quarta-feira, 20 de novembro de 2024

O NOSSO PRESENTE PÓS-HUMANO

 


Milhares de pessoas no Chiado para assistir ao momento em que se acenderam as luzes de Natal. 380 mil luzes vão iluminar o Natal onde não vai faltar animação para todos. Cinco maiores autarquias gastam mais de dois milhões com luzes de Natal. Árvore de 31 metros a imitar aparência de pinheiro natural é novidade...

ELES QUE SE MATEM

 
Eu quero que os senhores da guerra se fodam. Todos sem excepção. Povo: recusem, abandonem, abdiquem, rejeitem, impugnem, objectem, desobedeçam, desertem... Eles que se matem uns aos outros.

terça-feira, 19 de novembro de 2024

DOMESTICADORA DE GIRASSÓIS

 


Os 14 contos de Domesticadora de Girassóis, mais extensos do que é habitual neste autor, exploram universos fantasmagóricos com personagens que tentam equilibrar-se entre o real e o imaginário. O que há de anómalo e de paradoxal nas situações recriadas encontra na multiplicidade formal, que vai da ficção narrativa ao poético, da crónica ao drama, do relato autobiográfico à prosa ensaística e ao diário, vias de expressão para seres cuja existência está em permanente conflito com um mundo onde a separação entre caos e ordem perdeu qualquer sentido.

236 páginas
Maio de 2024
 

Venda directa – pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
 
Também disponível 

na Snob: https://www.livrariasnob.pt/product/domesticadora-de-girassois ;





NINGUÉM OS MANDA MORRER

 

2014: "A vida das pessoas não está melhor mas o país está muito melhor".

2024: “Há um país que pulula todos os dias, apesar dos problemas no INEM, que são graves e que nós estamos a resolver."

Luís Montenegro, in "Ninguém os Manda Morrer".

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

50 X 11

 


“The Living Road”, Lhasa.
 
Lhasa (1972 – 2010) partiu demasiado cedo, com apenas 37 anos de vida. Criada entre o México e os EUA, amadurecida entre o Canadá e França, tinha música no sangue. Na árvore genealógica encontramos actrizes e actores, cantores, músicos, etc. Diz que na infância ouvia Victor Jara. O pai era mexicano. Não é de estranhar a natureza poliglota das suas canções, cantadas em espanhol, francês, inglês. Deixou-nos três álbuns: “La Llorona” (1997), “ The Living Road” (2003) e “Lhasa” (2009). E eu estou convencido de que os dois primeiros são obras-primas. É fácil comovermo-nos com esta música. Quando morreu, escrevi isto: «A voz de Lhasa é a respiração a cantar. Histórias de amor, sim, canções nocturnas, cantadas em cabarés, tabernas, nas ruas onde o povo dá voz à tradição. Tangos, blueswestern, valsa, folkvaudeville, bolero e porque não fado? Os sopros, as cordas e as percussões, a densidade dos arranjos, ruas desertas ladeadas por árvores gigantescas, uma mulher a dançar com a própria sombra, uma doçura, uma ternura imensa, a sensualidade desenhada a preto e branco com contornos que dispensam reflexões. Porque as reflexões levam-nos sempre aos locais de partida. É tão simples partir para apenas chegar. Ao mesmo tempo, é tão comovente.» Levava-a comigo para uma ilha deserta.

FRENTE DE BATALHA

 
Quitéria pergunta se não é possível enviar para a guerra, uma delas, seja qual for, o coronel Mendes Dias, o coronel José Henriques, o major-general Carlos Branco, o major-general Isidro Pereira, o major-general Raul Cunha, o major-general Arnaut Moreira, o major-general Agostinho Costa e demais batalhão de comentadores graduados das televisões nacionais? E se puderem levar com eles a inteligência artificial do Marques Mendes, do Paulo Portas, da Helena Ferro Gouveia, da Maria João Marques, entre outros mísseis de parco alcance, a gente agradece.

domingo, 17 de novembro de 2024

JOSEF, NORUEGUÊS, CIGANO

 

«Um dos livros mais bonitos que apareceram na Noruega nos últimos anos é sem dúvida o Livro das cabanas-abrigos (koie) termo que designa cabanas ou abrigos primitivos usados normalmente como sítio de pernoita temporária. Ainda hoje existem uma série delas que são propriedade pública e que podem ser usadas gratuitamente por turistas ou viandantes. Neste livro, uma edição luxuosa com belíssimas fotografias (da Gyldendal), o historiador-etnógrafo Thor Gotaas em parceria com M. N. Pettersen, traça a história das pequenas e rudimentares cabanas ao longo dos tempos; utilização que tiveram, e a sua localização geográfica. Como é hábito nos livros de Thor Gotaas, a propósito de um tópico ou assunto historiado, aparecem sempre histórias de indivíduos. É um dos encantos dos seus livros. A forma como resgata do esquecimento seres anónimos e já esquecidos reconstruindo-lhes a dignidade ao apresentá-los ao público.

