sexta-feira, 27 de agosto de 2021

ATIRAR PARA O TORTO

 

A expressão «formalismo informal» é usada na primeira badana de Atirar para o Torto (Tinta-da-China, Maio de 2021) como síntese da poesia de Margarida Vale de Gato (n. 1973). Faz sentido para quem conheça o trabalho desenvolvido desde Mulher ao Mar (Mariposa Azual, Abril de 2010), actualizado e acrescentado em pelo menos duas reedições, mas ainda mais na obra publicada este ano na colecção coordenada por Pedro Mexia. Tomemos de exemplo o poema que ofereceu título ao volume. São três estrofes com número irregular de versos (15-13-15), apresentando estes extensões muito diversas, o que contrasta, desde logo, com muitos outros poemas da autora em que o autodomínio formal é exercido com bastante rigor. Isto é especialmente detectável nos sonetos (são 8 neste livro), mas não só. Também o poema aqui em causa obedece a um nexo narrativo que não exclui por absoluto a dimensão formalista. Cada uma das estrofes vincula-se, logo no início, a um “eu” em registo de auto-exame. A primeira oferece enquadramento histórico ao sujeito: «Quando eu nasci a penúltima guerra mundial tinha sido há vinte e oito anos» (p. 73); a segunda contextualiza esse mesmo sujeito no âmbito da sua arte: «eu que o diga que fiz estudos / ganhei uma cadeira de armar à sombra da academia / e quando o rei faz anos espremo as tetas / da poesia de cada vez o leite é mais ralo» (p. 73); a terceira oferece uma declaração de tipo conclusivo: «sei lá eu sou das letras tudo passa» (p. 74). Percebe-se, pois, uma disposição silogística no desenvolvimento do poema  que atribui forma a um raciocínio. As duas primeiras estrofes são premissas que concorrem para a conclusão exposta na terceira.
   Do mesmo modo, neste poema residem algumas das linhas gerais que encontramos ao longo do livro e que têm que ver com uma constatação de desacerto no mundo que levam à desconfiança sobre o sentido da própria prática poética, para mais ela mesma exercida num meio também ele desacertado: «tanta húbris esta bílis» (p. 74). Alguns poemas deste livro, para mim os menos interessantes, tendem a evidenciar a problemática do sentido da poesia, a utilidade da sua prática e as guerrilhas a essa prática associadas. São questões menores se as pensarmos a par de outras, bem mais prementes e interessantes, aludidas num Atirar para o Torto escrito sem «remédio / para a catástrofe» (p. 74) a não ser o de cantar «um exultante afogamento» (p. 74), assumindo que também essa sensação de impotência face ao desastre possa ser parte do problema. Não escapamos à imagem da Mulher ao Mar quando pensamos no afogamento aludido. De resto, o mesmo sucede quando, logo no primeiro poema deste livro, o único independente dos quatro conjuntos que o compõem, é estabelecido um elo com a obra anterior através de uma referência que envia, ao jeito de oração entre parêntesis, para um conhecido poema da Autora: «(Deus, / faz com que eu nunca seja / uma poeta ressabiada)» (p. 7). A súplica funciona como pré-aviso, pois o que se segue é uma digressão atormentada pelos dilemas actuais da humanidade: a pandemia, a crise climática, o legado colonialista e o racismo institucional, a violência doméstica, o Mediterrâneo da nossa vergonha…
   O título do primeiro conjunto Desamparar a Queda — dá o tom, bem como o primeiro poema desta secção, intitulado Menopausa, estabelece desde logo a questão das marcas deixadas na carne pela passagem do tempo como um dos núcleos fortes a partir do qual o livro se organiza. Se hoje a carne fala menos (vide p. 22), o que fala então por ela? A consciência? O pensamento? Não será por acaso que o último poema do livro se intitula Maior Idade. A forma como o erotismo surge abordado, nomeadamente em Balada de Núpcias, Menopausa (II), Vírus e Virgens, Chamar Puta Durante, todos da III parte — Este Jogo Já Não Funciona —, evidencia uma sensação de declínio que percorre este livro do início ao fim. Como manter atiçada a paixão? O tempo (última palavra do livro, já agora) traz previsibilidade e rotina, traz decadência, traz a memória do que se viveu, a percepção do que não foi vivido e dúvida sobre o que podia ter sido e poderá ainda ser. Entre o eu individual, efémero, perecível, e o eu político, actuante, mas desconfiado, esta poesia reflecte-se a si mesma colocando permanentemente as questões do sentido e da utilidade. Envereda, a espaços, pela memória pessoal, pelo dado biográfico, pela circunstância quotidiana, mas não tem sobre tais raízes qualquer tipo de complacência. No fundo, essas memórias misturam-se com contextos vivenciais muito concretos que aproximam grande parte destes poemas de uma poesia de teor social.
   A viagem iniciada com uma queda desamparada, continuada com os seus conflitos de princípios, encalhada num jogo que já não funciona, termina num regresso à terra. Voltas à Terra, o título da última secção, instaura a estranheza. No fundo, a queda inicial corresponde ao naufrágio e à deriva da Mulher ao Mar. Assim entendida a organização dos poemas, o regresso à terra aceita correspondências e perdão. As voltas que a vida dá. O périplo, conturbado, acidentado, aqui e acolá com as suas pinceladas de tragédia e de comédia, corresponde a uma aprendizagem. Aprender, como sabemos, não significa obter certezas. Antes pelo contrário. A aprendizagem fomenta a desconfiança, esta leva à dúvida, à interrogação. A epígrafe de Rilke no antes da viagem fica com um aspecto redentor. Ela tem o aspecto de certeza «Senhor: é tempo.» , mas no fundo não passa de uma possibilidade ou, melhor dizendo, de duma declaração de princípios, mesmo que entre o senhor e o tempo estejam dois pontos e não uma vírgula. O tempo imprime a perda, contra ela nada a fazer senão uma espécie de conformação. É a vida, como se diz vulgarmente quando alguém morre. É a vida. Tomem lá uma receita:

 
TORTA
 
para o Edgar
 
Do remate do banquete fica a folha
fóssil, franja de fruto fatiado, grande bola
de calor que faz olhar atrás à cozedura
lenta, àquilo que se usou, ao tempo
e ao gás que doura e endurece
 
à morte passando, a gula permanece.

4 comentários:

Pedro Duarte disse...

Não há como ir ali à Wook e mastigar uns poemas do livro aqui lido. E concluir, como quase sempre, que o trabalho de os ler é desperdício, ou pelo menos nada traz de novo.

hmbf disse...

Olha o Pedro Duarte, sempre em cima doa acontecimento. Nada traz de novo, ora aí está algo que já não ouvíamos para aí desde Homero. Mais alguma coisa interessante a acrescentar, senhor Duarte?

Pedro Duarte disse...

Nadinha mais a acrescentar, obrigado pelo seu cuidado. Ainda bem que acha que a coisa recenseada mereceu o seu trabalho. E peça por mim desculpa ao Homero pelo incómodo.

hmbf disse...

Novidades é no Continente. A wook há muito que não tem.