sábado, 22 de fevereiro de 2025

CABEÇA ATADA

 
No último dia da Feira do Livro de Lisboa, em data de 10 de Junho de 1991, dia de Camões, o poeta, com a cabeça envolta numa larga faixa de pano branco, desafiando a seriedade daquele espaço dedicado à cultura, escreve com tinta e pincel, num cartaz, a mensagem: “BASTA UM OLHAR EM REDOR PARA NOTAR QUE NINGUÉM PERCEBEU QUE CHAMA CULTURA À CABEÇA ATADA”. Depois, sobe a um banco, tira do bolso um exemplar de seu livro “O Silêncio dos Poetas”, antes de declarar, conforme registra O Jornal, de 14 de Junho de 1991:
 
«Tantos anos de que eu precisei para entender por que é que as aflitivas cabeças desse ramo da ordem chamado cultura aprovaram este meu livro: porque embora ele vá contra a cabeça atada, sempre é um acto da cabeça. Aprovando este e reprovando o resto, insinuam que eu podia ser um homem da cultura como eles; não perceberam que eu gosto mais de ser só um homem. Todos pretenderam sempre fazer da arte um modo de cultura, quer dizer, fazer duma liberdade do indivíduo uma virtude da sociedade. Até os próprios artistas, não só os filhos da puta confessos, desde Platão até Freud. Simbolicamente, isto é, pelo nome, estão todos aqui dentro. Que deus lhes abra o reino dos céus: não faz mais que cumprir o que prometeu.» E dito isto pega fogo ao livro que tem na mão […]. Atraído pelo ajuntamento, há um polícia que vem espreitar, mas sem consequências. Com ar compenetrado, o poeta aguarda em silêncio que o fogo destrua por completo a sua obra. E quando, longos minutos depois, as chamas se extinguem no improvisado altar, Pimenta olha em volta e lança a última provocação da noite: «Agora que isto acabou, podeis ir ler outro. Ite, poesia est. O vosso destino é comer e cagar.» E foi-se embora.
 
Rogério Barbosa da Silva, in “Com Licença, Desarrumo-te o meu perfil: a mineração das palavras na poesia de António Aragão, Alberto Pimenta e Affonso Ávila. In TRANSLOCAL – Culturas Contemporâneas Locais de Urbanas, n.º 4, 2021, coord. Ana Salgueiro.

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