domingo, 3 de novembro de 2024

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

sábado, 2 de novembro de 2024

50 X 6

 


“OK Computer”: Radiohead
 
Os Radiohead andam nas bocas do mundo pelas piores razões. Thom Yorke insurgiu-se contra um manifestante pró-Palestina que o acusava de ser pró-Israel (estes prós são maneiras de ver as coisas por quem não quer ver as coisas, adopto-os aqui no sentido maniqueísta que a comunicação social lhes dá). “Não sejas cobarde, vem cá acima dizer isso”, terá respondido o vocalista dos Radiohead antes de sair do palco. Não sei qual é a posição de Yorke relativamente ao conflito em curso, mas tendo em conta as posições políticas que tomou anteriormente é para mim estranha toda esta confusão. É conhecido o seu discurso sobre as mulheres de hijab: “nenhuma mulher de burka, hijab ou biquíni me fez algum mal, ao contrário de homens de fato e gravata”. Mais ou menos isto. Enfim, lamentaria profundamente se Yorke sentisse alguma simpatia pelas decisões de Benjamin Netanyahu e não acredito minimamente que isso seja exacto. A música dos Radiohead é para mim, desde “Pablo Honey”, uma companhia constante. “Ok Computer” (1997) continua a ser a obra-prima de fim de século que anunciou o nosso futuro pós-humano, o qual estamos a viver actualmente encharcados em fármacos e intoxicados pelas drogas livres on-line que enchem os bolsos dos dealers Jeff Bezos, Zhang Yiming, Elon Musk, Bill Gates, Mark Zuckerberg e afins. Cada vez mais algoritmados, assistimos em directo à destruição do planeta como se não fôssemos parte integrante dele. A postura de resistência da banda à indústria que vem destruindo o mundo da música é conhecida, assim como os sucessivos e, presumo, complexos desvios do sucesso mais simplista. Acompanho-os desde o início, quando ainda faziam as primeiras partes dos James no Pavilhão do Belenenses. Não queria nada ficar com aquela sensação estranha com que por vezes fico depois de me desiludir ao conhecer alguém cuja obra admiro. Hey man slowdown, idiot slow down.

sexta-feira, 1 de novembro de 2024

O HOMEM DA GUITARRA

 

LUGAR PRECÁRIO
 
   “O Homem da Guitarra” (Guitarmannen, 1997), de Jon Fosse (1959), foi editado exactamente no mesmo ano em que o agora Nobel da Literatura norueguês deu à estampa “O Filho” (Sonen, 1997), levado à cena pelo Teatro da Rainha, com encenação de Fernando Mora Ramos, em 2018. Há entre ambas as peças uma curiosa coincidência, a referência a um filho ausente que estigma a existência dos protagonistas. No entanto, e apesar da similar ambiência poética, são peças assaz diferentes uma da outra.
   “O Homem da Guitarra” que o actor Tiago Moreira adoptou num projecto prontamente acolhido pelo TdR é um monólogo, um debate a solo entre um músico de rua e a sua condição existencial. A própria figura do músico de rua coloca-nos perante uma representação da precariedade que oferece vários ângulos de reflexão acerca das condições de sobrevivência de um indivíduo na sua relação com a família e com a sociedade em geral, para lá, obviamente, desse abismo íntimo em que muitas das personagens de Fosse parecem situar-se.
   Neste caso, creio que será especialmente importante atentarmo-nos aos pormenores, ao que sobre si a personagem revela numa linguagem elíptica, repleta de hesitações, uma linguagem minimalista que, segundo o próprio Autor, se baseia no silêncio. O que diz o silêncio? Diz-nos, antes de mais, da solidão a que está condenado o indivíduo, do seu distanciamento face aos outros, da sua separação de uma mulher que o trouxe ali e de um filho que ali o fixou, naquela cidade fria. Depois o silêncio vai sendo preenchido por frases curtas, um mínimo de palavras, sussurros, bloco de gelo que apenas parece quebrar-se quando a música ecoa na sala através da voz grave do Tiago. É nesses momentos que o som afasta definitivamente a cortina de neblina intrometida entre o homem da guitarra e o público.
   O que melhor caracteriza este homem é o anonimato, um anonimato desfeito como quem desenha pequenos traços numa página em branco até obter uma figura mais definida. O ambiente intimista logrado pelo desenho de luz de Hâmbar de Sousa favorece a soturnidade em que o protagonista se nos dirige. Ele diz-nos das pessoas que passam diariamente por ele sem darem pela sua presença, fala-nos das crianças que o insultam, de um ou outro transeunte que mete conversa sem gerar laços, dos laços familiares quebrados como cordas partidas numa guitarra. E enquanto pausadamente nos conta estas coisas, dá-se-nos a ver ele próprio como uma centelha na escuridão, expondo-nos à sua solidão e frustração pessoais, à sua intimidade atravessada pela dúvida: valerá a pena continuar, insistir?
   Já chamaram “ode à desesperança” a esta peça de Jon Fosse. Creio que, mais do que desesperança, vislumbramos neste texto uma interrogação profunda sobre a condição humana, com envios claros, em mais do que uma citação directa, para o livro do “Eclesiastes”. Talvez não seja displicente recordar o percurso do próprio Fosse, que do ateísmo à conversão ao catolicismo em 2012 experienciou uma espécie de misticismo herético à maneira de Mestre Eckhart (teólogo alemão que viveu entre os séculos XIII e XIV). Em entrevista ao jornal Público datada de Março de 2024, é o próprio autor norueguês quem fala desse percurso revelando o seguinte: «Durante uns anos estive perto dos quakers noruegueses. Não têm padres, nem dogmas, apenas encontros silenciosos. O seu modo de acreditar é concentrarem-se na luz interior.»
   Tal com o sábio Qohelet no “Eclesiastes”, também o homem da guitarra parece atravessar momentos de dúvida, destacando as contradições da vida, as incertezas quanto ao futuro, as perdas, as derrotas, as ilusões e o sentimento de desilusão, as conquistas que se resumem a meia dúzia de esmolas no bolso ao final do dia, num rol de dúvidas a que responde recorrendo a essa máxima ancestral proveniente do Antigo Testamento: «Tudo tem o seu tempo.» O que nesta peça levada à cena e interpretada por Tiago Moreira está em causa é, portanto, uma exploração trágica do lugar precário do homem no mundo, sempre com o fantasma da desistência no horizonte das decisões adiadas.

