segunda-feira, 18 de março de 2024

ANTÓNIO AMARGO. QUEM?

 


António Amargo, pseudónimo de António Correia Pinto de Almeida (Figueira da Foz, 1886 – Lisboa, 1933), foi um jornalista, escritor e poeta satírico cuja pena afiada verteu sangue pelas páginas do jornal Gazeta da Figueira, A Capital e Imprensa da Manhã. Colaborador do jornal humorístico Palhinhas, que surgiu em 1915 na Figueira da Foz, escreveu letras para Alfredo Marceneiro, parodiou Os Lusíadas em Republicaníadas (1913) e deu à estampa uns Sonetos Minero-Metálicos (1917) que são hoje referência do futurismo português. No livro António Amargo. Quem? (Xerefé, 201), Ana Biscaia coligiu um pouco de cada uma destas vertentes do autor, ilustradas pelos traços de André Ruivo, Marta Madureira, Rita Carvalho e Sebastião Peixoto. Volume exemplar, quer pelo design impecável, quer pelo trabalho de recuperação de um autor que conserva, a despeito de referências aqui e acolá datadas, uma pertinência atroz:
 
A NOSSA SITUAÇÃO
 
   Estamos positivamente em calmaria podre…
   Ao tranquilo e azulino lago que se chama Portugal, mal chega o rumor da procela que se desencadeou ferozmente na Europa, apenas chegam os rugidos longínquos dessa tempestade funesta, provocada não pelo furor dos elementos, mas pela fúria dos povos e pela insânia dos governantes.
   No nosso risonho país continua-se a respirar o ar puro, embalsamado ainda pelos mil aromas primaveris, que a canícula não secou de todo; e lá ao longe a atmosfera, carregada do cheiro do sangue e impregnada do perfume denso da pólvora, tornou-se quase irrespirável, ameaça asfixiar as ânsias de liberdade, agrilhoada à disciplina militar, que manda ir matar em nome da civilização e à ordem dum ambicioso.
   Nós agora, apertados uns contra os outros neste dourado rincão privilegiado, nem sequer vivemos a nossa própria vida: o nosso corpo continua vegetando aqui, dentro das fronteiras; mas a alma paira além, no teatro da guerra, a imaginação adeja sobre esse tremendo vulcão aberto subitamente no centro da Europa. É lá, nos campos da Bélgica, nas planícies fecundas do mar do Norte ou nas ondas serenas do Mediterrâneo, nas cumeadas dos Vosges ou nas fronteiras da Polónia, nas terras simpáticas da Alsácia ou na pequenez heróica da Sérvia, que nós vivemos a nossa vida espiritual, a nossa verdadeira vida, que é aquela que se vive com o sentimento e com o coração!
   Acima dos terríveis
zepelins e dos ágeis e arrojados aeroplanos, voa também o aeroplano da nossa fantasia, revendo batalhas cruentas, reconhecimentos audaciosos, marchas e contra marchas estratégicas, e ouvindo o rugido tonitruante do canhão que se casa com o estalido dos fuzis e com os estertores dos que caem aqui e ali para não mais se levantar, e que levarão talvez nos lábios uma imprecação contra a civilização que os obriga a morrer, quando lhes sorria ainda tão fagueira a existência!
   Enlevados nesta fantasia vivendo lá mesmo nos campos de operações, e assistindo ao desenrolar das peripécias dessa luta de titãs embrutecidos, deixámos de viver a nossa vida caseira e de compadrio, tão caracteristicamente nossa. Tal, que ontem reendireitava as finanças nacionais, dá hoje às suculentas lições de táctica militar; aquele, que na véspera, se fosse governo, salvava a Pátria, agora, se fosse general, tomava Liége como quem em dias quentes toma um capilé gelado; esse outro, que era capaz de mostrar aos nossos dirigentes o caminho único a seguir, ensina hoje aos
aliados o caminho fácil de Berlim; aquele outro ainda, vence uma poderosa esquadra alemã no mar do Norte com a mesma certeza com que dois dias antes se propunha vencer uma eleição.
   Ninguém pensa em si, ninguém cuida de nós: todos à uma, cá desta sossegada
geral da plateia europeia, só temos ouvidos e olhos para ouvir e ver o que se passa no grande palco sangrento e improvisado.
   Estamos, pois, em calmaria podre…
   Enquanto lá fora rolam as vagas alterosas e vocifera terrível a tormenta, cá dentro, neste remanso bendito, é tanta a clama, que até se suspendeu a vida própria para viver a vida alheia!...
   Triste missão, a do jornal de província, que tem que sair bi-semanalmente… sem ter que dizer!
   Falta-nos a matéria-prima, a má-língua, a discussão, a polémica… estamos desarmados.
   Que os leitores, absorvendo dia a dia o capitoso e violento licor dos
colossos bem informados, nos perdoem esta chavenazinha de chá fraco que lhe enviamos a casa todas as quartas e sábados.
   Servirá ao menos para lhes desgastar o estômago das apimentadas  comidas da guerra…

 
In Gazeta da Figueira, Agosto de 1914.


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