sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

DE LISBOA A UM SEU AMIGO

 
   Ũa vossa me deram, a qual, pelo costume, me pôs em tamanho espanto como em contentamento, em saber novas de quem tanto as desejava; mas nem com esta vos forrareis do esquecimento que de mim tivestes em me não escreverdes antes de vos irdes.
   Antre algas novas que mandastes, vi que me gabáveis a vida rústica, como são: águas claras, árvores altas, sombrias, fontes que correm, aves que cantam e outras saudades de Bernardim Ribeiro, qua evitam faciunt beatam. Não vos nego a enveja que dela vos tenho, nem o pouco conhecimento que dela tendes, pois me dezeis que vos enfada já.
   A troco destas novas, vos darei outras desta terra, tão contrárias dessas, como esta vos dirá.
   Primeiramente digo que cá vivem os homens na mão do mundo, o que não fazem os de lá; porque, se lá tendes conta com visitar fazenda, enxertar árvores, dispor cravos, ir ver se a lagarta rói a vinha, rir das rústicas palavras dos pastores, ouvir uns não fingidos amores, os de cá hão-de ter conta com enxertar suas vidas de maneira que floreçam suas obras, porque a lagarta das más-línguas não roa a vinha das vidas alheias, e trazer sempre aparadas as palavras pera falar com quem se preza disso, cousa que eu tenho por grande trabalho, andar à discrição de amores fingidos, que os pastores lá não têm.
   E, pera verdes, digo que há cá dama tão dama que, pelo ser de muitos, se a um mostra bom rosto, porque lhe quer bem, aos outros não mostra ruim, porque lhe não quer mal.
   Em comparação desta, digo que criou Nosso Senhor o camaleão na arte [de tomar a cor] de qualquer lugar onde o põem. Ao redor de cada a destas vereis estar a dúzia de parvos, tão confiados que cada um jurara que é mais favorecido que todos. Uns vereis encostados sobre as espadas, os chapéus até os olhos e a parvoíce até os artelhos, cabeça antre os ombros, capa curta, pernas compridas; nunca lhes falta a conteira dourada, que luz ao longe. Estes, quando vão pelo sol, miram-se à sombra; e, se se vêem bem dispostos, dizem que teve muita rezão Narciso de se namorar de si mesmo. Estes, no andar, carregam as pernas pera fora, torcem os sapatos pera dentro, trazem sempre Boscão na manga, falam pouco, e tudo saudades, enfadonhos na conversação pelo que cumpre à gravidade de amor. Nestes fazem alcoviteiras seus ofícios, como são: palavras doces, esperanças longas, recados falsos. Ou vos falam pela greta da porta: como vos não falou, estava mal disposta, sentiu-a sua mãe. Porque esta é a isca com que Celestina apanhava las cien monedas a Calisto, com sua sobreinfusa.
   Outras damas há cá que, ainda que não sejam tão fermosas como Helena, são altivas, como são as beatas de São Domingos e outras que conversam os Apóstolos. Estas se geraram de viúvas honestas e de casadas que têm os maridos no Cabo verde; assim que, as por casar e outras por lhes Deus trazer os maridos, de cuja vinda elas fogem, nunca lhes escapam as quartas-feiras em Santa Bárbora, as sextas em Nossa Senhora do Monte, os sábados em Nossa Senhora da Graça, dias do Espírito Santo.
   Ũas dizem que jejuam a pão e água, outras que não comem cousa que padeça morte, e destas há algas de estofo que fazem ir a nau à Índia em três dias. Grandes capelos e hábitos de sarja, contas na mão e o olho ladrão; e haja eu perdão, porque debaixo lhe achareis mantéus debruados, gravins lavrados, jubões de holanda, alvos e justos.
   Estas não se servem com músicas suaves nem vestidos lustrosos, mas com grossas peitas, cruzados amarelos, que por dinero baila el perro; porque palavras sem mais in vanum laboraverunt.
