Tanto quanto pude apurar, as “vénus anatómicas” foram criadas por um tal
Clemente Susini, algures no final do século XVIII, com o intuito específico de
servirem para estudos de anatomia. São bonecas de cera feitas em tamanho
natural, adornadas com colares de pérolas, cabelo humano verdadeiro, o mais
fiéis possível à realidade. Mulheres com as entranhas à mostra que inspiraram
várias teorias necrófilas, reforçando a ideia de que eros e thanatos sempre
andaram de mão dada. Podemos também compará-las a múltiplas representações da
vanitas, caveiras com o intuito de nos avivarem a dimensão finita da
existência, o lado passageiro da vida materializado na carne desaparecida de corpos
que se degradam e transformam.
A pulsão de morte está intimamente ligada à percepção dos ciclos da
vida, a essa ideia fundadora da religiosidade que olha para um corpo como algo
que se metamorfoseia com a morte gerando outra forma de vida. Enterrar um corpo
é semeá-lo, é esperar que do nada brote o tudo que ao nada será devolvido. O todo
está no nada, o nada está no todo, diziam os hermetistas do deserto. Este é,
desde sempre, o ritmo dinâmico das coisas arrumadas pelos homens em sucessivas
camadas que problematizam e tornam complexa aquela que é, porventura, a mais
simples das realidades: estar vivo é estar à morte.
Filipe Homem Fonseca (1974), autor de romances, de contos, de poemas,
está ciente desta complexidade simples no seu mais recente “Vénus Anatómica”,
livro com uma dimensão lúdica patente, desde logo, na nota inicial que dá conta
de múltiplas possibilidades de leitura oferecidas por este volume. Os textos
foram organizados em cinco partes, remetendo cada uma delas para uma personagem
central: um homem em fuga, um caçador pela metade, um pai em estado de pós-hibernação,
uma mulher inteira — a filha a quem o pai oferece uma vénus anatómica — e um
cão morto. Ao leitor é sugerido que organize as cinco partes como bem entender,
podendo começar da primeira para a quinta ou pela última até à primeira, do
meio para o princípio saltando posteriormente para o fim e assim
sucessivamente, numa multiplicidade de opções que não se esgota aqui. Outra seria
a de ler cada um dos curtos textos em que se subdividem os capítulos respeitando
a numeração para que enviam o leitor e que vai do dia 1 ao dia 19523.
Entrar neste livro é, portanto, entrar num labirinto do qual não se
sairá incólume, já que a predisposição lúdica do Autor não se fica pela
estrutura, ela contamina a linguagem colocando em xeque aquilo a que poderíamos
chamar normalidade narrativa (assim acreditássemos nessas coisas). Na linha dos
vários autores que cita em epígrafes (Almada Negreiros, Clarice Lispector,
Mário Cesariny, Joyce Mansour, Jorge de Sena), Filipe Homem Fonseca prefere a
subversão dos processos à versão dos modelos, opta pelas inversões e pelos
reversos, elabora o que poderia ser uma sessão anatómica da arte de narrar histórias,
aqui composta também por camadas que nos oferecem múltiplos relatos alegóricos,
desbravando corredores metafóricos na imaginação do leitor. Neste sentido, é um
livro altamente desafiante que está constantemente a sugerir-nos que dêmos mais
um passo no interior do pântano labiríntico em que nos fomos meter ao abrir
estas páginas.
Descaradamente antinaturalista, imensos degraus acima do realismo, mas
não se esgotando também nas chaves mestras do surrealismo e seus sucedâneos
mais ou menos fantasiosos, sem resvalar para o barroquismo fastidioso das frases
cerzidas a agulha, esta prosa de “Vénus Anatómica” revela uma dimensão poética
que é do domínio da imaginação mais livre. Começa no efeito produzido por
palavras grafadas “de pernas para o ar” e desenvolve-se numa linguagem ousada que
volta tudo do avesso, mostrando-nos o que há de belo no horrível e o que pode
haver de horrível na beleza, revelando a face bondosa da maldade e o rosto
maldoso da bondade, baralhando hierarquias para as recusar, fazendo da caneta
um bisturi que pega na linguagem das personagens como se estivesse a dissecar
um cadáver.
A mulher desta(s) história(s) lê Joyce Mansour, é jovem, cabelo cor do
fogo, usa-o apanhado, chamas contidas. O sol não lhe toca, é pálida da testa ao
pescoço, dos pulsos até à ponta dos dedos, dos tornozelos aos pés. Morde-se a
si própria. A mulher tem o cheiro da esteva, das palavras de ordem e da
intangibilidade das ideias. O homem é viajado. O homem, rosto, tronco e membros,
é bronze, tem a cor dos dias ardentes. O homem tem o cheiro da terra que nunca
acaba. Estas personagens, ou impersonagens, não falam de um modo natural, têm
poesia na ponta da língua, têm a boca cheia de poesia. Vivem numa dimensão que
não é a nossa, felizmente, para nos mostrarem numa espécie de efeito espelho a dimensão
em que nós vivemos: «Somos uma família de peças quebradas. / Cheguei de asas,
parto sem raízes.» Dia 19523 (ainda).