segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

CANÇÕES

 
18
 
Bem-aventurado aquele que ausente
Do reboliço, tráfego e tumulto,
Vê de longe as perdas e insultos,
Que faz o Mundo vil da nécia gente.
Aos cuidados tem posto freio
          Mui alheio
          Do perigo
          Que consigo
          Traz a vida,
          Que embebida
No peçonhento gosto da cobiça
O fogo com que arde assi atiça.
 
Não se mantém no gosto dos favores,
Enlevado nas falsas esperanças,
Vis lhe parecem, e baixas as privanças
Dos príncipes, dos reis e dos senhores;
Por abundância tem e por riqueza
          A pobreza,
          Que imiga
          Da fadiga
          Não consente
          Descontente,
Por ver o coração, que por viver
Sem cuidado e temor quis pobre ser.
 
Pisa com peito forte e animoso
As ambições que os olhos d’alma cegam,
Despreza as vãs promessas que enlevam
Ao vão pensamento cuidadoso;
Este por mau e por perverso tive,
          E assim vive,
          Porque a vida
          Consumida
          Com cuidados
          Escusados
E sujeita a desconcertos da Ventura
Não é vida vital, mas morte pura.
 
Não tiram o doce sono as lembranças
Importunas do bem ou mal futuro;
Os vários sucessos vê seguro,
Livre de medo, insento de mudanças;
E posto que a vida breve seja,
          Não deseja
          Estendê-la;
          Goza dela
          Que parece
          Que enriquece:
Porque a vida ocupada em buscar vida,
Acha-se mal gastada e não crecida.
 
Não anda entre amigos encobertos,
A perigos imensos avisado,
Mas co ânimo constante e sossegado,
Goza dos corações leais e certos;
Quando o bravo mar furioso,
          Belicoso,
          Fogo acende,
          E pretende,
          Com estranha
          Ira e sanha
Roubar a cara paz, cá na Terra,
Com sossego está-se rindo da guerra.
 
Não ouve da trombeta temerosa
O rouco som que assombra o esforçado;
Não teme do cruel e vão soldado
A espada de sangue cobiçosa;
Nem o pelouro da espingarda saindo,
          Retinindo
          Plo ar, voa,
          Ledo, e soa;
          Mas descendo,
          Não se vendo,
Vai ferir antre muitos o coitado,
Que tal caso está bem descuidado.
 
E posto que o livre entendimento
Cativa a vista e regra a lei que segue,
E a outra vontade a sua entregue,
Refreando o errado pensamento;
Contudo, tem mais certa liberdade
          A vontade
          Que aceita
          Ser sujeita,
          Porque os danos
          E enganos
Que procedem do próprio parecer,
Senhor de si a um não deixa ser.
 
Ora da baixa terra alevanta
O esperto pensamento ao Céu fermoso,
E da vida e de si mesmo queixoso,
Morre por possuir riqueza tanta;
Ora com doces ais o Céu rompendo
          E gemendo
          Diz à morte:
          Dura sorte!
          Se vieras
          E me deras
Um golpe tão esquivo que morrera,
Por verdadeira vida te tivera.

 
Luís de Camões (1524? – 1580?)

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