É aqui que encontramos Josef e a sua história ao longo de 16 páginas. Quando a mãe de Josef morreu de parto, o rapaz, nascido em 1900, foi dado pelas organizações religiosas para adopção a uma família de acolhimento. Tinha sete anos. Cresceu, como qualquer adolescente, só que sob suspeição e vigilância das missões sempre suspeitosas das criançãs da sua etnia ("tinham no sangue" o nomadismo, a pouca vocação para o trabalho e a inquietude, quando não a propensão para a vigarice e criminalidade, segundo as crenças da época) e no final da adolescência já tinha sido marcado pela comunidade local como problemático. Quando não como delinquente. Jovem adulto, os seus crimes montavam já a ter roubado de uma barrica ou balde (em ajuntadilha com outro) uns arenques, ter escavacado um ancinho e ter feito um corte numa mochila. Tais delitos, mais o defeito de ser respondão e irreverente, foram suficientes para o enviar para a prisão no início dos anos vinte. E da prisão para o asilo, porque agora na prisão juntava-se ao anterior estigma dos zelotas religiosos a ciência dos zelotas da higiene racial. O diagnóstico médico dava-o como atrasado mental. E aí, no asilo, passou grande parte (segunda metade) da década de 1920, com tratos de animal irracional.

Libertado, voltou às imediações de Dokka, à paróquia de Østsinni, onde se tornou trabalhador florestal. Como era hábito na época, os trabalhadores viviam em pequenas cabanas provisórias, de reduzida dimensão, aquando dos cortes de madeira. Josef, não tendo a quem voltar e suspeitoso da sociedade (com boas razões, já que a sua etnia foi perseguida, as crianças retiradas aos pais, os adultos enviados para campos de trabalho, acabando a última humilhação na proibição de ter cavalos - quando ao longo de séculos tinham sido os melhores fornecedores de cuidados veterinários, a ponto de o exército não passar sem eles especialmente nos séculos XVII e XVIII) foi ficando. E encontrou nos pequenos abrigos a sua casa. Passou a viver isolado, de cabana em cabana, em espaços diminutos 10, 15 metros quadrados (coisa que pode ter as suas conveniências quando no inverno os termómetros passam dos 20 negativos) numa vida espartana, a partir de dado momento subsistindo de caça e pesca, visitado apenas por amigos fiéis de forma esporádica.

O que é curioso na história de um homem com este tipo de vida e neste tipo de isolamento em que passou a viver durante as décadas de 30, 40 e 50, é que Thor Gotaas o descreve, intitulando até com essa característica um sub-capítulo, como leitor voraz = cavalo de leitura = lesehest. Lia de tudo o que apanhava. Jornais, poesia, romances, monografias sobre natureza. Os seus autores preferidos, Hans Børli, o poeta norueguês que melhor cantou as florestas e Mikkjel Fønhus* romancista que tinha na natureza selvagem e nos cenários das florestas os seus temas favoritos. Viveu anónimo, mas imagino que os seus autores favoritos não teriam desdenhado saber que tinham um leitor assim (…). Olhando a história de Josef no livro de Gotaas, ilustrado pelas belíssimas fotografias que lhe tirou Arne Rignes, o título do subcapítulo (lesehest - cavalo de leitura) e os testemunhos de amigos fiéis que o descreveram como homem inteligente e sensível, dou comigo a pensar que os leitores ideais destas páginas teriam sido os zelotas da religião e da higiene racial que o classificaram de atrasado mental e que o privaram de liberdade durante quase uma década. Já é tarde. Mas servem de exemplo a outros. E aqui fica.»


Vítor Rodrigues (no Facebook)

sábado, 16 de novembro de 2024

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

50 X 10

 


“Alice”, Bernardo Sassetti.
 