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

DOMESTICADORA DE GIRASSÓIS

 


Os 14 contos de Domesticadora de Girassóis, mais extensos do que é habitual neste autor, exploram universos fantasmagóricos com personagens que tentam equilibrar-se entre o real e o imaginário. O que há de anómalo e de paradoxal nas situações recriadas encontra na multiplicidade formal, que vai da ficção narrativa ao poético, da crónica ao drama, do relato autobiográfico à prosa ensaística e ao diário, vias de expressão para seres cuja existência está em permanente conflito com um mundo onde a separação entre caos e ordem perdeu qualquer sentido.

236 páginas
Maio de 2024
 

Venda directa – pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
 
Também disponível 

na Snob: https://www.livrariasnob.pt/product/domesticadora-de-girassois ;





quinta-feira, 24 de outubro de 2024

50 X 4

 


"Communiqué": Dire Straits
 
Agora que toda a gente é fã de Marco Paulo já posso revelar que fui fã dos Dire Straits e que ainda hoje escuto com bastante agrado os dois primeiros álbuns da banda, assim como o duplo ao vivo “Alchemy”. No dia 16 de Maio de 1992 também fui muito feliz quando os vi e ouvi no velhinho Estádio de Alvalade, numa altura em que finalmente começavam a ser frequentes os concertos de estádio em Portugal (com a vantagem de ainda não haver smartphones). “Communiqué” (1979) é, talvez, o meu disco preferido da banda, tem uma toada intimista que me agrada e malhas de guitarra que ora me remetem para sonoridades de proveniência diversa e aparentemente inconciliáveis (da country ao reggae), ora me enviam para a obra de alguns dos maiores guitarristas de jazz (Jim Hall, Pat Metheney). Tudo muito limpo, sem distorções, para irritar os “puristas da ruína” que adoram os hinos a nossa senhora do Marco Paulo. Isto, de facto, anda tudo maluco, mas a mim não enganam. Ah não, a mim não enganam. Prefiro os originais românticos dos Dire Straits às covers boçais do dois amores e da Anita e do raio que o parta. Fiquem lá com os vossos bailaricos manhosos e a grande voz do Sinatra português (porra, só mesmo quem nunca ouviu ou desconhece por completo Sinatra pode compará-lo com o maravilhoso coração), que eu entretenho-me com os sultões do swing. E sem ironias nem cinismo, tenham misericórdia. Que passe rápido o luto nacional é o meu mais sincero desejo antes que o bom gosto também vos vá parar ao Panteão.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

