O tema destas conferências é complexo, desde
logo porque a presença no título da conjunção coordenativa “e” pode gerar
equívocos. Estamos a falar de uma oposição entre Teatro e Sociedade ou partimos
do princípio que entre ambos há uma relação histórica mais ou menos sólida? O
advérbio de tempo “hoje”, precedido de uma vírgula, restringe-nos o campo de
reflexão, mas também não facilita a tarefa. O “hoje” está a ser vivido, ainda
não é possível ter sobre ele um distanciamento que permita perspectivas
desapaixonadas. Imersos no hoje, cada um de nós tenderá a pensá-lo mais em
função das suas experiências pessoais do que apoiado num olhar esclarecido pelo
trabalho que, esperamos, venham os historiadores a concretizar no futuro.
Talvez seja isso o que se pretende, a partilha de visões apaixonadas e imersas
na urgência de um problema que, não sendo exclusivo de agora, assume novas
configurações naturalmente consequentes do que no tempo se foi perdendo, transformando
e adquirindo.
Ainda que entre passado e presente
vislumbremos elos inquebráveis, relações de causalidade, eternos retornos,
fastidiosas e desmotivadoras repetições, também encontramos momentos de ruptura
que, como queria o filósofo, físico e historiador norte-americano Thomas Kuhn,
instauram momentos de crise e levam a mudanças de paradigma. Creio que estamos agora
a experienciar um desses momentos, a que a relação entre Teatro e Sociedade não
passará incólume. Partirei, então, do princípio que estamos a tratar de uma
relação, já que não consigo conceber o Teatro e a Sociedade senão no contexto
de uma interacção dinâmica que leva a que o Teatro seja contaminado pela Sociedade
ao mesmo tempo que a contamina. Não tendo notícia de Teatro entre os anacoretas
do deserto, constato que até as experiências teatrais mais radicalmente
marginais à Sociedade se manifestam no interior dessa mesma Sociedade ou para
contestá-la ou para dela almejar o afastamento possível.
Desta constatação advém uma primeira premissa:
o Teatro é tão intrínseco à Sociedade como esta o é ao Teatro. No entanto,
creio que a essa premissa podemos acrescentar algumas proposições, como por
exemplo a de que o Teatro pode fazer-se para a Sociedade ou contra ela, sendo
que em nenhum caso deixa de se realizar com ela, dentro dela, procurando
reflecti-la, problematizá-la, transformá-la ou simplesmente, na pior das
hipóteses, entretê-la, diverti-la, distraí-la. Assim sendo, a questão que julgo
mais pertinente nos dias que correm é esta: como pode a nossa Sociedade acolher
o Teatro no seu ambiente desprovido de massa crítica, sem esvaziá-lo ou privá-lo
da sua função primitiva que é estimular o pensamento crítico, pondo em causa o statu quo desmontando os estereótipos e
os preconceitos que obscurecem a realidade? A resposta a esta questão obriga,
antes de mais, a que pensemos a nossa Sociedade. Que sabemos nós acerca da Sociedade
em que actuamos?
Estou convencido de que a característica
mais diferenciadora e determinante do que é hoje
a nossa Sociedade tem que ver com o advento das então novas tecnologias na
segunda metade do século passado, primeiro com o desenvolvimento e a
massificação da internet, depois com a disseminação dos smartphones, agora com o incremento da Inteligência Artificial.
Permitam-me um parêntesis à laia de declaração de interesses. Padeço de um confrangedor
desinteresse pela tecnologia, nomeadamente por aquilo a que chamam novas
tecnologias. Chego-lhes sempre atrasado, ou seja, quando são já velhas e se
tornaram obsoletas. Não sendo infoexcluído,
uso o computador e o smartphone com
parcimónia. Desconheço a imensa maioria de funções oferecidas por esses
aparelhos, constatação que faço por tantas vezes ouvir alguém perguntar-me com
espanto: "não sabias?" Não, não sabia que o meu smartphone tinha tamanhas competências. Se não sei, é porque não faço
por sabê-lo. Em sabendo, dou-lhes o uso que me for mais prático. Quase sempre
nenhum. A Inteligência Artificial também não me entusiasma por aí além. O
entusiasmo que encontro noutras pessoas por essas coisas quase sempre me
deprime. Não as olho com a desconfiança do indígena perante um espelho nem com
a admiração do Papa Leão X pelas invenções de Leonardo da Vinci, são-me
geralmente indiferentes. O ChatGPT, que parece fazer as delícias da população
discente contribuindo para a ansiedade e a depressão da população docente,
passa-me ao lado como cão por vinha vindimada. O meu sonho é morrer num estado
que me aproxime o mais possível do modus
vivendi do homem das cavernas, de preferência caçado por um tigre
dentes-de-sabre.