O jazz português anda nas primeiras páginas pelas piores razões. Ou talvez não. É bom falar-se nestas coisas, não deixar a podridão no silêncio amargurado das vítimas. Quem esteja familiarizado com a história do jazz sabe que não é mundo para meninos. Prostituição, tráfico de droga, toxicodependência, violência, máfia, abusos, violações, prisões, crimes vários compõem o ramalhete. Os tempos são outros, dizem. É verdade, mas os vícios humanos são os mesmos. Que venham à tona as trafulhices, os assédios, as injustiças, a invídia, a lascívia e a luxúria e demais pecados mortais, é bem de que não podemos prescindir. Eu gosto de jazz. Do passado e do presente. A música é superior aos homens que a compõem, ainda que, por vezes, entre ambos haja uma espécie de confusão. Não conheci Bernardo Sassetti, não sei se era boa ou má pessoa. Desconfio que, como todas as pessoas, teria os seus vícios e as suas virtudes. E é nestas que a música repercute. Habituei-me a gostar de jazz português a ouvi-lo, a ele e ao Carlos Barreto, ao Alexandre Frazão (excelente trio), ao Mário Delgado, ao Bica, entre outros. Aí fica em primeiro plano “Alice”, banda sonora exemplar para o comovente filme de Marco Martins. Curiosamente, o protagonista do filme também foi há tempos acusado de violação. Não sei como ficou essa história, sei que vivemos num mundo sórdido e a música não tem culpa nenhuma disso. O cinema também não.

TORPE

 
Dizia ontem cá em casa o que agora partilho aqui. Este ano, a disposição natalícia está em níveis negativos como nunca antes esteve. O único Natal que se me apresenta admissível é na rua, enrolado numa bandeira da Palestina. Como celebrar o Natal com um genocídio a acontecer em directo? Como passar indiferente a tudo isto? É pior do que pornográfico, é obsceno ao mais alto nível. Centenas de milhares de euros em luzes e árvores e enfeites, com todo um povo ali ao lado a sobreviver entre escombros, condenado à morte por exércitos comandados por facínoras em quem ninguém tem mão. Torpe, tudo isto é torpe. Como ter ainda alguma esperança na humanidade?

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

50 X 9

 



"Bob Dylan", Bob Dylan.

Os primeiros acordes que arranhei na guitarra foi a tentar tocar “Blowin’ in The Wind”, “The Times They Are A-Changin”, “Knockin’ on Heaven’s Door”. “All Along the Watchtower”, entre outras do Nobel da Literatura Bob Dylan. A sinusite e a rinite ajudavam à imitação do registo nasalado de Dylan, que, na verdade, não é tão nasalado quanto se pinta. Tem dias. Vi-o duas vezes ao vivo. A primeira foi para esquecer, valeu pela primeira parte de Laurie Anderson. Mas a segunda, mais recente, teve qualquer coisa de religioso. São canções que me têm acompanhado a vida inteira, pelo menos desde que me lembro de ter vida. A minha versão preferida de “House of The Rising’ Sun” continua a ser a do álbum de estreia, um conjunto de canções que dá bem conta da força da folk norte-americana. O blues, a country, a canção de protesto à la Woody Guthrie, mas também o gospel, são uma escola imprescindível que Dylan acolheu, transformou, promoveu, por vezes em contextos bastante adversos e polémicos. Não é consensual e ainda bem, detesto consensos. Eu sou fã incondicional, mesmo percebendo que aqui e acolá o oportunismo falou mais alto e traiu valores essenciais. Ainda assim, quem me tira “Like a Rolling Stone” tira-me parte da vida.

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

NOTÍCIAS FALSAS

 

Esta foi a notícia que nos deram:

Pentágono "não exclui" extraterrestres, Casa Branca diz que "não há sinal de aliens".

Esta é a notícia verdadeira:

Pentágono "não exclui" extraterrestres, Casa Branca "está cheia de aliens".

quarta-feira, 13 de novembro de 2024

VIVA O CAPITALISMO

 


O multimilionário fundador da marca de veículos eléctricos Tesla, da Space X e dono do Twitter gastou mais de 119 milhões de dólares na eleição de Trump. Negócios da democracia à americana.

terça-feira, 12 de novembro de 2024

50 X 8

 



“Ágætis byrjun”, Sigur Rós.

