quarta-feira, 10 de novembro de 2021

THE SHADOW OF YOUR SMILE (1965)

 


— Vamos almoçar fora?
— Hoje apetece-me ficar em casa, dói-me a cabeça. (E logo à noite quero ir ao concerto do Toy.)
O que se arruma entre parêntesis não se verbaliza, apenas se cogita. Imaginem se tudo quanto pensamos fosse verbalizado, era o fim da macacada. Olho para o bilhete intacto do Lee Konitz colocando a hipótese de não ter verbalizado o que então me reteve em casa, falhando o concerto no Seixal para o qual havia adquirido entrada. Tivesse ficado calado, o bilhete não estaria intacto. E eu teria ido ao concerto. Agora é tarde, falei mais do que devia. Silêncios estratégicos favorecem relações, mas não só: são meio caminho andado para momentos de alegria que esta coisa de dizermos o que pensamos transtorna. Terá tocado o tema de amor composto por Johnny Mandel e Paul Francis Webster para The Sandpiper, filme de Vincente Minnelli com Richard Burton e Elizabeth Taylor? Isto leva-me a ponderar uma noção de hipocrisia útil, tal como Platão viu na mentira uma utilidade favorável à estabilidade na república ideal. Há uma utilidade na hipocrisia que consiste em nos pouparmos a discussões desgastantes, adoptando uma postura falsa que favorece o silêncio. Será isso o cinismo? Não, o cinismo era exactamente o oposto disso. O cinismo era a verdade proferida com humor, o cinismo era a maior armadilha da hipocrisia. A merda está na frustração germinada no útero da dissimulação. Mesmo admitindo uma medida equilibrada nisto de agir ao contrário do que se apregoa, parece-me que ao fim do dia a impostura pode pesar na consciência de quem tiver consciência dela. Richard Burton a dizer que a paixão se evaporou e o amor é uma folha de outono caída no chão, prestes a transformar-se em húmus, pode ser cruel de se ouvir, mas é um alívio de se dizer quando a verdade é essa. Elizabeth Taylor fica desobrigada de fingir a paz podre em que se reinventava quotidianamente, distribuindo tarefas para disfarçar a miséria do bolor medrando nas paredes duma casa fria. Sobre nada disto era o filme, mas que interessa? Um filme é um filme é um filme. E a covid-19 levou o Lee Konitz.

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