Dito isto, a verdade é que vivo entre um
povo fascinado por gadgets. Dizem as
estatísticas que 84% dos portugueses usam smartphones,
somos o 8.º país da União Europeia com mais telemóveis por habitante. Em
compensação, somos o quinto que menos livros lê por ano. 61% da população
portuguesa, segundo o Eurostat, não lê um único livro durante um ano. Pior que
nós só a Bulgária, a Itália, o Chipre e a Roménia. Em Julho de 2021, uma
notícia do jornal Público dava conta de que os «Portugueses já passam mais
tempo online do que a dormir». Enfim,
no meu caso não é difícil, padeço de insónias. Estamos sob a tempestade
perfeita de uma revolução tecnológica sem precedentes, não equiparável sequer à
Revolução Industrial do século XVIII porque então, entre os homens e as
máquinas, havia uma diferença básica: as máquinas não raciocinavam, era o homem
quem as controlava e dominava. Agora, as máquinas não só raciocinam como têm a
capacidade de o fazer mais eficazmente do que qualquer ser humano, mesmo o mais
dotado dos seres humanos.
Cada vez mais influenciada pela inteligência
das máquinas, a nossa vida social tende a ser também cada vez mais anti-social.
Os algoritmos condicionam as decisões que tomamos, vamos para o engate no
Tinder e andamos à porrada no X, experienciando índices elevadíssimos de
excitação em corpos fechados sobre si mesmos. Abrimo-nos no ginásio,
narcisicamente reflectidos num espelho. Aí abrimo-nos ao nosso reflexo, somos
magníficos, deslumbrantes, apetecíveis. Ou então abrimo-nos na chaise-longue do psiquiatra para que nos
trate dos medos e das fobias, dos recalcamentos, da histeria. Que lugar ocupa o
Teatro numa Sociedade assim, feita de indivíduos cerrados em si mesmos,
afastados uns dos outros, indisponíveis para a autocrítica e a dúvida, uma sociedade
em que estamos cada vez menos na presença uns dos outros?
Na escola, aprendi e ensinei que as acções
livres são aquelas pelas quais podemos responsabilizar quem actua. Ora, hoje
estamos sob uma espécie de coacção voluntária que, em parte, nos exime da
responsabilidade sobre as nossas próprias decisões. Abdicamos de liberdades
para nãos nos responsabilizarmos. Dizia a socióloga Évelyne Sullerot num livro
publicado em 1997 com o título “Le grand remue-ménage” (comoção?) que, a partir
da década de 1980, passámos a recorrer ao aconselhamento para dormir, comer,
fazer amor, ter filhos, educá-los, tirar um curso, trabalhar, para se «ser a si
mesmo», num retrato certeiro do processo de infantilização massiva que trouxe as
sociedades ditas desenvolvidas até aqui, a este hoje em que grande parte das pessoas abdica de ser social adoptando
a cultura online. Nas redes, entre
mim e o outro não se intromete o cheiro, é tudo aparente, estamos protegidos
pela distância, o outro é mais um simulacro apreciável e desejável do que um
ser intrigante, um diverso que me interpela. O match é que manda. Os interesses singulares de cada indivíduo
sobrepõem-se, assim, aos do cidadão participativo, pelo que não admira o ataque
à cidadania e ao seu ensino em escolas que progressivamente vêm substituindo a
formação de cidadãos pela formatação de empreendedores. Estamos zangados com o
mundo? Publicamos um post, assinamos
uma petição. E o mundo lá prossegue a sua marcha com cada um de nós engravatado
nas suas vidas vidinhas, como diria Alexandre O’Neill.
