domingo, 14 de setembro de 2014

QUATRO VOZES UM DIA À VEZ


1.
No princípio havia o campo e os lavores,
éramos oito irmãos e um que morreu,
o pai a monte, a mãe aflita e sempre alguém
adoecia, e foi quando se meteu para Lisboa
para tratar uma com mais complicações;
acharam felizmente onde servir
e então viemos todos a seguir. Eu
com jeito para coser, idade para namorar,
afeiçoei-me, tive sorte, arranjei bom marido,
bons sogros. Foi ele à frente, já nascida a filha,
tentar a sorte para o ultramar, pôs-nos casa,
mandou-nos chamar, Angola, tão diferente,
outros modos de ser livre, de ter sol, nem
notei nunca que um preto quisesse mal à gente
quando ia lá às sopas do jantar, saíamos
sempre aos fins de semana, há uma foto
em que eu estou de fato de banho a pescar;
casou mal o meu rapaz, não sei onde anda,
mas há que precaver o que deixamos
criei 3, tenho 6 netos, 2 bisnetos
e aos 85 anos tanto ainda que fazer.

2.
Nunca quis dar desgostos a meus pais
e tenho hoje duas filhas que não espero ver,
mas nunca disse mal de ninguém e não
peço mais para mim: mesa para comer, cama 
para dormir, casa onde viver - a minha agora,
à R. das Canastras, é grande, e eu por aqui
ando desde que morreu o pai e fugi e deixei
para lá a guardar gado o homem que era ruim
e me fazia desgraçada. Vim servir e tanto tempo
me faltaram tecto e condições, e chegou Abril
e eu ajudei a União dos Trabalhadores mas
não quis ocupar nunca, antes fui
pagar com o meu dinheiro e um empréstimo
de cento e dez contos ao banco na altura
gostei do ar da revolução, mas me desapego
hoje destas ruas onde cheira a falta
de respeito e podridão. Por isso mais
fico onde me sinto em família
com o meu filho e o meu neto e as arrelias
da minha nora. Fiz de tudo
para não passarmos fome. Não aprendi
a escrever mas apanho bem as legendas,
só me custa quando tenho de assinar o nome.

3.
Menina fui levada de casa de meus pais,
mas melhor sorte achei que a moça
do Bernardim; sempre tive bom trato
e sempre gostaram de mim. Mais:
fiz o que quis, não fiquei por casa
a ser prendada porque era amiga da rua,
de bailes e vara larga, e tanto o ar
me faltava que o meu tio acedeu
a montar um estabelecimento onde eu
pudesse trabalhar. Tirei cursos, guardei
livros, e pus-me cedo a namorar com o rapaz
que desde os catorze anos montou cerco
à minha casa. Ora, já na altura eu pela rua
o catrapiscava, pelo que foi "ver-te
e amar-te". Muito felizes fomos até
que lhe veio a morte. Tínhamos um cão
que gostava de dar cabo do terraço.
Por entre visitas de filhos e vizinhos,
cultivo a leitura e as minhas quadras,
semeio canteiros, e ainda conversamos muito
os dois, dou os meus passeios e depois
com doçura conto-lhe, para que se lembre.

4.
Eu cá nasci do nada e fui criada
por um funileiro que tinha mão de artista
mas que todos sabiam não ser meu pai,
e há quem diga que fui filha
de ciganos ou comunistas. Não sei
da história da mulher que pôs em verso
uma mosca a zumbir quando morreu,
e se viu jazer, a gente à volta e fosca
a luz, posto que aberta ainda
a janela; sei, porém, do insecto insolente
que ciranda em dias e se enrosca
adentro do que nos cerca e nos traz sós.
Mas mal ou bem, não troco
este presente, um dia à vez, sentir
a minha fibra, mau grado os ossos fracos -
antes ouço a corda de aço que em mim vibra.


Margarida Vale de Gato (n. 1973), in Mulher ao Mar - Retorna (2013). «Trata-se de uma poesia dotada de uma perícia quase virtuosa na construção, na invenção métrica e vocabular, e no uso lúdico, irónico, parodístico e evocativo das formas e dos tópicos temáticos da tradição literária. Ou seja, é uma poesia altamente culta, mas que sabe dissimular muito bem, e tornar produtivo, aquilo que de outra maneira seria pesado e esterilizante. Não se trata, portanto, de um talento a funcionar no vazio ou na contemplação deslumbrada de si mesmo. O que aqui há de lúdico – e é muito – nunca sucumbe à frivolidade e ao gratuito. É um jogo pouco inocente e capaz de esconjurar os perigos dos discursos psico-sociológicos sobre a diferença sexual e as construções culturais que legitimam a dominação masculina. (…) Esta é uma poesia que se escuda num segundo grau, não por via da reflexividade que o modernismo herdou do romantismo teórico, mas por via de uma distância salvífica em relação à matéria de que trata (a sua “matéria de Bretanha” é a mulher e o feminino), não por cinismo ou ironia. E é nessa distância que reside precisamente a inteligência ‘política’ – que é também uma inteligência literária – desta poesia» (António Guerreiro, Expresso, 19 de Junho de 2010).

2 comentários:

Marina Tadeu disse...

Muito obrigada Henrique. Para mim estas quatro vozes põem a Carmina Burana a um canto.

hmbf disse...

"sempe" às "ordes"