Eu conheço-os, sei quem são, sentei-me à mesa com eles, vimos a bola juntos, frequentamos os mesmos cafés, cruzamo-nos na rua, sim, eu sei, são primos, gente chegada, até amigos, de outrora, de agora, cheios de raiva, consumidos pelas frustrações pessoais, explorados em empregos de merda, na loja do shopping, sim, onde foram parar com currículos medíocres depois de uma vida inteira a cuspir nos livros, ler para quê, estudar para quê, pois se até os professores são infelizes, sim, têm irmãos que queimaram as pestanas para acabarem como caixas de supermercados, parvalhões, mais valia terem emigrado, arranjavam um trabalho de merda na Suíça a ganharem o dobro ou o triplo do que ganham cá, a limpar a merda dos outros, a servir à mesa, a apanhar batatas, a fazer camas nos ferries, a ladrilhar o chão que alguém há-de pisar, cá não, isso é para os monhés, que o trabalho é bom para o preto e eu sou filho de boa gente, até fui baptizado, cá a gente arranja amigos, mete uma cunha, dedica-se à sucata, constrói uma vivenda a fugir aos impostos e faz uma piscina com os fundos sacados ao Estado, que Deus Nosso Senhor mandou-nos ser bons mas não mandou ser parvos, cá a gente glorifica os carvalhos e os vieiras e os berardos, frequentamos as quintas de uns e as sextas dos outros, arranjamos um bom partido e adoramos o senhor doutor, o senhor engenheiro, até que caiam na desgraça e se afundem para nosso espanto, quem diria, tão boas pessoas, amigos de seus amigos, isto, enfim, uma pessoa já nem sabe com o que pode contar, e siga, um Mercedes para exibir na aldeia, uma moto quatro para entreter os fins-de-semana, férias no Algarve, mariscadas, bola e toiros e Quim Barreiros, tasquinhas, feiras medievais e passadiços, uma paisagem deslumbrante no miradouro com balancé panorâmico e faz-se a festa, que à noite temos novo episódio do Quem quer casar com o agricultor?, e temos a Cristina e o Goucha e a CMTV com um desfile de crimes para entreter as horas a destilar o ódio aos pretos, aos ciganos, que isto já não se pode andar na rua, não fossem os bombeiros e a polícia o que seria de nós, de nós e da Mónica Silva, desaparecida para encher noticiários, a nossa telenovela da vida real, sim, eu sei, isto aqui está tudo bem, são vidas, ai que gente, e ele é o macaco, golo, ele é o Pinto da Costa, um senhor, até diz poemas de cor, ele são 25 mulheres assassinadas, enfim, algumas, eh pá, eu não sou machista, mas algumas estavam a pedi-las, eu não sou racista, até tenho amigos, pronto, assim pretos, não é, que isto cada um é como cada qual, entre marido e mulher não metas a colher, vai para a tua terra, a minha terra é aqui, é isto, eu sei, tanto Abril, tanta educação, somos os melhores na bola, o Mourinho já deu o que tinha a dar, o Ronaldo já deu o que tinha a dar, venha daí um novo Salazar, um em cada esquina, que este país está a precisar é de um novo 25 de Abril com um Salazar em cada esquina, para acabar com os corruptos, os outros, não eu, que eu sou bom tipo, não faço mal nem a uma mosca, não me meto em esquemas nem conheço quem meta, não sei, não vi, não ouvi, isso não é comigo, não tenho nada que ver com isso, deixem-me em paz, deixem-me em paz antes que parta esta merda toda, agora nem casa tenho, vou comer pizza, vou para fora, vou para fora cá dentro, vou ver o RAP, vou, sei lá, comer uma bifana e arrotar postas de pescada.
terça-feira, 19 de março de 2024
EU CONHEÇO-OS
Eu conheço-os, sei quem são, sentei-me à mesa com eles, vimos a bola juntos, frequentamos os mesmos cafés, cruzamo-nos na rua, sim, eu sei, são primos, gente chegada, até amigos, de outrora, de agora, cheios de raiva, consumidos pelas frustrações pessoais, explorados em empregos de merda, na loja do shopping, sim, onde foram parar com currículos medíocres depois de uma vida inteira a cuspir nos livros, ler para quê, estudar para quê, pois se até os professores são infelizes, sim, têm irmãos que queimaram as pestanas para acabarem como caixas de supermercados, parvalhões, mais valia terem emigrado, arranjavam um trabalho de merda na Suíça a ganharem o dobro ou o triplo do que ganham cá, a limpar a merda dos outros, a servir à mesa, a apanhar batatas, a fazer camas nos ferries, a ladrilhar o chão que alguém há-de pisar, cá não, isso é para os monhés, que o trabalho é bom para o preto e eu sou filho de boa gente, até fui baptizado, cá a gente arranja amigos, mete uma cunha, dedica-se à sucata, constrói uma vivenda a fugir aos impostos e faz uma piscina com os fundos sacados ao Estado, que Deus Nosso Senhor mandou-nos ser bons mas não mandou ser parvos, cá a gente glorifica os carvalhos e os vieiras e os berardos, frequentamos as quintas de uns e as sextas dos outros, arranjamos um bom partido e adoramos o senhor doutor, o senhor engenheiro, até que caiam na desgraça e se afundem para nosso espanto, quem diria, tão boas pessoas, amigos de seus amigos, isto, enfim, uma pessoa já nem sabe com o que pode contar, e siga, um Mercedes para exibir na aldeia, uma moto quatro para entreter os fins-de-semana, férias no Algarve, mariscadas, bola e toiros e Quim Barreiros, tasquinhas, feiras medievais e passadiços, uma paisagem deslumbrante no miradouro com balancé panorâmico e faz-se a festa, que à noite temos novo episódio do Quem quer casar com o agricultor?, e temos a Cristina e o Goucha e a CMTV com um desfile de crimes para entreter as horas a destilar o ódio aos pretos, aos ciganos, que isto já não se pode andar na rua, não fossem os bombeiros e a polícia o que seria de nós, de nós e da Mónica Silva, desaparecida para encher noticiários, a nossa telenovela da vida real, sim, eu sei, isto aqui está tudo bem, são vidas, ai que gente, e ele é o macaco, golo, ele é o Pinto da Costa, um senhor, até diz poemas de cor, ele são 25 mulheres assassinadas, enfim, algumas, eh pá, eu não sou machista, mas algumas estavam a pedi-las, eu não sou racista, até tenho amigos, pronto, assim pretos, não é, que isto cada um é como cada qual, entre marido e mulher não metas a colher, vai para a tua terra, a minha terra é aqui, é isto, eu sei, tanto Abril, tanta educação, somos os melhores na bola, o Mourinho já deu o que tinha a dar, o Ronaldo já deu o que tinha a dar, venha daí um novo Salazar, um em cada esquina, que este país está a precisar é de um novo 25 de Abril com um Salazar em cada esquina, para acabar com os corruptos, os outros, não eu, que eu sou bom tipo, não faço mal nem a uma mosca, não me meto em esquemas nem conheço quem meta, não sei, não vi, não ouvi, isso não é comigo, não tenho nada que ver com isso, deixem-me em paz, deixem-me em paz antes que parta esta merda toda, agora nem casa tenho, vou comer pizza, vou para fora, vou para fora cá dentro, vou ver o RAP, vou, sei lá, comer uma bifana e arrotar postas de pescada.
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