Hoje é um dia triste, descobri que não estou
sozinho. Há mais um escritor no prédio. O vizinho do 1.º Dt.º, o brasileiro,
concorreu a um concurso promovido pela União das Freguesias de Caldas da
Rainha, Nossa S.ª do Pópulo, Coto e São Gregório, sagrando-se vencedor com nota
de mérito e distinção. Publicaram-lhe o folheto, que veio oferecer-me há dias
com uma simpática dedicatória:
«Para o estimado Senhor
Iaflho,
este conto premiado,
na esperança de que o destinatário
possa também vir a ganhar prémios,
que muito justo seria,
dado o talento demonstrado
e por todos reconhecido no seu apartamento.
Abraço e boa sorte,
Graciliano Meireles de Alencar.»
Por momentos, enquanto regurgitava as
palavras sob a língua, entre os dentes, bateu-me uma indisposição no céu-da-boca
e julguei-me a caminho do gregório, mas engoli em seco e mantive a dignidade
exigida pelo momento. O pior veio depois. O senhor Graciliano não só me
ofereceu a folheca, como a distribuiu por todos os condóminos do prédio. Temo
que tenha estendido o gesto ao bairro. Felizmente, a maioria da vizinhança é ciganagem
que nem sabe ler. A verdade é que os vizinhos esmeram-se em simpatias para com
ele como nunca as tiveram para mim.
Eu não sou invejoso, mas acho injusto andar nisto há 25 anos e nem um sinal de reconhecimento ter pressentido como os que agora constato em torno de uma criatura a quem a sorte bateu à porta numa provazeca irrelevante. «Dá licença», pergunta o brasileiro. «Por obséquio, senhor Graciliano, gosto muito do que escreve», responde a do 3.º Esq.º. Nem os bons dias alguma vez me deu. Se deu, eu não ouvi. Às vezes ando distraído.
O do R/C Esq.º, que costumava trazer-me espinafres e pimentos, deixou de aparecer. Vi-o com um saco atolado de grelos e de abóboras, cumprimentei-o com deferência. Não é que julgasse serem-me destinadas as prebendas, nem os tachos cá de casa carecem de tais víveres, mas o sacana do preto nem sequer se dignou devolver-me o cumprimento. Pelo contrário, prontamente especulou se o vizinho Graciliano estaria em casa, como se eu devesse sabê-lo. Queria agradecer-lhe com um saquinho de grelos e de abóboras a excelente leitura proporcionada.
Não sou invejoso nem racista, mas estas coisas ferem-me. São não só a prova de que não vivemos no melhor dos mundos possíveis, como também de que Deus não existe. Se existisse, não privilegiaria o imigrante brasileiro que nem o meu nome soube escrever correctamente. A Ana diz que eu não devia levar tão a peito estas coisas, que estou a pagar pela minha incorrigível insociabilidade, que nunca ofereci nada a ninguém, nem alguma vez pus os pés nas reuniões de condomínio. A verdade é que não me conformo. Preferia estar sozinho e ignorado a ter de conviver com este rival de pechisbeque.
Porra para isto.
este conto premiado,
na esperança de que o destinatário
possa também vir a ganhar prémios,
que muito justo seria,
dado o talento demonstrado
e por todos reconhecido no seu apartamento.
Abraço e boa sorte,
Graciliano Meireles de Alencar.»
Eu não sou invejoso, mas acho injusto andar nisto há 25 anos e nem um sinal de reconhecimento ter pressentido como os que agora constato em torno de uma criatura a quem a sorte bateu à porta numa provazeca irrelevante. «Dá licença», pergunta o brasileiro. «Por obséquio, senhor Graciliano, gosto muito do que escreve», responde a do 3.º Esq.º. Nem os bons dias alguma vez me deu. Se deu, eu não ouvi. Às vezes ando distraído.
O do R/C Esq.º, que costumava trazer-me espinafres e pimentos, deixou de aparecer. Vi-o com um saco atolado de grelos e de abóboras, cumprimentei-o com deferência. Não é que julgasse serem-me destinadas as prebendas, nem os tachos cá de casa carecem de tais víveres, mas o sacana do preto nem sequer se dignou devolver-me o cumprimento. Pelo contrário, prontamente especulou se o vizinho Graciliano estaria em casa, como se eu devesse sabê-lo. Queria agradecer-lhe com um saquinho de grelos e de abóboras a excelente leitura proporcionada.
Não sou invejoso nem racista, mas estas coisas ferem-me. São não só a prova de que não vivemos no melhor dos mundos possíveis, como também de que Deus não existe. Se existisse, não privilegiaria o imigrante brasileiro que nem o meu nome soube escrever correctamente. A Ana diz que eu não devia levar tão a peito estas coisas, que estou a pagar pela minha incorrigível insociabilidade, que nunca ofereci nada a ninguém, nem alguma vez pus os pés nas reuniões de condomínio. A verdade é que não me conformo. Preferia estar sozinho e ignorado a ter de conviver com este rival de pechisbeque.
Porra para isto.
4 comentários:
Deixa esse ressentimento com a vida ir embora. Deseja a ewsse brasileiro (também sou brasileira) muito sucesso. Mas só quando estiveres pronto e de coração puder dizê-lo.
Os melhores poetas ou escritores são e foram aqueles que ficaram por se conhecer...os outros estão por todos os lados.
Felicidades ao senhor do 1º Dt.
Pessoas, isto é ficção. É tudo ficção. Agradecido.
Tu és o poeta do 1o Dt. Parabéns!;)
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