Comecei a ouvir os islandeses Sigur Rós em 1999, seduzido pelo belíssimo teledisco de “Svefn-g-englar”. Nunca mais os larguei. Dos oito álbuns da banda, faltam-me dois: o primeiro, “Von” (1997), e o último, “Átta” (2023). Vi-os, salvo erro, duas vezes ao vivo, uma em Lisboa, outra no Porto. Guardo o bilhete da ida ao Porto, em vésperas de fazer anos, por haver nele uma carga emocional que tem que ver com a boa companhia de um amigo entretanto ausentado. Foi uma bela noite, esse 19 de Novembro de 2005, ao som dos temas de “Ágætis byrjun” (1999) e “Takk...” (2005). Já lá vão quase 20 anos. Os Sigur Rós são a prova de que a língua não é barreira à percepção do lirismo contido na música. Mesmo que percebesse islandês, parte das canções são interpretadas num dialecto inventado que só eles sabem, feito de murmúrios, sílabas arrastadas, sussurros, um cantar etéreo que já conhecia e apreciava na obra de Wim Mertens. Regresso amiúde à música destes islandeses. Oferecem-me paisagens reconfortantes, fazem-me acreditar que a humanidade pode ser mais do que a vesânia dos líderes mundiais e a indolência extrema de meio mundo subserviente aos ditames desses possessos no poder.

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

FRANK AUERBACH (1931-2024)

 


Frank Auerbach (1931 - 2024). Enviado pelos pais da Alemanha para a Grã-Bretanha, tornou-se conhecido no final da década de 1950 pela técnica de empastamento, sobrepondo imensas camadas de tinta. Alguns quadros são tão espessos que parecem esculturas. Os pais morreram num campo de concentração nazi.

domingo, 10 de novembro de 2024

50 X 7

 


"Retrato em Preto e Branco" (3 CD), Chico Buarque.

Como muita gente da minha geração, cheguei à música brasileira através das telenovelas. E do Roberto Carlos. Lá em casa havia um single com “Emoções” no Lado A e “Cama e mesa” no Lado B. No leitor de cassetes do carro de família, rodava um best of com “Splish Splash”, “O Calhambeque”, “Quero que vá tudo pro Inferno”, essas coisas. Só mais tarde, em casa de um amigo, descobri o que haveria de prender-me para sempre à música brasileira. “Meus Caros Amigos” (1976), o LP da entretanto caída em desgraça “Mulheres de Atenas”, foi cartão-de-visita para o reportório de Chico Buarque, genial escritor de canções cuja pena fui redescobrindo ao longo dos anos em temas tais como “Pedro Pedreiro”, “Olé, Olá” ou “Funeral de um lavrador” (sobre poema de João Cabral de Mello Neto). Para mim a música brasileira confunde-se com a figura de Chico Buarque, com o samba de “Corrente”, com a bossa de “Retrato em branco e preto”, com a capacidade de enervar tanto a ditadura militar como os puristas da música popular brasileira. Estava aqui a ouvir a versão italiana de “A Banda”, gravada no exílio, e a pensar como é tão ignóbil este tempo de recrudescimento dos ódios que alimentam tiranias e transforma o povo em títeres manipulados pelas mãos de lideranças brutas. O povo é uma massa inconsistente, uma pessoa facilmente se deprime ao constatar tanta mediocridade medrando nas ruas.

sábado, 9 de novembro de 2024

MUROS

 
A propósito das celebrações em torno da queda do Muro de Berlim, com uma velinha soprada pelo fim do comunismo e outra pela vontade dos povos quebrarem fronteiras, queria só aqui lembrar este facto: "Calcula-se que existam actualmente no mundo 71 muros que não se podem cruzar e que somam cerca de 40 mil quilómetros, o mesmo que a circunferência da Terra". A maior parte destes muros foram erguidos depois de 1989 e o Mediterrâneo da nossa vergonha não entra nas contas. Entretanto, é notícia no The Guardian que "juízes italianos ordenaram que sete homens detidos num centro de migração na Albânia fossem transferidos para Itália, num revés ao polémico acordo entre o governo de extrema-direita de Roma e Tirana, que visa conter a chegada de refugiados." Celebremos.

sexta-feira, 8 de novembro de 2024

TEATRO E SOCIEDADE, HOJE

 

