segunda-feira, 14 de outubro de 2024

VÉNUS ANATÓMICA

 


   Tanto quanto pude apurar, as “vénus anatómicas” foram criadas por um tal Clemente Susini, algures no final do século XVIII, com o intuito específico de servirem para estudos de anatomia. São bonecas de cera feitas em tamanho natural, adornadas com colares de pérolas, cabelo humano verdadeiro, o mais fiéis possível à realidade. Mulheres com as entranhas à mostra que inspiraram várias teorias necrófilas, reforçando a ideia de que eros e thanatos sempre andaram de mão dada. Podemos também compará-las a múltiplas representações da vanitas, caveiras com o intuito de nos avivarem a dimensão finita da existência, o lado passageiro da vida materializado na carne desaparecida de corpos que se degradam e transformam.
   A pulsão de morte está intimamente ligada à percepção dos ciclos da vida, a essa ideia fundadora da religiosidade que olha para um corpo como algo que se metamorfoseia com a morte gerando outra forma de vida. Enterrar um corpo é semeá-lo, é esperar que do nada brote o tudo que ao nada será devolvido. O todo está no nada, o nada está no todo, diziam os hermetistas do deserto. Este é, desde sempre, o ritmo dinâmico das coisas arrumadas pelos homens em sucessivas camadas que problematizam e tornam complexa aquela que é, porventura, a mais simples das realidades: estar vivo é estar à morte.
   Filipe Homem Fonseca (1974), autor de romances, de contos, de poemas, está ciente desta complexidade simples no seu mais recente “Vénus Anatómica”, livro com uma dimensão lúdica patente, desde logo, na nota inicial que dá conta de múltiplas possibilidades de leitura oferecidas por este volume. Os textos foram organizados em cinco partes, remetendo cada uma delas para uma personagem central: um homem em fuga, um caçador pela metade, um pai em estado de pós-hibernação, uma mulher inteira — a filha a quem o pai oferece uma vénus anatómica — e um cão morto. Ao leitor é sugerido que organize as cinco partes como bem entender, podendo começar da primeira para a quinta ou pela última até à primeira, do meio para o princípio saltando posteriormente para o fim e assim sucessivamente, numa multiplicidade de opções que não se esgota aqui. Outra seria a de ler cada um dos curtos textos em que se subdividem os capítulos respeitando a numeração para que enviam o leitor e que vai do dia 1 ao dia 19523.
   Entrar neste livro é, portanto, entrar num labirinto do qual não se sairá incólume, já que a predisposição lúdica do Autor não se fica pela estrutura, ela contamina a linguagem colocando em xeque aquilo a que poderíamos chamar normalidade narrativa (assim acreditássemos nessas coisas). Na linha dos vários autores que cita em epígrafes (Almada Negreiros, Clarice Lispector, Mário Cesariny, Joyce Mansour, Jorge de Sena), Filipe Homem Fonseca prefere a subversão dos processos à versão dos modelos, opta pelas inversões e pelos reversos, elabora o que poderia ser uma sessão anatómica da arte de narrar histórias, aqui composta também por camadas que nos oferecem múltiplos relatos alegóricos, desbravando corredores metafóricos na imaginação do leitor. Neste sentido, é um livro altamente desafiante que está constantemente a sugerir-nos que dêmos mais um passo no interior do pântano labiríntico em que nos fomos meter ao abrir estas páginas.
   Descaradamente antinaturalista, imensos degraus acima do realismo, mas não se esgotando também nas chaves mestras do surrealismo e seus sucedâneos mais ou menos fantasiosos, sem resvalar para o barroquismo fastidioso das frases cerzidas a agulha, esta prosa de “Vénus Anatómica” revela uma dimensão poética que é do domínio da imaginação mais livre. Começa no efeito produzido por palavras grafadas “de pernas para o ar” e desenvolve-se numa linguagem ousada que volta tudo do avesso, mostrando-nos o que há de belo no horrível e o que pode haver de horrível na beleza, revelando a face bondosa da maldade e o rosto maldoso da bondade, baralhando hierarquias para as recusar, fazendo da caneta um bisturi que pega na linguagem das personagens como se estivesse a dissecar um cadáver.
   A mulher desta(s) história(s) lê Joyce Mansour, é jovem, cabelo cor do fogo, usa-o apanhado, chamas contidas. O sol não lhe toca, é pálida da testa ao pescoço, dos pulsos até à ponta dos dedos, dos tornozelos aos pés. Morde-se a si própria. A mulher tem o cheiro da esteva, das palavras de ordem e da intangibilidade das ideias. O homem é viajado. O homem, rosto, tronco e membros, é bronze, tem a cor dos dias ardentes. O homem tem o cheiro da terra que nunca acaba. Estas personagens, ou impersonagens, não falam de um modo natural, têm poesia na ponta da língua, têm a boca cheia de poesia. Vivem numa dimensão que não é a nossa, felizmente, para nos mostrarem numa espécie de efeito espelho a dimensão em que nós vivemos: «Somos uma família de peças quebradas. / Cheguei de asas, parto sem raízes.» Dia 19523 (ainda).

