, atravessando géneros e estilos, do canto gregoriano à canção para cabaré ao estilo Kurt Weill, o papel de Miguel Azguime foi fundamental ao captar as nuances sugeridas pela própria poética de Alberto Pimenta. De facto, existe um ritmo no Discurso sobre o filho-da-puta que é altamente sugestivo. Quem quer que leia o texto apercebe-se dessa musicalidade através das repetições, dos jogos fonéticos, na expressividade de frases repetidas com vocábulos em aparente contradição: «Todo o filho-da-puta é altamente cioso do prestígio da sua vida particular, porque a vida particular dos filhos-da-puta é quase sempre, de uma ou outra maneira, pública.» A escolha de um quarteto composto por dois homens e duas mulheres oferece-nos, deste modo, uma espécie de jogo de espelhos, uma duplicidade que não perde a sua unicidade e respeita esta dimensão paradoxal do texto.
   Outra curiosidade neste trabalho, mais do que a sua pertinência neste período histórico enredado em filhas-da-putice várias, é a forma como subverte os factos oferecendo-nos um final que seria o desejável mas está longe de ser realista. Neste sentido, s eme é permitida a ousadia, julgo haver algo de tarantiniano naquele ritual fúnebre do filho-da-puta. Ele está no texto como exemplo de um momento de especial glorificação hipócrita, o elogio fúnebre, as últimas palavras, o epitáfio do filho-da-puta é a revelação de um dos seus grandes lemas: «celebrar o0s mortos e lacerar os vivos.» Penso no êxtase apoteótico de finais como os de Inglourious Basterds e Django Unchained, na forma como subvertem a realidade histórica propondo um fim alternativo, aquele que teria sido desejável, como desejável seria fazermos o enterro a todo e qualquer filho-da-puta. Só que eles multiplicam-se, têm uma capacidade reprodutor invejável.
   O encenador Fernando Mora Ramos referiu-se a este texto como uma «contrafacção em tom cómico sério do nosso mundo oficial, institucional, em particular dos universos escolar e eclesial». A leitura é certeira, embora pudéssemos acrescentar a estes universos o universo político, o económico e, já agora, o futebolístico. Eles misturam-se uns com os outros. É um dos traços distintivos do filho-da-puta, conhecem-se todos bem uns aos outros. Mas Mora Ramos refere-se ainda a uma implosão da retórica, ao desejo de fustigar o preconceito, à sabotagem, o termo é meu, das solenidades institucionais, e fala ainda de um grito gramaticalmente impecável, sermão burlesco contemporâneo. É a palavra grito que pretendo reforçar. Vimos, no início, o contexto em que a obra surgiu. Vemos, agora, o contexto em que a peça, a que o próprio Pimenta chamou recriação inesperada, adjectivando-a de admirável, ressurge:
 
«Fazer o FDP do Alberto Pimenta, em 2020, é, por paradoxal que pareça, um acto de iconoclastia necessário — seria altura para estarmos longe das águas paradas que o inspiraram. Fazê-lo na perspectiva que ilumina esta concretização cénica, segundo a abordagem que tentamos levar para a frente, cénico-musical e cómica séria, rítmica e coral — o orador é um coro a quatro vozes, convertendo-se a oração de sapiência num comentário amplo e politizado, coro igual a delegação da cidade — é, além do mais, plantar um antídoto difícil de definir e de classificar — é nessa medida que é uma experimentação — em pleno conservadorismo prá frentista tecno-informático, esse que marca o ambiente nacional e nos impede, de facto, de ser um país com outro amor das liberdades, um amor culto na diversidade do que qualifica a cultura como pontos de vista, informado, laico, republicano e emancipado.»
 
   A iconoclastia a que se refere o Encenador é, desde há muito, pão na boca dos criadores (uso o conceito em patente genérica). Não há criação sem provocação, sem uma testagem insistente da resistência dos materiais de que são feitos os paradigmas. Com a ciência, aliás, passa-se exactamente o mesmo, como bem observou o epistemólogo Thomas S. Kuhn. É por isso que a arte está sempre em crise, o seu papel é provocá-la, no sentido de estimular o pensamento, de denunciar injustiças, de destruir estereótipos estéreis e cristalizadores. O fim último é uma sociedade mais livre e mais democrática, com gente que, mais do que se impedir de ser feliz nesta vida efémera e fugaz, participe da alegria de viver deixando viver. O teatro, quer-me parecer, tem aqui um papel fundamental a desempenhar, é o lugar dos possíveis, facilita um confronto sadio entre a realidade e o hipotético. Precisamente por isso me parece ser tão teatral o Discurso sobre o filho-da-puta, por haver tanto no texto como no espectáculo gerado pelo texto, criado sobre o texto, um confronto continuado entre o lógico e o ilógico. Nisso, o burlesco é altamente realista. Mais ainda numa época histórica em que a realidade quotidianamente nos parece absolutamente burlesca, grotesca, bizarra.


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