UM NEURÓNIO E UM ALGORITMO ENCONTRAM-SE NUM BAR
 
   O tema destas conferências é complexo, desde logo porque a presença no título da conjunção coordenativa “e” pode gerar equívocos. Estamos a falar de uma oposição entre Teatro e Sociedade ou partimos do princípio que entre ambos há uma relação histórica mais ou menos sólida? O advérbio de tempo “hoje”, precedido de uma vírgula, restringe-nos o campo de reflexão, mas também não facilita a tarefa. O “hoje” está a ser vivido, ainda não é possível ter sobre ele um distanciamento que permita perspectivas desapaixonadas. Imersos no hoje, cada um de nós tenderá a pensá-lo mais em função das suas experiências pessoais do que apoiado num olhar esclarecido pelo trabalho que, esperamos, venham os historiadores a concretizar no futuro. Talvez seja isso o que se pretende, a partilha de visões apaixonadas e imersas na urgência de um problema que, não sendo exclusivo de agora, assume novas configurações naturalmente consequentes do que no tempo se foi perdendo, transformando e adquirindo.
   Ainda que entre passado e presente vislumbremos elos inquebráveis, relações de causalidade, eternos retornos, fastidiosas e desmotivadoras repetições, também encontramos momentos de ruptura que, como queria o filósofo, físico e historiador norte-americano Thomas Kuhn, instauram momentos de crise e levam a mudanças de paradigma. Creio que estamos agora a experienciar um desses momentos, a que a relação entre Teatro e Sociedade não passará incólume. Partirei, então, do princípio que estamos a tratar de uma relação, já que não consigo conceber o Teatro e a Sociedade senão no contexto de uma interacção dinâmica que leva a que o Teatro seja contaminado pela Sociedade ao mesmo tempo que a contamina. Não tendo notícia de Teatro entre os anacoretas do deserto, constato que até as experiências teatrais mais radicalmente marginais à Sociedade se manifestam no interior dessa mesma Sociedade ou para contestá-la ou para dela almejar o afastamento possível.
   Desta constatação advém uma primeira premissa: o Teatro é tão intrínseco à Sociedade como esta o é ao Teatro. No entanto, creio que a essa premissa podemos acrescentar algumas proposições, como por exemplo a de que o Teatro pode fazer-se para a Sociedade ou contra ela, sendo que em nenhum caso deixa de se realizar com ela, dentro dela, procurando reflecti-la, problematizá-la, transformá-la ou simplesmente, na pior das hipóteses, entretê-la, diverti-la, distraí-la. Assim sendo, a questão que julgo mais pertinente nos dias que correm é esta: como pode a nossa Sociedade acolher o Teatro no seu ambiente desprovido de massa crítica, sem esvaziá-lo ou privá-lo da sua função primitiva que é estimular o pensamento crítico, pondo em causa o statu quo desmontando os estereótipos e os preconceitos que obscurecem a realidade? A resposta a esta questão obriga, antes de mais, a que pensemos a nossa Sociedade. Que sabemos nós acerca da Sociedade em que actuamos?
   Estou convencido de que a característica mais diferenciadora e determinante do que é hoje a nossa Sociedade tem que ver com o advento das então novas tecnologias na segunda metade do século passado, primeiro com o desenvolvimento e a massificação da internet, depois com a disseminação dos smartphones, agora com o incremento da Inteligência Artificial. Permitam-me um parêntesis à laia de declaração de interesses. Padeço de um confrangedor desinteresse pela tecnologia, nomeadamente por aquilo a que chamam novas tecnologias. Chego-lhes sempre atrasado, ou seja, quando são já velhas e se tornaram obsoletas. Não sendo infoexcluído, uso o computador e o smartphone com parcimónia. Desconheço a imensa maioria de funções oferecidas por esses aparelhos, constatação que faço por tantas vezes ouvir alguém perguntar-me com espanto: "não sabias?" Não, não sabia que o meu smartphone tinha tamanhas competências. Se não sei, é porque não faço por sabê-lo. Em sabendo, dou-lhes o uso que me for mais prático. Quase sempre nenhum. A Inteligência Artificial também não me entusiasma por aí além. O entusiasmo que encontro noutras pessoas por essas coisas quase sempre me deprime. Não as olho com a desconfiança do indígena perante um espelho nem com a admiração do Papa Leão X pelas invenções de Leonardo da Vinci, são-me geralmente indiferentes. O ChatGPT, que parece fazer as delícias da população discente contribuindo para a ansiedade e a depressão da população docente, passa-me ao lado como cão por vinha vindimada. O meu sonho é morrer num estado que me aproxime o mais possível do modus vivendi do homem das cavernas, de preferência caçado por um tigre dentes-de-sabre.
   Dito isto, a verdade é que vivo entre um povo fascinado por gadgets. Dizem as estatísticas que 84% dos portugueses usam smartphones, somos o 8.º país da União Europeia com mais telemóveis por habitante. Em compensação, somos o quinto que menos livros lê por ano. 61% da população portuguesa, segundo o Eurostat, não lê um único livro durante um ano. Pior que nós só a Bulgária, a Itália, o Chipre e a Roménia. Em Julho de 2021, uma notícia do jornal Público dava conta de que os «Portugueses já passam mais tempo online do que a dormir». Enfim, no meu caso não é difícil, padeço de insónias. Estamos sob a tempestade perfeita de uma revolução tecnológica sem precedentes, não equiparável sequer à Revolução Industrial do século XVIII porque então, entre os homens e as máquinas, havia uma diferença básica: as máquinas não raciocinavam, era o homem quem as controlava e dominava. Agora, as máquinas não só raciocinam como têm a capacidade de o fazer mais eficazmente do que qualquer ser humano, mesmo o mais dotado dos seres humanos.