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

O CRISTO

 

Há um triplo homicídio e logo surge a expressão "onda de crime". A comunicação social, ávida de audiências, transforma a onda num canhão da Nazaré. O Chega surfa o canhão e faz do fenómeno um tsunami. Ora bem, o que torna o triplo homicídio particularmente chocante é a sua excepcionalidade num país como o nosso. O último de que me recordo foi em 2017, o do tal Pedro Dias, português de bem que, como qualquer português de bem, não era imigrante nem cigano nem negro. Não há nenhuma onda de crime, o que há, de facto, é uma disseminação oportunista do sensacionalismo, maná dos populistas que cavalgam o medo e nos minam o espaço mediático com o ódio. Dizem-se todos muito católicos e cristãos. Infelizmente, não praticam os aconselhamentos do senhor Jesus. O Cristo.

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

SÓ NOS FALTAVA MAIS ESTA

 


Além de poeta, é crítica literária. E foi buscar óptimos exemplos, um que escreveu sobre incestos e padres depravados, outro que lhe deu com o Tristão, amores de perdição e transgressões várias. Quanto a Pessoa, deixei lá na caixa de comentários da jovem estes versos de elevado nível:
 
UM SERRALHEIRO CHAMADO FIALHO
 
Tinha uma chave que (...)
Com ela muita porta abria...
Aqui a história principia.
Tanta porta abriu o Senhor Fialho
Com a tal chave que era caralho
Que a chave alfim se escangalhou
E aqui o conto acabou.
 
1-1909

DOMESTICADORA DE GIRASSÓIS

 


Os 14 contos de Domesticadora de Girassóis, mais extensos do que é habitual neste autor, exploram universos fantasmagóricos com personagens que tentam equilibrar-se entre o real e o imaginário. O que há de anómalo e de paradoxal nas situações recriadas encontra na multiplicidade formal, que vai da ficção narrativa ao poético, da crónica ao drama, do relato autobiográfico à prosa ensaística e ao diário, vias de expressão para seres cuja existência está em permanente conflito com um mundo onde a separação entre caos e ordem perdeu qualquer sentido.

236 páginas
Maio de 2024
 

Venda directa – pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
 
Também disponível 

na Snob: https://www.livrariasnob.pt/product/domesticadora-de-girassois ;





quarta-feira, 2 de outubro de 2024

INCURSÃO INVASIVA

 


Quem é que vai ser o primeiro jornalista português a perguntar ao Paulo Rangel, ao Luís Montenegro, ao Marcelo e afins se é invasão ou acção militar, invasão ou incursão terrestre, invasão ou ataque terrestre acompanhado de pagers atómicos? O Milhazes e o Rogeiro ainda cantam o "Kumbaya, My Lord" na SIC?

terça-feira, 1 de outubro de 2024

NÃO HÁ ESTÔMAGO QUE AGUENTE

 


Israel destrói Gaza, mata indiscriminadamente crianças, velhos, enfermos, mulheres, invade países, coloniza povos, regiões, transforma pagers em explosivos, reduz a ONU e o Direito Internacional a cinzas. E nada, bico calado, paninhos quentes, finge-se que não se viu, não se ouviu, não aconteceu. Como lidar com tamanha hipocrisia? Isto já não tem justificação nenhuma, estamos entregues à nossa sorte. Olhem, divirtam-se enquanto é tempo.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

VEM NO PÚBLICO

"EUA apoiam invasão do sul do Líbano por Israel com mira no Hezbollah". Agora repitam comigo: EUA apoiam invasão do sul do Líbano, EUA apoiam invasão do sul do Líbano por Israel, EUA apoiam invasão, EUA apoiam.

domingo, 29 de setembro de 2024

sábado, 28 de setembro de 2024

KRIS KRISTOFFERSON (1936-2024)

 