   Os Cupidos destas não são dos bem-vestidos, que namoram com palavras; mas uns de capuzes frisados e de pelotes de petrina ao olivel do umbigo, sem pantufos. Estes medram por sisudos e dissimulados, afora as contas.
   Também cozem neste forno frades de São Francisco, que andam com as calças desatadas e os lombos recheados, e assi os de Santo Elói, que têm que dar, ainda que o Dr. Martim Vaz do Casal diz que são anexos a mulheres fidalgas, pela comunicação e conversação das confissões, e eu digo que jogam de tôdalas armas, porque todos somos del merino.
   Quanto é ao que toca a estoutras damas de aluguer, há muito que escrever delas. Alguns dirão que, como quer que nestas não há aí mais que pagar e andar, não pode haver engano. Neste jogo digo que é ao contrário, porque vereis estar um rosto que é a castidade de Lucrécia luxuriosa, a testa de alabastro, uns olhos de mordifuge, um nariz de manteiga crua, a boca de pucarinho de Estremoz; mas, o pueri, latet… E se vos disserem que estas pelam os que as têm, assentai que é fábula, porque eu vi muitos não ter nada de seu, e agora os vejo com mulas e cavalos.
   De algas conseguintes vossas amigas vos darei novas.
   Maria Caldeira matou-a o marido. Grande perda para o povo, porque reparava muitas órfãs e adubava os pagodes de Lisboa, afora outras obras de grandes respeitos. E, porque esta senhora não vivesse muito tempo no outro mundo só, se partiu pela lá Beatriz da Mota, vossa amiga.
   Deste dilúvio houveram algas destas damas medo e edificaram a torre de Babilónia, onde se acolheram; e vos certifico que são já as línguas tantas, que cedo cairá, porque ali vereis Mouros, Judeus, Castelhanos, Leoneses, frades, clérigos, casados, solteiros, moços e velhos.
   A esta torre chamaram Acolheita, pela fortaleza dela. Mas o filósofo João de Melo lhe pôs nome o Rompeu, porque é de três paus, a saber: de Francisca Gomes, a Tarifa, e Antónia Brás, afora a bola, que é Maria da Rosa. Eu o crismei há poucos dias e lhe pus o nome de Mal-cozinhado, porque sempre achareis nele que comer, quer bem, quer mal.
   E tudo od estas senhoras é brando, rostos novos e canos velhos. São boas pera ninfas de água, porque não deitam mais que a cabeça de fora.
   A rezão por que se comem estas mais  que as outras em Lisboa, é que, afora seus rostinhos, servem de foliões, que cantam e bailam tão bem que não enveja aos que El-Rei mandou chamar.
   E o pagode que se faz sem estas é da seita dos Epicuros, que punham a bem-aventurança em comer e beber; mas eu digo que o faziam, porque estas não foram em esse tempo.
   Nestas casas acharam continuamente muitos Cupidos valentes, dos quais suas alcunhas são Matadores, Matistas, Matarins, Matantes e outros nomes derivados destes, porque sempre os achareis com cascos e rodelas cum gladiis et fustibus — como se Nosso Senhor houvesse de padecer outra vez.
   Confesso-vos que estes me fazem fazer o mesmo. Estes, na prática, dir-vos-ão que
 
   Sus arreos son las armas,
   Su descanso es pelear.
 
   Mas sei-vos dizer que, se
 
   Na paz mostram coração,
   Na guerra mostram as costas,
   Porque aqui torce a porca o rabo.
 
   Como vos parece, Senhor, que se pode viver antre estes, que não seja milhor essa vida que vos enfada, essa queitação branda, com um dormir à sombra de ῦa árvore e ao tom de um ribeiro, ouvindo a harmonia dos passarinhos, em braços com os Sonetos de Petrarca, Arcádia de Sanazaro, Éclogas de Virgílio, onde vedes aquilo que vedes?
   Se a vós, Senhor, essa vida vos não contenta, vinde trocar pela minha, que eu vos tornarei o que for bem.
   E não vos esqueçais de escrever mais, porque ainda me fica que responder. Cujas mãos beijo.
 
Luís de Camões (1524? – 1580?)

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