   Cada vez mais influenciada pela inteligência das máquinas, a nossa vida social tende a ser também cada vez mais anti-social. Os algoritmos condicionam as decisões que tomamos, vamos para o engate no Tinder e andamos à porrada no X, experienciando índices elevadíssimos de excitação em corpos fechados sobre si mesmos. Abrimo-nos no ginásio, narcisicamente reflectidos num espelho. Aí abrimo-nos ao nosso reflexo, somos magníficos, deslumbrantes, apetecíveis. Ou então abrimo-nos na chaise-longue do psiquiatra para que nos trate dos medos e das fobias, dos recalcamentos, da histeria. Que lugar ocupa o Teatro numa Sociedade assim, feita de indivíduos cerrados em si mesmos, afastados uns dos outros, indisponíveis para a autocrítica e a dúvida, uma sociedade em que estamos cada vez menos na presença uns dos outros?
   Na escola, aprendi e ensinei que as acções livres são aquelas pelas quais podemos responsabilizar quem actua. Ora, hoje estamos sob uma espécie de coacção voluntária que, em parte, nos exime da responsabilidade sobre as nossas próprias decisões. Abdicamos de liberdades para nãos nos responsabilizarmos. Dizia a socióloga Évelyne Sullerot num livro publicado em 1997 com o título “Le grand remue-ménage” (comoção?) que, a partir da década de 1980, passámos a recorrer ao aconselhamento para dormir, comer, fazer amor, ter filhos, educá-los, tirar um curso, trabalhar, para se «ser a si mesmo», num retrato certeiro do processo de infantilização massiva que trouxe as sociedades ditas desenvolvidas até aqui, a este hoje em que grande parte das pessoas abdica de ser social adoptando a cultura online. Nas redes, entre mim e o outro não se intromete o cheiro, é tudo aparente, estamos protegidos pela distância, o outro é mais um simulacro apreciável e desejável do que um ser intrigante, um diverso que me interpela. O match é que manda. Os interesses singulares de cada indivíduo sobrepõem-se, assim, aos do cidadão participativo, pelo que não admira o ataque à cidadania e ao seu ensino em escolas que progressivamente vêm substituindo a formação de cidadãos pela formatação de empreendedores. Estamos zangados com o mundo? Publicamos um post, assinamos uma petição. E o mundo lá prossegue a sua marcha com cada um de nós engravatado nas suas vidas vidinhas, como diria Alexandre O’Neill. 
   As consequências do caminho trilhado estão diagnosticadas, vão sendo estudadas e debatidas, divulgadas e discutidas em múltiplos fóruns, publicadas em livro, revistas, artigos académicos, papers a granel e, como não podia deixar de ser, chegaram ao Teatro. Há dois anos, o dramaturgo britânico Martin Crimp, num espectáculo intitulado “Not One of These People”, recorreu à Inteligência Artificial e a tecnologia deepfake para questionar a definição de drama e o que é ser humano. 300 rostos gerados por Inteligência Artificial são animados em tempo real por tecnologia que reproduz a voz e os movimentos faciais de Crimp em cada um daqueles rostos. Crimp entra e sai ocasionalmente de cena, cumprindo o seu papel de marionetista pós-humano. Entre os rostos no ecrã e os títeres manipulados num pequeno Teatro não há grande diferença.
   E já que estou com a mão na massa, falo-vos também um pouco de “Na República da Felicidade”, peça do mesmo Martin Crimp que o Teatro da Rainha levará à cena em breve, com encenação de Fernando Mora Ramos, numa co-produção do Teatro da Rainha com o Teatro Nacional São João e o Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha. Na segunda parte deste tríptico feito de descontinuidades narrativas, Crimp oferece-nos um retrato desconcertante da Sociedade actual sob o título genérico de “As Cinco Liberdades Essenciais do Indivíduo”. Uma mão cheia de liberdades. Indica-nos inicialmente que nessa parte não há distribuição de papéis, mas toda a companhia deve participar numa polifonia textual em que salta à vista o paradoxo das individualidades que se subsumem sob um padrão que as uniformiza. «Eu sou único, isto não tem nada que ver com política», dizem todos em coro, à vez. Ao ser proferida por todos, esta frase deixa de demarcar qualquer singularidade, transforma-se num padrão, numa redundância, num desses chavões que se repetem ad nauseam blindando-nos à crítica, ao conflito, à diferenciação. Estamos in. Se todos apregoam que são únicos, onde fica a individualidade? Todos são únicos, singulares, individuais, mas a dizerem exactamente as mesmas coisas. Entre pessoas assim e os títeres manipulados num pequeno teatro não há grande diferença.
