O artista plástico Julian Schnabel (1951) estreou-se no cinema em 1996, com um filme sobre Jean-Michel Basquiat (1960-1988). Seguiu-se Before Night Falls (2000), tendo como pretexto a vida do escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990). A opção por histórias verídicas manteve-se em Le Scaphandre et le papillon (2007), desta feita centrado na tragédia de Jean-Dominique Bauby. Bauby era editor da revista Elle antes de ter sofrido um AVC. Com uma paralisia praticamente geral, sobrou-lhe um olho, o olho esquerdo, para comunicar com o mundo. Servindo-se simplesmente desse olho, conseguiu ditar um livro onde descreveu o seu mundo: «Doem-me os calcanhares, a cabeça pesa-me toneladas, todo o meu corpo está metido numa espécie de escafandro. A minha tarefa agora é redigir notas de viagens imóveis de um náufrago encalhado nas praias da solidão». É esta ideia do “náufrago encalhado nas praias da solidão” que me interessa particularmente no filme de Schnabel, até porque me parece que ela é extensível aos personagens dos seus filmes anteriores: o escritor homossexual e proscrito, o artista desassossegado. Cada um destes personagens foi, à sua maneira, um náufrago encalhado nas praias da solidão. Basquiat morreu muito novo, viciado em heroína. Arenas conseguiu fugir à ditadura cubana, vindo a suicidar-se nos EUA depois de saber que tinha SIDA. Bauby morreu condenado a comunicar com o mundo através de um olho, um único olho que, pestanejando, conseguia responder sim ou não às perguntas mais simples. Mas também conseguiu ditar todo um livro, o seu livro, o livro interior de uma situação-limite. Karl Jaspers chamava às situações-limite situações «que não podemos transpor nem alterar», são situações que delimitam a nossa condição humana, impondo-nos fronteiras das quais não escapamos, são situações que transcendem o domínio da nossa liberdade. «Tenho que morrer, tenho que sofrer, tenho que lutar, estou sujeito ao acaso e incorro inelutavelmente em culpa», dizia Jaspers. Mas acrescentava que o espanto provocado por estas situações era a origem mais profunda da filosofia. Perante uma situação-limite o homem tem duas hipóteses: ignorar ou questionar-se. «As situações-limite – morte, acaso, culpa e insegurança – mostram o fracasso. Que farei eu perante este fracasso absoluto a cuja intuição me não posso furtar se honestamente o apreendo?» Cada uma das personagens dos três filmes de Julian Schnabel terá respondido a esta questão de um modo diferente. A personalidade autodestrutiva de Jean-Michel Basquiat não é comparável à obstinação de Reinaldo Arenas, nem nenhum destes dois pode ser pensado à luz das privações extremas experimentadas por Jean-Dominique Bauby. Mas todos eles se cruzam num aspecto essencial: são náufragos encalhados nas praias da solidão. O náufrago não é aquele que está perdido, nem mesmo aquele que se sente perdido, não está em queda nem em ascensão, não vive num limbo, é apenas humano, mas é um humano que toma consciência da situação-limite em que vive, não a ignora. Julgo que todas as pessoas terão tal consciência, nesta ou naquela experiência de vida, embora viver permanentemente com a consciência da situação-limite em que se vive seja algo completamente diferente. Se entendermos o naufrágio como um acidente, o náufrago será aquele que participa do acidente. Nascer é o primeiro acidente do qual o náufrago participa. Morrer, o último. Entre o nascimento e a morte há todo um novelo de acidentes que se desenrola. A isso chamamos vida. Muita gente vive sentindo-se ancorada, não tendo consciência do naufrágio em que vive, disfarçando esse naufrágio com um sonambulismo ingénuo que até pode ser consolador. No entanto, a vida assemelha-se a um novelo de acidentes sobre os quais, enquanto participante, o náufrago pode assumir diversas posturas. Dependerá dos acidentes e da forma como cada indivíduo se coloca perante a vida. A pior postura de todas será, julgo eu, querer arrastar os outros para os nossos próprios acidentes, sobretudo se isso acontecer por manifesta incapacidade de enfrentar as tempestades que nos colhem, desassossegam e inquietam. Se pensarmos na solidão como uma situação-limite, uma dessas situações que Jaspers definia como sendo inultrapassáveis mas impulsionadoras de espanto e de questionamento, se pensarmos na solidão dessa forma, então o náufrago que encalha nas praias da solidão é aquele ao qual apenas resta uma de duas hipóteses: acomodar-se à praia onde encalhou ou enfrentar a agitação das marés tentando superar a sua condição. Pode fazê-lo de várias formas: droga-se, luta teimosamente pela sua liberdade, mata-se, cria, etc. Nos filmes de Schnabel nenhum deles optou pela acomodação, e isso é verdadeiramente espantoso tendo em conta o destino desgraçado dos três. Dizia hoje ao almoço que o que há de verdadeiramente espantoso na vida não é o inexplicável. O milagre não é o inexplicável. Milagre é encontrarmos explicação para alguma coisa, isso sim é milagroso, excepcional, raro e único. Ora, é absolutamente milagroso um homem encontrar uma explicação para os seus naufrágios. Seja qual for a opção na sequência dessa descoberta, ele nunca deixará de ser um náufrago, ou seja, alguém que participa dos acidentes da vida. Mas poderá sê-lo suspirando à hora da tempestade ou estrebuchando, no limite das suas energias, na senda de uma nova situação.
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