ANTONIO CÍCERO (1945-2024)

 


HUIS CLOS

Da vida não se sai pela porta:
só pela janela. Não se sai
bem da vida como não se sai
bem de paixões jogatinas drogas.
E é porque sabemos disso e não
por temer viver depois da morte
em plagas de Dante Goya ou Bosh
(essas, doce príncipe, cá estão)
que tão raramente nos matamos
a tempo: por não considerarmos
as saídas disponíveis dignas
de nós, que, em meio a fezes e urina
sangue e dor, nascemos para lendas
mares amores mortes serenas.

terça-feira, 22 de outubro de 2024

ONDAS

 
"Onda de violência alastra na grande Lisboa", diz o jornal. Com a baba nos cantos da boca, fomos imediatamente à procura de mortos, feridos e entrevados. Afinal só morreu um tipo, foi antes da onda vir. Morto com carinho e amor pelos senhores da autoridade, que nunca são violentos. Vogam nas águas tépidas e plácidas do aconchego.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

VEM NO PÚBLICO

 
"De Janeiro a Agosto de 2024, as contribuições dos imigrantes para a Segurança Social já somaram 2198 milhões de euros. E, em prestações sociais – subsídios de desemprego, prestações familiares ou de parentalidade, as mais comuns entre estes cidadãos – os estrangeiros só receberam cerca de 380 milhões de euros. Ou seja, o saldo positivo, nestes oito meses – de 1818 milhões de euros – é quase o mesmo que as suas contribuições ao longo de todo o ano de 2022. (...) Os dados, fornecidos ao PÚBLICO pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS), mostram ainda que em 2024 são as mesmas cinco nacionalidades que mais contribuem para a Segurança Social: brasileiros, indianos, nepaleses, cabo-verdianos e espanhóis. Nestes oito meses de 2024, os brasileiros foram os maiores contribuintes, o que não surpreende, dado que representam a maior comunidade de estrangeiros (são 35% do total de imigrantes): contribuíram com 824,5 milhões, ou seja, 37,5% do total. De seguida foram os indianos, com quase 145 milhões (estes cidadãos representam apenas 4,2% da população estrangeira). Depois, em terceiro lugar no topo das contribuições, ficaram os cidadãos do Nepal, com 93,147 milhões (são quase 3% dos estrangeiros), os de Cabo Verde, com 83 milhões (são 4,68% dos estrangeiros), e os de Espanha com 70 milhões de euros (são quase 2% dos estrangeiros)."

domingo, 20 de outubro de 2024

20 MIL MILHÕES

 

Há para aí uma cambada muito preocupada com a imigração e os ciganos e a disciplina de cidadania e as casas de banho mistas... Sobre 20 mil milhões de euros injectados em bancos falidos é que não bufam. O Orçamento de Estado do Dr. Montenegro prevê 200 milhões para elefantes brancos do género, mais dinheiro do que custaria a recuperação de tempo de serviço dos professores. Tenham uma boa semana.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

AS PALAVRAS VOAM

Poema concebido em 2005, originalmente publicado no n.⁰ 1 da revista Sulscrito, agora traduzido para italiano por Fabrizio Boscaglia e publicado aqui. Ficam o original e a tradução, com especial agradecimento ao Fabrizio pelo interesse:

FEED-BACK

Ouves os grilos no termo do dia,
sabes que são uma sinfonia
de compositores que habitam na erva.
Vês os insectos bailando contra a luz,
sabes que dançam
ao ritmo das melodias vindas do chão.
Sentes a maresia cair sobre a pele
como um véu de água,
subtilmente aconchegado às pregas do corpo.
Sabes que o gelo pode aquecer-te
nas fintas do cansaço.
Mas o que tu não sabes,
nem poderias saber,
é do tecto de estrelas que sobre ti anuncia
os olhos abertos da eternidade.

*

FEED-BACK

Ascolti i grilli alla fine del giorno,
sai che sono una sinfonia
di compositori che abitano l’erba.
Vedi gl’insetti che ballano controluce,
sai che danzano
al ritmo di melodie venute dal suolo.
Senti la salsedine cadere sulla pelle
come un velo d’acqua,
che si adagia sottile sulle pieghe del corpo.
Sai che il gelo può scaldarti
fra gl’inganni della stanchezza.
Ma quel che non sai,
né potresti sapere,
è del soffitto di stelle che su di te annuncia
gli occhi aperti dell’eternità.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

ALGUMAS PREMISSAS

 


A poesia tende à essência humana.