   Se bem estão recordados, a internet foi-nos vendida inicialmente como uma ferramenta libertadora. Propulsionadora de uma globalização tão elogiada a seguir à queda do Muro de Berlim, a internet libertaria finalmente os povos da escravatura do trabalho, as máquinas fariam por nós, em meia dúzia de horas, o que nós nos esfalfávamos uma vida inteira para fazer. A globalização serviu aos mercados, não serviu aos seres humanos — como facilmente se constata nos discursos actuais sobre políticas de imigração e na quantidade de muros entretanto erguidos, para não mencionar um Mediterrâneo transformado em cemitério. Já a internet, nossa putativa salvadora, não nos livrou da servidão e, independentemente de mais-valias que ninguém nega ou põe em causa, tem beneficiado sobretudo os grandes traficantes das novas drogas livres, sejam eles Jeff Bezos, Zhang Yiming, Elon Musk, Bill Gates ou Mark Zuckerberg.
   O nosso futuro pós-humano, expressão usada pelo não necessariamente recomendável filósofo e economista Francis Fukuyama num livro de 2002, aí está no seu máximo esplendor, sintetizado em parangonas noticiosas como esta: «Futuro da inteligência artificial é o raciocínio e o planeamento». Do parapeito da janela do computador, observamos esse futuro enquanto os algoritmos vão ganhando terreno aos neurónios no campo de batalha. Uma Sociedade de clones, será isso? Talvez ainda haja esperança: se nós falhámos no planeamento, como parece que falámos, pode ser que as máquinas acertem. Mas quem é que depois responsabilizaremos se correr mal? Impõe-se uma nova pergunta: que papel tem o Teatro a desempenhar nesta Sociedade em que os indivíduos estão cada vez menos na presença uns dos outros, permitindo que as relações entre si sejam mediadas por mecanismos que não controlam de todo e lhes oferecem uma ilusão de liberdade enquanto se vão mimetizando? Não falo, portanto, desse estar em ajuntamentos massivos, típico de rituais religiosos, como os festivais e os futebóis, em que o ser se apaga na confusão da multidão, um estar não estando.
   O mais relevante, creio, é não nos rendermos ao espectáculo e ao entretenimento esvaziado de crítica, não abdicarmos desse espírito crítico que o teatro promove ao confrontar-nos com a realidade, não prescindirmos desse questionamento permanente, desse debate incessante, cedendo à facilidade das emoções e do pathos que de tudo se apropria por via do populismo e do sensacionalismo. Estamos em guerra contra o superficial, contra as perspectivas reducionistas que simplificam em vez de problematizar. É uma guerra aberta e declarada, pois não acreditamos que para problemas complexos existam explicações simplistas. De explicações simplistas está cheia a barca do inferno. Esta não rendição deve ser ancorada numa atitude de resistência a tudo quanto pretenda impedir o Teatro de ser Teatro, impelindo-o para o abismo do mero divertimento, do passatempo, do entretenimento publicitário, da diversão sedutora mesmo quando disfarçada por causas nobres. Um Teatro que não problematize, subserviente aos esquemas e à lógica de um mercado que seduz para gerar dependência, não nos interessa.
   Sirvo-me de 2 entre 36 parágrafos que compõe o texto intitulado “Teatro: arte no coração da polis”, coligido por Fernando Mora Ramos no livro “Uma caixa preta é uma folha branca. Ensaios sobre teatro”. Diz ele:
   «19. O teatro é um espaço dos potenciais hereges, isto é, de gente disposta a escapar à formatação, último reduto, uma clareira de possibilidades, de laicidade por oposição às religiões e aos rituais das modas, à condição do sujeito anonimamente perdido na sua “individualidade” in-significante no meio da massa. O teatro é um território do eu e da cidade, do eu e do mundo, teatro do eu – teatro do mundo.»
   E continua, mais à frente:
   «28. O teatro é inimigo do mercado na medida em que o mercado é inimigo do comum liberto do que, sendo acção das massas, é esclarecido, da política laica, essa forma autónoma e organizacional da possibilidade de um destino não escravo, autodeterminado.»
   Estamos, portanto, na luta por um Teatro que pretenda contribuir para a emancipação dos indivíduos e, por consequência, esteja na raiz de uma Sociedade livre e plural, que abrace o debate crítico sem temer o contraditório, sem fazer disso escândalo, encarando-o como valor acrescentado. A Sociedade, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é uma mera entidade abstracta, é um todo dinâmico em construção composto por indivíduos que não nascem isolados, nascem num contexto que lhes oferece, desde logo, uma língua para se exprimirem e com a qual poderão olear o pensamento.
   Tal como as outras artes, o Teatro não pode deixar-se engolir pelas leis do mercado que confundem sucesso com fama passageira e hipotecam essa dimensão solidária do pensamento que é a expressão artística. Precisamos de um Teatro que se oponha desavergonhadamente a essa ideia de sucesso, que não se permita reduzido aos efeitos de um anúncio publicitário exibido entre as notícias do genocídio em Gaza, precisamos dele como de pão para a boca ou de ar para os pulmões, não no sentido de uma ruptura total com a Sociedade mas antes no sentido de algo que, estando no seu interior, a assimila, digere e transfigura, rompendo com modelos pré-estabelecidos e propondo aventuras renovadoras da criação humana, gerando crises para que novos paradigmas se instaurem.
   O erro é a melhor arma que o neurónio tem contra o algoritmo padronizador, o erro é a melhor ferramenta do conhecimento, insistamos no erro: «Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.»
 