As consequências do caminho trilhado estão
diagnosticadas, vão sendo estudadas e debatidas, divulgadas e discutidas em
múltiplos fóruns, publicadas em livro, revistas, artigos académicos, papers a granel e, como não podia deixar
de ser, chegaram ao Teatro. Há dois anos, o dramaturgo britânico Martin Crimp,
num espectáculo intitulado “Not One of These People”, recorreu à Inteligência
Artificial e a tecnologia deepfake para
questionar a definição de drama e o que é ser humano. 300 rostos gerados por Inteligência
Artificial são animados em tempo real por tecnologia que reproduz a voz e os
movimentos faciais de Crimp em cada um daqueles rostos. Crimp entra e sai
ocasionalmente de cena, cumprindo o seu papel de marionetista pós-humano. Entre
os rostos no ecrã e os títeres manipulados num pequeno Teatro não há grande
diferença.
E já que estou com a mão na massa, falo-vos
também um pouco de “Na República da Felicidade”, peça do mesmo Martin Crimp que
o Teatro da Rainha levará à cena em breve, com encenação de Fernando Mora
Ramos, numa co-produção do Teatro da Rainha com o Teatro Nacional São João e o
Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha. Na segunda parte deste
tríptico feito de descontinuidades narrativas, Crimp oferece-nos um retrato
desconcertante da Sociedade actual sob o título genérico de “As Cinco
Liberdades Essenciais do Indivíduo”. Uma mão cheia de liberdades. Indica-nos inicialmente
que nessa parte não há distribuição de papéis, mas toda a companhia deve
participar numa polifonia textual em que salta à vista o paradoxo das
individualidades que se subsumem sob um padrão que as uniformiza. «Eu sou
único, isto não tem nada que ver com política», dizem todos em coro, à vez. Ao
ser proferida por todos, esta frase deixa de demarcar qualquer singularidade, transforma-se
num padrão, numa redundância, num desses chavões que se repetem ad nauseam blindando-nos à crítica, ao
conflito, à diferenciação. Estamos in.
Se todos apregoam que são únicos, onde fica a individualidade? Todos são
únicos, singulares, individuais, mas a dizerem exactamente as mesmas coisas. Entre
pessoas assim e os títeres manipulados num pequeno teatro não há grande
diferença.
Se bem estão recordados, a internet foi-nos
vendida inicialmente como uma ferramenta libertadora. Propulsionadora de uma
globalização tão elogiada a seguir à queda do Muro de Berlim, a internet
libertaria finalmente os povos da escravatura do trabalho, as máquinas fariam
por nós, em meia dúzia de horas, o que nós nos esfalfávamos uma vida inteira para
fazer. A globalização serviu aos mercados, não serviu aos seres humanos — como
facilmente se constata nos discursos actuais sobre políticas de imigração e na
quantidade de muros entretanto erguidos, para não mencionar um Mediterrâneo
transformado em cemitério. Já a internet, nossa putativa salvadora, não nos
livrou da servidão e, independentemente de mais-valias que ninguém nega ou põe
em causa, tem beneficiado sobretudo os grandes traficantes das novas drogas
livres, sejam eles Jeff Bezos, Zhang Yiming, Elon Musk, Bill Gates ou Mark
Zuckerberg.
O nosso futuro pós-humano, expressão usada
pelo não necessariamente recomendável filósofo e economista Francis Fukuyama
num livro de 2002, aí está no seu máximo esplendor, sintetizado em parangonas
noticiosas como esta: «Futuro da inteligência artificial é o raciocínio e o
planeamento». Do parapeito da janela do computador, observamos esse futuro
enquanto os algoritmos vão ganhando terreno aos neurónios no campo de batalha. Uma
Sociedade de clones, será isso? Talvez ainda haja esperança: se nós falhámos no
planeamento, como parece que falámos, pode ser que as máquinas acertem. Mas
quem é que depois responsabilizaremos se correr mal? Impõe-se uma nova pergunta:
que papel tem o Teatro a desempenhar nesta Sociedade em que os indivíduos estão
cada vez menos na presença uns dos outros, permitindo que as relações entre si
sejam mediadas por mecanismos que não controlam de todo e lhes oferecem uma
ilusão de liberdade enquanto se vão mimetizando? Não falo, portanto, desse
estar em ajuntamentos massivos, típico de rituais religiosos, como os festivais
e os futebóis, em que o ser se apaga na confusão da multidão, um estar não
estando.
