sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

GÉNIOS HÁ POUCOS



   Vincent van Gogh deve ser o pintor mais vezes retratado cinematograficamente. Cá em casa moram Van Gogh (1991), de Maurice Pialat, numa antiquada VHS, e Lust for Life/A Vida Apaixonada de Van Gogh (1956), de Vincente Minnelli e George Cukor, num sofisticado DVD (ok, ok, bem sei que o DVD também já caiu em desuso). Gosto mais do francês, com Jacques Dutronc no papel do malogrado pintor. Curiosamente, o americano arrecadou um Oscar para melhor actor secundário: Anthony Quinn no papel de Paul Gauguin. Coube a Kirk Douglas fazer de Van Gogh.
   Alain Resnais abordou o tema em Van Gogh (1948), a curta documental que mereceu uma estatueta da academia norte-americana. Está disponível no Youtube. Mais recentemente, pudemos ver o belíssimo filme de animação de Dorota Kobiela e Hugh Welchman com o título Loving Vincent/A Paixão de Van Gogh (2017). Não vi Van Gogh: Painted with Words (2010), de um tal Andrew Hutton, mas o trailer não me inspirou curiosidade, apesar do papel principal ter ficado a cargo do excelente Benedict Cumberbatch. Há outros, de Paul Cox, de Robert Altman, e sabe-se lá de mais quantos.
   Eis que chegamos At Eternity’s Gate/À Porta da Eternidade (2018), de Julian Schnabel. O que podemos esperar sobre Van Gogh que não nos tenha sido já oferecido? Schnabel é um especialista no filme biográfico, tendo abordado outro pintor num filme de boa memória: Basquiat (1996). Dediquei-lhe algumas palavras em tempos, para sublinhar a sua inclinação por personalidades complexas. Em Before Night Falls/Antes que Anoiteça (2000) retratou o escritor cubano Reinaldo Arenas e em Le scaphandre et le papillon/O Escafandro e a Borboleta (2007) baseou-se na vida de Jean-Dominique Bauby, ex-director da revista Elle. São filmes esteticamente diferentes deste último sobre Van Gogh, muito mais lineares e convencionais no modo de colocar a câmara.
   À Porta da Eternidade tenta oferecer à imagem cinematográfica os movimentos bruscos da pintura de Van Gogh, adoptando amiúde efeitos visuais e sonoros que parecem pretender reproduzir a mente perturbada e atormentada do pintor. O efeito é inspirador, nomeadamente se tivermos em conta as dificuldades que, neste caso em particular, o movimento da pintura coloca à imagem em movimento do cinema. Como fixar o movimento de uma coisa fixa? Paradoxo? Antinomia? Este é, sem dúvida, o desafio que Van Gogh colocou a si mesmo, percebendo-se que Julian Schnabel não lhe tenha querido fugir. Antes pelo contrário, adoptou-o para si oferecendo-nos sequências de fotografias, alternando entre o close-up e a paisagem, e planos-sequência em constante movimentação.
   Coube a Willem Dafoe, um dos melhores actores da sua geração, o papel de Vincent van Gogh. Pode parecer estranho que um homem com 63 anos interprete um pintor que morreu aos 37, mas é bem provável que o corpo de Van Gogh aos 37 não fosse muito diferente do de Dafoe aos 63. Actor fetiche de Julian Schnabel, entrou em praticamente todos os seus filmes. Tem um rosto peculiar que assenta que nem uma luva neste papel, desempenhado num registo que consegue o equilíbrio dos desequilíbrios da personagem. Ora paranóico, ora afectuoso, aqui desesperado, além místico, Dafoe é o meu Van Gogh preferido. O diálogo com Mads Mikkelsen, a fazer de padre, nos claustros do hospício de Saint-Rémy, dificilmente passará despercebido a quem aprecie os mistérios da genialidade.

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