Henrique Manuel Bento Fialho
Évora, 8 de Novembro de 2024

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

DA IDOLATRIA

 
91 anos passados sobre a ascensão de Hitler ao poder, a pergunta "como foi possível?" serve apenas de prova para a degeneração do papel da memória e do saber que caracteriza o último século. Não aprendemos absolutamente nada com a História. Antes pelo contrário, desaprendemos largando mão da dúvida, da curiosidade, hipotecando o pensamento crítico, investindo em modelos educativos que são apenas promotores de competências técnicas ao serviço do capitalismo e das suas dinâmicas de sucesso num mundo movido pelo consumo. Da América já pouco devíamos esperar depois do macarthismo e de outros exemplos que nos provam ser ali a democracia um mero simulacro. O sistema eleitoral americano é disso exemplo gritante com o tal Colégio Eleitoral. Mas nada disto é deveras preocupante perante o processo de americanização global que se manifesta nos comportamentos das pessoas, cada vez mais acríticas, entretidas com os seus gadgets, fascinadas consigo mesmas, arrumadas em uniformes que as tornam previsíveis, sem qualquer rasgo diferenciador. Como foi possível? Exactamente como será possível cá se continuarmos a ignorar o que está a acontecer na nossa sociedade cada vez mais estupidificafa, infantilizada, desinteressada do outro, do diferente, uma sociedade de indivíduos que veneram os próprios egos, que se adoram a si mesmos tanto quanto odeiam os que se lhe opõem. Há quem lhe chame polarização, mas é mais profundo do que isso. Os ídolos, ah, os ídolos.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

DEMOCRACIA OVAL

 
Condenado por 34 crimes, regressa à casa oval. É esta gema podre que o mundo venera, caucionando aquela ideia de "donos do mundo". Um exemplo de democracia, não haja dúvidas, de glock na mão. Aleluia. No X, os broncos do Chega exultam. Querem desalojar quem incendeia caixotes do lixo, mas festejam o regresso à Casa Branca de um criminoso.