segunda-feira, 19 de abril de 2021

CHEGA DE SAUDADE (1958)

 


Mesmo à nossa frente, do outro lado da rua, vivia o Tom. Era jogador do União Desportiva de Rio Maior, tinha um carro vermelho que fazia lembrar o Dodge Charger dos três duques. Durante muitos anos todos os carros vermelhos me faziam lembrar o modelo da mais estúpida série televisiva de que há memória, pelo que assumirei a reiterada associação como uma espécie de trauma de infância ainda hoje mal resolvido. Uma rua pacata, a nossa. Não tinha saída. Agora que penso nisso, ter crescido num beco sem saída pode ter sido mau agouro. O Tom tinha um carro vermelho, conheceu o destino da imensa maioria das vedetas dos clubes de província. Com as pernas saturadas de levar caneladas, casado com uma moça que se queixava às vizinhas de maus tratos, sem que qualquer consequência adviesse de tais queixas, arranjou trabalho como porteiro no único bar da cidade. Começou a beber, muito, tanto que rapidamente se lhe formou um capacete na zona do umbigo. A última vez que o vi servia à mesa, estava careca, barrigudo, pernas arqueadas. Quando saí do restaurante não contive o olhar e ofereci um relance pelo parque automóvel a ver se descortinava o saudoso Dodge Charger. Nada. Dos velhos tempos, Tom conservava apenas o bigode, sombreado entre lábio superior e a ponta do nariz, a fazer notar o ridículo dos Tom que não chegam a Jobim. Há muitos, conheci uns tantos, craques da bola peneirentos como araras, ultrapassados pelo tempo e traídos pelas circunstâncias. Estouram os trocos em futilidades, um pouco como nós, aqui, agora, quiçá a mais inteligente das opções que tomaremos na vida.

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