terça-feira, 3 de maio de 2022

CINEMATÓGRAFO #8

 

Tinha tudo para dar certo. E deu. Logo a abrir escutamos a slide guitar de Ry Cooder sobre os passos apressados de um homem em paisagem inóspita. Não é nenhum lonesome cowboy a vagabundear por Monument Valley, é um homem desarmado, indefeso e indigente, nas terras áridas do deserto de Mojave. A música cativa-nos, assim como a paisagem, e o corpo magro do actor Harry Dean Stanton adquire nesse momento as feições da imortalidade. Permanecerá mudo durante largos minutos, irritando-nos até a dado momento. Aguentamos a pé firme porque, afinal, o argumento foi escrito por Sam Shepard, um dos nossos contistas favoritos (também actor, também realizador, também tantas outras coisas). Além do mais, a realização é do alemão Wim Wenders. Já nos tinha oferecido A Angústia do Guarda-Redes no Momento do Penalty (1972), Alice nas Cidades (1974), O Amigo Americano (1977). Também sabemos que lá mais para a frente há-de aparecer Nastassja Kinski, só por si vale um filme inteiro. Portanto, vários astros se conjugam a favor de Paris, Texas (1984). A gente aguenta. O que não se aguenta é A Sagrada Família, texto de Pedro Mexia que praticamente se limita a descrever o filme de uma ponta à outra. Não obstante, é lá que vamos buscar esta ideia de um filme em busca do tempo perdido. Diz o poeta: «Em 1984, Wim Wenders andava há já uma década a filmar a América profunda, e conhecia bem essas odisseias tristes, on the road, estradas, motéis, estações de serviço, em direcção à cidade dos anjos.» Pois, parece que sim. Travis, a personagem interpretada por Harry Dean Stanton, é a figura do homem em busca do tempo perdido, esse lugar inicial onde o amor foi possível. Paris, não a capital europeia, mas a pequena e desértica cidade do Texas, da qual Travis guarda uma fotografia como se fosse possível a alguém trazer consigo um postal do paraíso perdido. O resto já se sabe, famílias destroçadas, uns subjugando-se ao jogo da publicidade, outros perseguindo sonhos como utopistas na direcção de um horizonte inalcançável. Reconciliação impossível, o amor não é conciliável com o ciúme. Também há um miúdo neste filme, mas vou prescindir dele. Prefiro concentrar-me no rosto de Harry Dean Stanton fundindo-se com o de Nastassja Kinski nos reflexos sobrepostos na cabine de um peep-show. Que porra de conjugação mais improvável, tão bonita, tão triste, tão romântica.

1 comentário:

Diogo Almeida disse...

Revi há uns tempos. Achei bem mais fraco do que aos 18 anos.