sexta-feira, 6 de setembro de 2019

FALAR COM O OLHAR

Em quase tudo podemos encontrar um lado bom e um lado mau. Não em tudo, como vulgarmente se diz. Não sei o que possa haver de bom, por exemplo, na perda de um filho. Mas na generalidade das coisas a gente consegue encontrar dimensões aparentemente contraditórias, os pilares sobre os quais a realidade vai sendo erguida. Penso nisto a propósito do regresso ao Facebook, depósito de lixo, execrável máquina de propaganda ao serviço da desinformação e da mentira, motor gerador de equívocos. O Facebook é como aquelas máquinas de alongamentos num ginásio, obriga-nos a um esforço tremendo, tantas vezes inglório, mas que de algum modo ajuda a tonificar os músculos do debate e da discussão. Ou ficamos sem paciência nenhuma ou ficamos com uma paciência de Jó. Este é o lado mau, este é o lado bom. Como preferirem. Mas há um lado inegavelmente bom nestas redes comunicacionais, um lado inesperado e singelo que passa quase despercebido. A partilha de instantâneos, por exemplo. 
Para o caso, roubo duas imagens. Aquela ali ao lado foi partilhada pelo meu amigo António Ramalho, a outra mais abaixo foi partilhada pela Marina Tadeu. Não sei porque gosto tanto destas duas imagens, é-me difícil exprimi-lo. Tenho a certeza que me transmitem sensações muito fortes, mas como expressá-las? Ouvimos dizer, vezes sem conta, que vivemos num mundo de imagens, que toda a comunicação está hoje intoxicada pela imagem. Este discurso é em si mesmo altamente tóxico, já que as imagens só intoxicam quem não tiver filtros para elas. E os filtros, creio, mantêm a origem. A palavra ajuda a filtrar a imagem, na medida em que lhe oferece um sentido mesmo quando o sentido da imagem é a total ausência de sentido. A palavra transforma a imagem em linguagem. Na primeira das imagens aqui partilhada podemos observar muita coisa, podemos concentrar-nos no enquadramento, falar do jogo de luz e sombra, podemos formular todo um discurso sobre o contraste do rosto pintado na parede e do corpo físico sentado ao pé desse rosto. A realidade mistura-se com a ficção nesta imagem, o equilíbrio impressiona-me por sentir ali alegria e tristeza, transformação, o prazer, representado pela bebida, a distanciar-se do corpo como de um corpo se distancia a vitalidade. Aquele homem ali sentado é uma espécie de sombra do rosto velho, mas feliz, desenhado na parede, sabemos que aquele homem está a transformar-se no rosto que o encima. Há uma espécie de projecção, continuidade.


Nesta outra imagem temos já a morte representada por um acumulado caótico de lápides. Tudo quanto sobrará de nós está ali, com um pormenor altamente dignificante. O corpo físico que na ponta superior direita olha para o alto. Quase não se vê, mas está lá. Este resquício de vida quase imperceptível num aglomerado de morte faz-me pensar em muitas coisas, a mais forte das quais é o modo como interpretamos a nossa passagem pelo tempo e a relação que mantemos com aquilo que passou e se perdeu. Há pessoas que falam da actualidade comparando-a com o passado, sem saberem minimamente como era a actualidade do tempo a que se referem. O que sabem foi o que sobrou, trabalho de conservação, o que têm desse passado é já uma construção histórica que excluiu, varreu, limpou. O passado chega-nos sempre desinfectado, expurgado, aliviado do lixo dos dias que tanto nos atrofia no presente. Mesmo agarrando numa arte relativamente recente como o cinema, para um filme de génio exibido em 1950 a gente encontra milhares de filmes de merda estreados nesse mesmo ano. A História tende a esquecer a merda, construindo um passado de sonho para nostálgicos e saudosistas. Seria altamente pedagógico encontramos uma História da Merda para ficarmos mais cientes do que andamos a fazer no mundo, não de agora, não de ontem, mas de sempre. Desse lado rasurado pelo tempo, todo esse universo esquecido, apagado, enterrado, cremado, ressuscitam por vezes breves ecos. Estes dois instantâneos fazem-me pensar nisso mesmo. De uma forma talvez involuntária captam com extraordinária argúcia a linguagem do tempo. Acho que é isso que me toca tantos nestas duas imagens. Ou então são apenas meras imagens sem significado nem sentido. Mas se assim for, por que resolveu alguém partilhá-las? E por que me dizem tanto? Alguém viu nelas algo de especial, eu também vejo nelas algo de especial. Esse ver denota já um discurso, isso é reconfortante num mundo como o de hoje. Que alguém consiga falar olhando. Cliquem para lerem melhor. 

8 comentários:

Gustavo Behr disse...

Que post tao bom. Força na volta ao FB. Estou sempre a pensar em deixa lo. Posts e blogs como o seu apenas reforçam que o FB a fazer sentido é um sentido muito pequenino em comparação com os blogs.

hmbf disse...

Obrigado Gustavo.

Olinda Melo disse...


Não pude deixar de ver, de ler, de sentir.

Grata por estes momentos de reflexão.

Olinda


hmbf disse...

Eu é que agradeço o comentário. Saúde,

dama disse...

Vale a pena ver o documentário de Justine Lemahieu sobre o médico da segunda foto. Pode ser discutível que consiga, mas tenta algo muito difícil: filmar a fé. Aqui o trailer: https://vimeo.com/349062528 Abraço!

hmbf disse...

Muito obrigado, dama. A minha mãe ia gostar de ver.

Anónimo disse...

Gostei muito de ler este post.

MJLF disse...

epá, belo texto. Por vezes pergunto-me o que têm certas imagens que me fazem parar e não parar de olhar para elas neste mundo maluco em que somos bombardeados de imagens todos os dias. São as imagens que me fazem parar com o seu instante silencioso? sou eu que estou com disponibilidade em determinado momento para as olhar? será que é conjugação destes dois factores? Bem, isso também não interessa, é óptimo quando paramos para olhar alguma imagem que nos chama a atenção e ficamos a observá-la, com vontade de a ver novamente, e levantamos questões novas ou antigas por causas delas. Saúde e beijinhos