O mais relevante, creio, é não nos rendermos
ao espectáculo e ao entretenimento esvaziado de crítica, não abdicarmos desse
espírito crítico que o teatro promove ao confrontar-nos com a realidade, não
prescindirmos desse questionamento permanente, desse debate incessante, cedendo
à facilidade das emoções e do pathos
que de tudo se apropria por via do populismo e do sensacionalismo. Estamos em
guerra contra o superficial, contra as perspectivas reducionistas que
simplificam em vez de problematizar. É uma guerra aberta e declarada, pois não
acreditamos que para problemas complexos existam explicações simplistas. De
explicações simplistas está cheia a barca do inferno. Esta não rendição deve
ser ancorada numa atitude de resistência a tudo quanto pretenda impedir o
Teatro de ser Teatro, impelindo-o para o abismo do mero divertimento, do
passatempo, do entretenimento publicitário, da diversão sedutora mesmo quando
disfarçada por causas nobres. Um Teatro que não problematize, subserviente aos
esquemas e à lógica de um mercado que seduz para gerar dependência, não nos
interessa.
Sirvo-me de 2 entre 36 parágrafos que compõe
o texto intitulado “Teatro: arte no coração da polis”, coligido por Fernando
Mora Ramos no livro “Uma caixa preta é uma folha branca. Ensaios sobre teatro”.
Diz ele:
«19. O teatro é um espaço dos potenciais
hereges, isto é, de gente disposta a escapar à formatação, último reduto, uma
clareira de possibilidades, de laicidade por oposição às religiões e aos rituais
das modas, à condição do sujeito anonimamente perdido na sua “individualidade”
in-significante no meio da massa. O teatro é um território do eu e da cidade,
do eu e do mundo, teatro do eu – teatro do mundo.»
E continua, mais à frente:
«28. O teatro é inimigo do mercado na medida
em que o mercado é inimigo do comum liberto do que, sendo acção das massas, é
esclarecido, da política laica, essa forma autónoma e organizacional da
possibilidade de um destino não escravo, autodeterminado.»
Estamos, portanto, na luta por um Teatro que
pretenda contribuir para a emancipação dos indivíduos e, por consequência, esteja
na raiz de uma Sociedade livre e plural, que abrace o debate crítico sem temer
o contraditório, sem fazer disso escândalo, encarando-o como valor
acrescentado. A Sociedade, ao contrário do que tantas vezes se diz, não é uma mera
entidade abstracta, é um todo dinâmico em construção composto por indivíduos
que não nascem isolados, nascem num contexto que lhes oferece, desde logo, uma
língua para se exprimirem e com a qual poderão olear o pensamento.
Tal como as outras artes, o Teatro não pode
deixar-se engolir pelas leis do mercado que confundem sucesso com fama
passageira e hipotecam essa dimensão solidária do pensamento que é a expressão
artística. Precisamos de um Teatro que se oponha desavergonhadamente a essa
ideia de sucesso, que não se permita reduzido aos efeitos de um anúncio
publicitário exibido entre as notícias do genocídio em Gaza, precisamos dele
como de pão para a boca ou de ar para os pulmões, não no sentido de uma ruptura
total com a Sociedade mas antes no sentido de algo que, estando no seu interior,
a assimila, digere e transfigura, rompendo com modelos pré-estabelecidos e
propondo aventuras renovadoras da criação humana, gerando crises para que novos
paradigmas se instaurem.
O erro é a melhor arma que o neurónio tem
contra o algoritmo padronizador, o erro é a melhor ferramenta do conhecimento, insistamos
no erro: «Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better.»
Henrique Manuel Bento Fialho
Évora, 8 de Novembro de 2024