terça-feira, 24 de dezembro de 2024

UM POEMA DE ZBIGNIEW HERBERT

 


BIOGRAFIA

Eu era um rapaz calado algo sonolento - e coisa estranha -
contrariamente aos meus colegas que adoravam aventuras
não tinha grandes expectativas nem espreitava pela janela

Na escola - mais trabalhador que brilhante obediente sem problemas

Depois uma vida normal num posto de funcionário
levantar cedo rua eléctrico escritório de novo eléctrico casa dormir

Não sei deveras não sei de onde me vem este cansaço desassossego tormenta
sempre e até agora que tenho direito a descansar

Sei que não fui muito longe - não alcancei nada
coleccionei selos ervas medicinais não jogava mal xadrez

Estive no estrangeiro - de férias - no Mar Negro
na fotografia com chapéu de palha rosto bronzeado - quase feliz

Lia o que tinha à mão: socialismo científico
viagens espaciais máquinas capazes de pensar
e do que mais gostava era: livros sobre a vida das abelhas

Como os demais queria saber o que me aguardava após a morte
se teria uma casa nova e se a vida faria sentido

Mas acima de tudo queria distinguir o bem do mal
saber ao certo o que é branco e o que é todo preto
Alguém me recomendou a obra de um clássico - como dizia -
mudara a sua vida e a vida de milhões de pessoas
Li - nada mudou em mim - envergonho-me de confessar
que me esqueci de todo como se chamava esse clássico

Talvez não tivesse vivido - apenas perdurado - atirado contrafeito
para algo difícil de dominar e impossível de conceber
como uma sombra na parede
mas isso não era viver
viver em plenitude

Como poderia explicar à minha mulher e aos outros também
que envidava todos os esforços
para não fazer disparates não ceder a insinuações
não confraternizar com os mais fortes

É verdade - sempre fui insípido. Mediano. Na escola no exército
no escritório na minha própria casa e nos serões de dança.

    Agora deitado numa cama de hospital morro de velhice.
    Aqui também o mesmo desassossego a mesma tormenta.
    Se voltasse a nascer talvez fosse um homem melhor.

De noite acordo transpirado. Olho para o tecto. Silêncio.
E de novo - mais uma vez - com a mão cansada até ao tutano
esconjuro os espíritos maus e invoco os bons.

Zbigniew Herbert, in Poesia Quase Toda (1956 - 1998), introdução de J. M. Coetzee, selecção de J. M. Coetzee e Alissa Valles, tradução do polaco e notas de Teresa Fernandes Swiatkiewicz, Cavalo de Ferro, Outubro de 2024, pp. 313 - 314.

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