Há
poetas assim,
uns gramas de aletria, fina e doce,
traficados como se fossem cocaína pura.
Alimento energético, é certo,
adequado ao passo de galope
com que esperam chegar a algum lado
e, ao mesmo tempo, agradável ao olfacto
de quem nunca suou, nem sequer a foder.
Massa
e açúcar, como disse, muito,
mas também o leitinho da infância,
um toque exótico a canela do Ceilão
e o ingrediente secreto,
que pode ser qualquer coisa
e dizem as más-línguas que é apenas
uma irreprimível vontade de parecer interessante.
Sim,
há poemas que só se assemelham
ao remate perfeito de uma consoada vulgar,
antes de cada um regressar a casa,
maldizer a família e dar início
à gestação de umas saudades nobres,
que aguardarão um ano pela matança.
Melhor
dizendo, parecem-se com tudo
menos com poesia, essa grainha
de uva alojada na cárie de um molar,
que há que suportar só com morte interior,
porque essas coisas acontecem sempre
quando todos os dentistas se mascaram de renas
e vão passar uns dias à puta que os pariu.
Miguel Martins (n.
1969), in Do Lado de Fora (Abysmo, Outubro
de 2021). Formado em Antropologia, começou por nos surpreender com um livro
onde somos deslocados para Moçambique em busca do rastro desaparecido de um
poeta obscuro que dá pelo nome de Mariano Gracias. Muhípiti (Erasmus, 1997) é obra “transgénero”, repleta de
curiosidades e com a indicação clara de um gosto irreparável pelo desconhecido,
pelo marginal, por existências cumpridas à margem de honrarias, estrelato,
foguetório de salão: «a única dignidade é ser pobre à grande e à francesa» (p.
10). Mais facilmente encontrarão neste autor taberneiros, putas e vagabundos, do
que letrados canónicos, embora ele não prescinda de grandes temas tais como o
amor ou a morte, abordados, lá está, sem pinga de solenidade, conforme ditam as
regras do estado de alma que os produz, tolhido por vezes por «beberragens
espúrias» (p. 22), noutras em diapasão intimista, com ternura ou melancolia, desesperadamente
visceral como o suicida momentos antes do tiro fatal. Miguel Martins já
publicava desde os finais da década de 1980, embora o primeiro poema viesse a
aparecer apenas em 1991, pela mão de Emanuel Félix, no defunto jornal “A
União”, da Ilha Terceira. Disso mesmo somos informados numa nota apensa a Do Lado de Fora, volume em que o disperso
se reúne e conjuga numa poesia em verso solto e despreocupado, tantas vezes
espontâneo, aqui e acolá trabalhado no metro e na rima, com o quotidiano em
pano de fundo à maneira de um Assis Pacheco em que pressentimos ser a poesia
lavagem a seco da alma. Outro verbo seria desimportantizar,
mas Alexandre O’Neill já lhe deu uso. É uma poesia semeada nessas terras áridas
da des-ilusão, isto é, como quem tem presente e não afasta a mosca do
desperdício que é a vida se não for para vivê-la. À maneira de Ruy Belo, estes
poemas surgem de uma vontade que o autor tem de viver para se matar (a viver? a escrever? não vai dar ao mesmo nestes casos?): «Morramos com os
olhos no futuro / estúpidos como sempre» (p. 21). Tudo isto é acidental. O
poema impõe-se no caos dos dias, motivado por acasos que fazem dos versos
acidentes inofensivos como lanhos: «Não há verso que leia ou reescreva / que se
distinga de um golpe ao barbear-me» (p. 26). Ainda assim, sangram.
uns gramas de aletria, fina e doce,
traficados como se fossem cocaína pura.
Alimento energético, é certo,
adequado ao passo de galope
com que esperam chegar a algum lado
e, ao mesmo tempo, agradável ao olfacto
de quem nunca suou, nem sequer a foder.
mas também o leitinho da infância,
um toque exótico a canela do Ceilão
e o ingrediente secreto,
que pode ser qualquer coisa
e dizem as más-línguas que é apenas
uma irreprimível vontade de parecer interessante.
ao remate perfeito de uma consoada vulgar,
antes de cada um regressar a casa,
maldizer a família e dar início
à gestação de umas saudades nobres,
que aguardarão um ano pela matança.
menos com poesia, essa grainha
de uva alojada na cárie de um molar,
que há que suportar só com morte interior,
porque essas coisas acontecem sempre
quando todos os dentistas se mascaram de renas
e vão passar uns dias à puta que os pariu.
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