Viagens suspensas, salas vazias, aeroportos às moscas,
escolas encerradas, espectáculos cancelados… O mundo parece ter parado, ficando
a pairar na atmosfera um aroma apocalíptico que já nada tem que ver com o cheiro a
napalm pela manhã. Convenhamos que em trânsito isto tem tudo mais piada, mesmo
quando não tem piada alguma. Pedem-nos que fiquemos em casa, que evitemos
ajuntamentos, que saiamos apenas para o essencial. Nem toda a gente estará em
condições de cumprir, mas que todos metam na cabeça o dever de cumprir talvez ajude a mitigar a
disseminação da ameaça. Um vírus, vejam bem, um ente microscópico, instalou-se
entre nós para nos lembrar quão frágeis somos e quão ténue é a
fronteira que separa a loucura da normalidade. No púlpito da sua sapiência há
quem desvalorize, há quem menospreze, há quem negligencie. Os números não
mentem: 4900 mortos, 136.000 infectados. Números claramente desactualizados,
tal é a velocidade a que o bicho se movimenta, e provavelmente desinflacionados,
tal é o secretismo erguido nalgumas nações em torno do problema. Fotografias
aéreas dão conta de valas no Irão que nos fazem pressupor uma tragédia maior do
que a publicada e conhecida. Por esta altura, minhas filhas, tereis ouvido
falar de “A Peste”, de Albert Camus, e do Ensaio sobre a Cegueira, de José
Saramago, por ter a curiosidade virulenta dos leitores incrementado as vendas
de tais obras. Language is a virus,
cantava a Laurie Anderson citando William S. Burroughs. Tal é a
curiosidade mórbida das pessoas a quem não basta uma realidade com sabor a ficção.
Daí que, por estes dias, seja de outras histórias e de outro autor que eu mais
me tenho lembrado. Franz Kafka (1883-1924) precisou de
meros 40 anos de vida para nos deixar uma obra eterna, maior do que à época da
sua morte era possível julgar — tão à frente do seu tempo se colocou, como é atributo
dos génios. Vítima de tuberculose, Kafka é, também por esse dado biográfico fortuito,
o autor onde melhor encontramos pressentidas e conjecturadas todas as pestes
humanas, não só as de tipo exógeno, que involuntariamente nos ameaçam sem que
consigamos entender porquê, mas também as pestes endógenas, geradas no imo
da mente humana e propagadas com um poder de contaminação altamente
autodestrutivo. Entre estas, podíamos mencionar, desde logo, a burocracia,
embora nos convenha mais falar agora de outra: o medo. Não há mal algum, minhas
filhas, em ter medo. Ele tem uma função defensiva que apela a coisas úteis tais
como a reflexão, a ponderação e o cuidado. Mas como tantas outras coisas no ser
humano, o excesso despeja de qualidades o medo, o excesso retira-lhe as
virtudes transformando-o numa ameaçadora pandemia. Pelo medo se governam nações
e manipulam povos, pelo medo se impõem comportamentos e usurpam liberdades,
pelo medo se molda a realidade de acordo com as conveniências de quem domine o
medo como a uma arma fatal. Num conto intitulado “O Covil”, Kafka mostra-nos a
outra face perniciosa do medo. Quando o medo evolui para o pânico, pouco
faltará para que se transforme em paranóia. E nesta nada vislumbramos
de benéfico ou útil à humanidade. Nesse conto, uma criatura indefinida — como
somos, de certo modo, todos nós, imerge na terra escavando o seu covil —,
entregando-se obsessivamente a cálculos e prolepses cujo efeito é exactamente o
contrário daquele que inicialmente pretendia. A tranquilidade do covil
torna-se inquietação, toldada por sobressaltos de medo onde o desejo de um
sono descansado degenera em insónia permanente. As preocupações desmesuradas, o
alarme, o desassossego, fazem do covil o princípio de uma misantropia que
escancara portas à loucura. Diz-nos Kafka: «Eis o que revela um espírito
inquieto: insegurança na apreciação própria, ambições pouco limpas, traços
negros de carácter, que ainda mais se ensombram se pensarmos que o covil ali
está e que nos pode dar paz, desde que consintamos em abrir-nos totalmente a
ele». Sucede que nenhuma paranóia leva à paz, ela apenas nos afunda no leito
convalescente de uma guerra onde seremos a primeira e a última das vítimas. Em
momentos como aquele que estamos a viver, apetece dar razão à tese de
Aristóteles segundo a qual é no meio que se encontra a virtude. Se a
negligência dos grunhos, burgessos e trogloditas, alguns deles com altas patentes,
é absolutamente imprudente e desaconselhável, também a paranóia colectiva o é.
Sem que desprezemos o ruído, convém não nos deixarmos apanhar na sua rede. A
angústia é tão natural nas nossas vidas como o ar de que precisamos para
sobreviver, mas poluída pelo pânico torna-se irrespirável, sufocante,
asfixiante. Começar por controlar o medo, por aprender a retirar partido dele, parece-me
ser, neste momento, a atitude mais sensata. Como se faz? Ora, minhas queridas,
lavando as mãos, mantendo distância, evitando multidões, saindo de casa só para o essencial.
2 comentários:
Caro amigo virtual,
sou brasileira e Kafka é junto a Fernando Pessoa e Clarice Lispector, um dos meus irmãos de alma. Tenho um livro de Kafka chamado Muralha da China, onde consta um conto chamado A Toca. Será que é o correspondente ao O Covil? Espero que sim. Vou relê-lo.
Abraços,
Sônia
Olá. Presumo que seja o mesmo conto, sim.
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