*

Nenhuma lógica poderá explicar a originalidade do espaço poético, a sua autonomia e a sua verdade. Só a sensibilidade de cada um de nós, leitores, poderá ser a pedra de toque para aferir a sua autenticidade.

*

Numa época de imperialismos ideológicos em que de todos os lados se pretende arregimentar os homens e em que estes, por seu turno, procuram a sua segurança nas diversas formas de paternalismo em que aliviadamente possam abdicar da sua personalidade, a poesia, por muito restrito que se afigure o seu âmbito, constitui actualmente uma verdadeira potência regeneradora.

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A poesia situa-se, pois, ao nível deste humanismo concreto e libertador, antidogmático por excelência.

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O poeta tem o dom de ultrapassar o nível de consciência reflexiva e de instalar, por momentos, na consciência profunda ao nível da espontaneidade criadora, onde as energias naturais se desencadeiam na linguagem antes de qualquer conceptualização. 

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A poesia é criadora de valores - logo profundamente social.

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A poesia surge assim como negação de um mundo para se propor a si mesma na violência da sua liberdade, da sua existência absoluta mas confinada a si mesma. A poesia como liberdade total consciente de si própria, nasce no momento histórico em que não há possibilidade de participação fecunda no corpo social.

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A poesia não se limita a dizer o que diz, seja o que diz uma mulher, a crença numa religião, a fé numa ideia, etc. Essa pretensa univocidade que leva os comentadores a tentar explicar o poeta (seja clássico ou moderno) por aquilo que na poesia é «de», isto é, a sua aparente determinação temática, é o erro de quantos, tratando de poesia, não reparam que ela essencialmente... poesia.

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Ortodoxia e poesia são incompatíveis.

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A poesia não prescinde da linguagem, pois que é fundamentalmente um acto expressivo.

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A partir de Rimbaud a poesia passa a ser «um sopro que abre brechas nos muros». Assim se entra num mundo onde o real foi destruído, onde a única realidade é a própria linguagem.

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O poema só pode ser entendido a partir de si mesmo, porque ele tem em si mesmo origem e o seu fim é ele próprio.

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A poesia só aparentemente é evasão - na realidade, é um alargamento de horizontes, um aprofundamento até às raízes do ser.

António Ramos Rosa, in Poesia, Liberdade Livre, O Tempo e O Modo, Livraria Morais Editora, 1962.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

BALSEMÃO, O VELHO

 
Diz Balsemão, o Velho, no Público:

"Há uma frase que repetidamente digo ou escrevo. E, a cada ano que passa, a cada momento político, a cada inovação tecnológica, volto a ela e sinto que está mais relevante. “Mais do que nunca, é preciso quem selecione, ordene e hierarquize a informação.” E que o faça profissionalmente."

Podes crer, mano. Pede ao Milhazes.



terça-feira, 15 de outubro de 2024

PREÇO CERTO

 
Chego a casa, abro uma garrafa de vinho e como um naco de queijo de cabra com pão caseiro. Na televisão, dois indivíduos falam do jogo de expectativas nas eleições americanas, referem-se à marca Trump, debatem eleições como quem comenta um jogo de futebol. Em Gaza, as meninas e os meninos sufocam, no Líbano caem bombas israelitas, a barbárie ganha terreno e eu não percebo nada disto. Mudo para O Preço Certo.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

VÉNUS ANATÓMICA

 


