PRISIONEIRO
Penas
pesadas da neve. (Pausa) No espaço gelado da barraca 27, na noite glacial de 15
de Janeiro de 1941, estreámos em Stalag VIII A o Quarteto que escrevi para os
precários instrumentos que lá havia: violino, violoncelo, clarinete e piano.
Estavam bastante danificados e de afinação quase impossível. Não sei
exactamente o que levou um dos guardas a passar-me papel e bocados de lápis
para eu poder compor. Ficava a vê-lo desaparecer entre os postos de vigia e era
como se a neve lhe iluminasse o uniforme gasto, as asas muito puídas. Os amigos
prisioneiros, que continuavam músicos por dentro, fizeram o resto, o que
puderam, e puderam tanto… Expliquei que era o Quarteto para o Fim dos Tempos e
que me inspirara numa passagem do Apocalipse, e todos percebiam porquê. Nessa
passagem um anjo anuncia que o tempo acabou, e todos percebiam porquê. Os
prisioneiros ouviram, num silêncio que nunca mais encontrei, os ritmos furiosos,
as frases impossivelmente distendidas, olhavam às vezes para o comandante do
campo e os oficiais na primeira fila, que se esforçavam por esconder o
incómodo. Os pássaros ajudavam a nossa libertação, cantam a abrir o primeiro
andamento, entre as poeiras harmoniosas de um céu que sabemos estar por lá,
sobem da voragem de um abismo um pouco mais tarde, voam para a luz que os
criou. Sei que é assim, a minha música sabe que é assim, quis explica-lo ao
vivo naquele barracão de um campo da morte. (Pausa. Palavras ditas de forma
absorta) O mundo quase não resiste à inocência de tantos pássaros, escutem a
crosta dura do mundo, parece estalar como um ovo.
José
Manuel Teixeira da Silva, in Penas Pesadas da Neve, Companhia das Ilhas,
Dezembro de 2023, p. 26.
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