Kris Kristofferson (1936-2024). Fica-me na memória como Billy the Kid num western superlativo de Sam Peckinpah: "Duelo na Poeira", título rasca para "Pat Garrett and Billy the Kid" (1973). Bob Dylan, que entra como actor, assinou a banda sonora. É de lá que vem "Knockin' On Heaven's Door", bela canção que os Guns N' Roses conseguiram tornar intragável.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

COMUNIDADES CONSUMIDORAS

 

Grande parte dos livros que hoje se publicam jamais viriam a lume se fossem assinados por gente completamente anónima. O que os torna publicáveis é o nome do autor, uma espécie de capital social do apelido, ao qual acrescem as afinidades e simpatias entre uma comunidade consumidora de livros que, não garantindo lucro, pelo menos evite prejuízos. Disse comunidade consumidora, não disse leitora. Intencionalmente.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

ALERTA ÚLTIMA HORA

 
Um dos evadidos de Vale de Judeus foi avistado na Festa do Livro de Belém, outro estava numa bicha para autógrafos na Feira do Livro do Porto, um terceiro foi à Festa do Avante fazer slide, caiu ao rio e andam mergulhadores à sua procura, um quarto adoptou o cão perdido da mulher desaparecida na Murtosa e foi para Espanha escrever um bestseller. O quinto está aqui à minha frente a jogar na raspadinha.

domingo, 8 de setembro de 2024

O LADO MAU DA FORÇA

 

Depois de infinitas horas de contabilidade e balanço no termo dos Jogos Olímpicos, não há uma alma que venha falar desta diferença abissal entre o número de medalhas conseguido pela China e restantes países nos paraolímpicos. A comparação com o principal rival nos Olímpicos, os EUA, é reveladora: a China consegue mais do dobro das medalhas e praticamente o triplo dos ouros. Talvez isto queira dizer alguma coisa em matéria de políticas inclusivas. Com todos os defeitos que o regime chinês possa ter e certamente terá, seria no mínimo razoável estas matérias serem reflectidas em vez de andarmos permanentemente a diabolizar os “inimigos das democracias liberais” (também se tem visto recentemente em França, organizador destes Jogos, qual o significado de democracia nestes tempos que são os nossos).


1 + 1 = 2


 

Dois criminosos à solta. Ambos perigosos.

sábado, 7 de setembro de 2024

CONCORDATA

 
Ainda um dia hei-de conseguir perceber a razão de ser de uma concordata entre a República Portuguesa, que se diz laica, e a Santa Sé. Mais pasmo com a existência de um regime de perdão de penas e amnistia de infracções consequentes de visitas papais. Porque razão a justiça de uma república laica há-de ser em parte determinada por uma viagem que apenas diz respeito aos católicos?

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

A CULPA É DOS COMUNISTAS

 
Esta noite sonhei que o PCP era responsável pelo extermínio dos maias, dos astecas e dos incas. Que tinha levado a cabo o extermínio das tribos ameríndias, infectando-as com cobertores contaminados de sarampo e varicela, explorando-as em minas de ouro e de prata e etc. Sonhei que o PCP largou duas bombas atómicas no Japão, criou a Santa Inquisição com os seus manuais de 1001 técnicas de torturar infiéis, promoveu as cruzadas, colonizou terras africanas. Esta noite sonhei que o PCP tinha uma frota de navios para o tráfico negreiro, comercializava pretos como se fossem gado, tinha agências de viagens especialmente vocacionadas para o turismo sexual. Esta noite sonhei que o Joe Berardo era do PCP, o Luís Filipe Vieira era do PCP, o José Sócrates era do PCP, Ricardo Salgado era do PCP, José de Oliveira Costa era do PCP, João Rendeiro era do PCP. E sonhei que decorriam inquéritos para apurar centenas, milhares de abusos sexuais nos Centros de Trabalho do PCP. Esta noite sonhei que os fundamentalistas da Al-Qaeda e o Daesh tinham sido apoiados e treinados pelo PCP, ou de algum modo se tinham fortalecido após políticas externas do PCP. No meu sonho, o PCP detinha a indústria petrolífera mundial e estava na direcção da National Rifle Association of America, dominando o negócio global das armas e a chamada economia global de guerra. Enfim, no meu sonho o PCP era a encarnação de todas estas coisas e outras como estas. Depois acordei, respirei fundo e olhei para a EP que repousa na mesa de cabeceira. Respirei fundo, a sonhar com o momento em que voltarei à Festa do Avante.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024