   Tanto quanto pude apurar, as “vénus anatómicas” foram criadas por um tal Clemente Susini, algures no final do século XVIII, com o intuito específico de servirem para estudos de anatomia. São bonecas de cera feitas em tamanho natural, adornadas com colares de pérolas, cabelo humano verdadeiro, o mais fiéis possível à realidade. Mulheres com as entranhas à mostra que inspiraram várias teorias necrófilas, reforçando a ideia de que eros e thanatos sempre andaram de mão dada. Podemos também compará-las a múltiplas representações da vanitas, caveiras com o intuito de nos avivarem a dimensão finita da existência, o lado passageiro da vida materializado na carne desaparecida de corpos que se degradam e transformam.
   A pulsão de morte está intimamente ligada à percepção dos ciclos da vida, a essa ideia fundadora da religiosidade que olha para um corpo como algo que se metamorfoseia com a morte gerando outra forma de vida. Enterrar um corpo é semeá-lo, é esperar que do nada brote o tudo que ao nada será devolvido. O todo está no nada, o nada está no todo, diziam os hermetistas do deserto. Este é, desde sempre, o ritmo dinâmico das coisas arrumadas pelos homens em sucessivas camadas que problematizam e tornam complexa aquela que é, porventura, a mais simples das realidades: estar vivo é estar à morte.
   Filipe Homem Fonseca (1974), autor de romances, de contos, de poemas, está ciente desta complexidade simples no seu mais recente “Vénus Anatómica”, livro com uma dimensão lúdica patente, desde logo, na nota inicial que dá conta de múltiplas possibilidades de leitura oferecidas por este volume. Os textos foram organizados em cinco partes, remetendo cada uma delas para uma personagem central: um homem em fuga, um caçador pela metade, um pai em estado de pós-hibernação, uma mulher inteira — a filha a quem o pai oferece uma vénus anatómica — e um cão morto. Ao leitor é sugerido que organize as cinco partes como bem entender, podendo começar da primeira para a quinta ou pela última até à primeira, do meio para o princípio saltando posteriormente para o fim e assim sucessivamente, numa multiplicidade de opções que não se esgota aqui. Outra seria a de ler cada um dos curtos textos em que se subdividem os capítulos respeitando a numeração para que enviam o leitor e que vai do dia 1 ao dia 19523.
   Entrar neste livro é, portanto, entrar num labirinto do qual não se sairá incólume, já que a predisposição lúdica do Autor não se fica pela estrutura, ela contamina a linguagem colocando em xeque aquilo a que poderíamos chamar normalidade narrativa (assim acreditássemos nessas coisas). Na linha dos vários autores que cita em epígrafes (Almada Negreiros, Clarice Lispector, Mário Cesariny, Joyce Mansour, Jorge de Sena), Filipe Homem Fonseca prefere a subversão dos processos à versão dos modelos, opta pelas inversões e pelos reversos, elabora o que poderia ser uma sessão anatómica da arte de narrar histórias, aqui composta também por camadas que nos oferecem múltiplos relatos alegóricos, desbravando corredores metafóricos na imaginação do leitor. Neste sentido, é um livro altamente desafiante que está constantemente a sugerir-nos que dêmos mais um passo no interior do pântano labiríntico em que nos fomos meter ao abrir estas páginas.
   Descaradamente antinaturalista, imensos degraus acima do realismo, mas não se esgotando também nas chaves mestras do surrealismo e seus sucedâneos mais ou menos fantasiosos, sem resvalar para o barroquismo fastidioso das frases cerzidas a agulha, esta prosa de “Vénus Anatómica” revela uma dimensão poética que é do domínio da imaginação mais livre. Começa no efeito produzido por palavras grafadas “de pernas para o ar” e desenvolve-se numa linguagem ousada que volta tudo do avesso, mostrando-nos o que há de belo no horrível e o que pode haver de horrível na beleza, revelando a face bondosa da maldade e o rosto maldoso da bondade, baralhando hierarquias para as recusar, fazendo da caneta um bisturi que pega na linguagem das personagens como se estivesse a dissecar um cadáver.
   A mulher desta(s) história(s) lê Joyce Mansour, é jovem, cabelo cor do fogo, usa-o apanhado, chamas contidas. O sol não lhe toca, é pálida da testa ao pescoço, dos pulsos até à ponta dos dedos, dos tornozelos aos pés. Morde-se a si própria. A mulher tem o cheiro da esteva, das palavras de ordem e da intangibilidade das ideias. O homem é viajado. O homem, rosto, tronco e membros, é bronze, tem a cor dos dias ardentes. O homem tem o cheiro da terra que nunca acaba. Estas personagens, ou impersonagens, não falam de um modo natural, têm poesia na ponta da língua, têm a boca cheia de poesia. Vivem numa dimensão que não é a nossa, felizmente, para nos mostrarem numa espécie de efeito espelho a dimensão em que nós vivemos: «Somos uma família de peças quebradas. / Cheguei de asas, parto sem raízes.» Dia 19523 (ainda).

domingo, 13 de outubro de 2024

VIRTUALIDADES VIRTUOSAS

"Acho que o plano tem virtualidades", diz Luís Marques Mendes. Eu cá julgo que Luís Marques Mendes também é mais virtualidades do que virtudes. E querem esta anedota para Presidente da República.