quinta-feira, 12 de março de 2020

100 LIVROS PARA AS MINHAS FILHAS #27


Viagens suspensas, salas vazias, aeroportos às moscas, escolas encerradas, espectáculos cancelados… O mundo parece ter parado, ficando a pairar na atmosfera um aroma apocalíptico que já nada tem que ver com o cheiro a napalm pela manhã. Convenhamos que em trânsito isto tem tudo mais piada, mesmo quando não tem piada alguma. Pedem-nos que fiquemos em casa, que evitemos ajuntamentos, que saiamos apenas para o essencial. Nem toda a gente estará em condições de cumprir, mas que todos metam na cabeça o dever de cumprir talvez ajude a mitigar a disseminação da ameaça. Um vírus, vejam bem, um ente microscópico, instalou-se entre nós para nos lembrar quão frágeis somos e quão ténue é a fronteira que separa a loucura da normalidade. No púlpito da sua sapiência há quem desvalorize, há quem menospreze, há quem negligencie. Os números não mentem: 4900 mortos, 136.000 infectados. Números claramente desactualizados, tal é a velocidade a que o bicho se movimenta, e provavelmente desinflacionados, tal é o secretismo erguido nalgumas nações em torno do problema. Fotografias aéreas dão conta de valas no Irão que nos fazem pressupor uma tragédia maior do que a publicada e conhecida. Por esta altura, minhas filhas, tereis ouvido falar de “A Peste”, de Albert Camus, e do Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago, por ter a curiosidade virulenta dos leitores incrementado as vendas de tais obras. Language is a virus, cantava a Laurie Anderson citando William S. Burroughs. Tal é a curiosidade mórbida das pessoas a quem não basta uma realidade com sabor a ficção. Daí que, por estes dias, seja de outras histórias e de outro autor que eu mais me tenho lembrado. Franz Kafka  (1883-1924) precisou de meros 40 anos de vida para nos deixar uma obra eterna, maior do que à época da sua morte era possível julgar tão à frente do seu tempo se colocou, como é atributo dos génios. Vítima de tuberculose, Kafka é, também por esse dado biográfico fortuito, o autor onde melhor encontramos pressentidas e conjecturadas todas as pestes humanas, não só as de tipo exógeno, que involuntariamente nos ameaçam sem que consigamos entender porquê, mas também as pestes endógenas, geradas no imo da mente humana e propagadas com um poder de contaminação altamente autodestrutivo. Entre estas, podíamos mencionar, desde logo, a burocracia, embora nos convenha mais falar agora de outra: o medo. Não há mal algum, minhas filhas, em ter medo. Ele tem uma função defensiva que apela a coisas úteis tais como a reflexão, a ponderação e o cuidado. Mas como tantas outras coisas no ser humano, o excesso despeja de qualidades o medo, o excesso retira-lhe as virtudes transformando-o numa ameaçadora pandemia. Pelo medo se governam nações e manipulam povos, pelo medo se impõem comportamentos e usurpam liberdades, pelo medo se molda a realidade de acordo com as conveniências de quem domine o medo como a uma arma fatal. Num conto intitulado “O Covil”, Kafka mostra-nos a outra face perniciosa do medo. Quando o medo evolui para o pânico, pouco faltará para que se transforme em paranóia. E nesta nada vislumbramos de benéfico ou útil à humanidade. Nesse conto, uma criatura indefinida como somos, de certo modo, todos nós, imerge na terra escavando o seu covil , entregando-se obsessivamente a cálculos e prolepses cujo efeito é exactamente o contrário daquele que inicialmente pretendia. A tranquilidade do covil torna-se inquietação, toldada por sobressaltos de medo onde o desejo de um sono descansado degenera em insónia permanente. As preocupações desmesuradas, o alarme, o desassossego, fazem do covil o princípio de uma misantropia que escancara portas à loucura. Diz-nos Kafka: «Eis o que revela um espírito inquieto: insegurança na apreciação própria, ambições pouco limpas, traços negros de carácter, que ainda mais se ensombram se pensarmos que o covil ali está e que nos pode dar paz, desde que consintamos em abrir-nos totalmente a ele». Sucede que nenhuma paranóia leva à paz, ela apenas nos afunda no leito convalescente de uma guerra onde seremos a primeira e a última das vítimas. Em momentos como aquele que estamos a viver, apetece dar razão à tese de Aristóteles segundo a qual é no meio que se encontra a virtude. Se a negligência dos grunhos, burgessos e trogloditas, alguns deles com altas patentes, é absolutamente imprudente e desaconselhável, também a paranóia colectiva o é. Sem que desprezemos o ruído, convém não nos deixarmos apanhar na sua rede. A angústia é tão natural nas nossas vidas como o ar de que precisamos para sobreviver, mas poluída pelo pânico torna-se irrespirável, sufocante, asfixiante. Começar por controlar o medo, por aprender a retirar partido dele, parece-me ser, neste momento, a atitude mais sensata. Como se faz? Ora, minhas queridas, lavando as mãos, mantendo distância, evitando multidões, saindo de casa só para o essencial. 

2 comentários:

sonia disse...

Caro amigo virtual,
sou brasileira e Kafka é junto a Fernando Pessoa e Clarice Lispector, um dos meus irmãos de alma. Tenho um livro de Kafka chamado Muralha da China, onde consta um conto chamado A Toca. Será que é o correspondente ao O Covil? Espero que sim. Vou relê-lo.
Abraços,
Sônia

hmbf disse...

Olá. Presumo que seja o mesmo conto, sim.