quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

50 X 21

 


“Mingus Ah Um”, Charles Mingus.
 
Charles Mingus, que dizem ter tido péssimo feitio, foi, antes de mais, hospedeiro de uma extraordinária convivialidade genética. As histórias sobre as suas origens multiplicam-se. Imigrantes alemães misturam-se com chineses, africanos, ameríndios, suecos… Desta impressionante confluência terá surgido um genial contrabaixista, depois de experiências adolescentes com trombone e de alguns anos de dedicação ao violoncelo. Trabalhou com muita gente. Fundou, com o baterista Max Roach, uma editora musical. Arreliava-se com músicos que era capaz de despedir em pleno concerto. Não gostava da palavra jazz. Ainda nos anos de 1940, na Los Angeles agora devastada pelas chamas, surgiu a ideia de um workshop que esteve na origem do Composer’s Workshop. No contexto dessa experiência foram germinando obras geniais tais como “Pithecantropus Erectus” (1956) e “Mingus Ah Um” (1959), este último provavelmente o álbum de jazz mais importante da minha vida. Foi depois de o ouvir que comecei a interessar-me verdadeiramente por jazz, indo a concertos, comprando discos, fazendo colecções, lendo livros. Ali estão o gospel, o blues, o puro divertimento de “Jelly Roll”. Todas as composições são de Mingus, acompanhado por uma pequena orquestra onde brilhavam o pianista Horace L. Parlan, Jr. e os saxofonistas Booker T. Ervin e Shafi Hadi. Em “De Má Condição” prestei-lhe singela homenagem no poema “Self-Portrait in Three Colors”. Deixo a terceira estrofe:  «Talvez devesse munir-me / de termómetro e cronómetro / contra o esturro universal. / Assim desprovido, levarei a vida a olho, / de improviso, como nos melhores / momentos da trilha seleccionada.»

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

TRASLADAR

 
Toda aquela gente enlatada em fatos de alta-costura a ver passar os restos poeirentos do escritor, o que fazem, o que realmente fazem, pela cultura neste país? O que fazem pelos escritores que não lêem e ignoram? O próprio Eça, terão lido? Essas casas em ruínas por aí deixadas ao abandono pesam-lhes nos ombros? Seria só ridículo, não inspirasse um profundo nojo. Um dia também serão pó e não deixarão rastro senão pelo que podiam ter feito e não fizeram. Têm todos rosto de palhaço rico num triste número de circo.

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

UM POEMA DE MIGUEL SERRAS PEREIRA

 


A FOZ ATÉ AO FUNDO

Deixo acesa à tua espera a salamandra
e saio a meio da noite que te busca
para beber a foz até ao fundo
de bruços sobre a boca da nascente

E à tua espera ainda acesa a salamandra

Miguel Serras Pereira, in A Foz Até Ao Fundo, Editora Exclamação, Agosto de 2023, p. 52.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

DOMESTICADORA DE GIRASSÓIS

 


Os 14 contos de Domesticadora de Girassóis, mais extensos do que é habitual neste autor, exploram universos fantasmagóricos com personagens que tentam equilibrar-se entre o real e o imaginário. O que há de anómalo e de paradoxal nas situações recriadas encontra na multiplicidade formal, que vai da ficção narrativa ao poético, da crónica ao drama, do relato autobiográfico à prosa ensaística e ao diário, vias de expressão para seres cuja existência está em permanente conflito com um mundo onde a separação entre caos e ordem perdeu qualquer sentido.

236 páginas
Maio de 2024
 

Venda directa – pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
 
Também disponível 

na Snob: https://www.livrariasnob.pt/product/domesticadora-de-girassois ;





É PELO EXEMPLO QUE LÁ VAMOS

 
Ricardo Esteves Ribeiro e Marta Vidal, dois jornalistas com gestos públicos recentes que nos fazem ter esperança. O cumprimento da segunda a Marcelo é um tratado que apenas sublinha as palavras de ambos os jornalistas ao receberem prémios pela sua actividade. Parabéns e continuação do bom trabalho.

domingo, 5 de janeiro de 2025

UM POEMA DE M. PARISSY

 


O recorte da cabeceira de ferro condiz com o 
percurso do homem que vê no entrelaçado uma
espécie de beleza. Mas também um campo de
batalha, uma zona de perseguição em que a
mulher percorre um desígnio quase imperceptível.

No rosto dela, há um olhar de ave marinha que
sobrevoa o alto mar com o sentido na costa.

Nas primeiras pedras, prefere rodear e, só com a
certeza de que é um poiso perfumado, aterra.

O ferro que suporta a cama branca será, então,
uma muralha.

m. parissy, in Impossível Dador de Sangue, Café dos Poetas # 1, Cidade Nua, 2024, p. 32.


sábado, 4 de janeiro de 2025

50 X 20

 


“4-Track Demos”: P. J. Harvey
 
P. J. Harvey foi uma daquelas descobertas inesperadas a meio de uma noite de copos em casa de um amigo. À época, descobria-se música na MTV. Pela matina, corri à Bimotor a ver se tinham “Dry” (1992), o único álbum lançado até então pela “cantora, compositora, produtora musical e poetisa britânica” (vem na Wiki e eu não desminto). Ouvi falar dela como herdeira de Patti Smith. Há sempre esta necessidade de vislumbrar linhagens quando se fala de música. Enfim, a referência não era desmerecedora de atenção. A verdade é que quando ouvi “Sheela-Na-Gig” (alusão às figuras com grandes vulvas que aparecem em edifícios medievais concentrados sobretudo na Irlanda) achei estar na presença de algo completamente novo para mim, e não me enganei. Depois de uma primeira fase em que a afirmação do feminino no universo rock parecia ser matricial, houve mudanças substanciais em “Let England Shake” (2011) e “The Hope Six Demolition Project” (2016). Liricamente, temas de índole social meteram-se pelo caminho apelando, curiosamente, a arranjos musicalmente mais elaborados, já não tão restritos às descargas vigorosas de uma guitarra acompanhada por baixo e bateria. A colaboração com Nick Cave terá produzido efeitos, aprofundada posteriormente com Mick Harvey (ex-Bad Seeds) e John Parish, este último companheiro também em álbuns a dois tais como “Dance Hall at Louse Point” (1996) e “A Woman a Man Walked By” (2009). Mas o meu disco preferido é outro, chama-se “4-Track Demos” (1993). Trata-se de um conjunto de gravações feitas num registo absolutamente rudimentar, com um simples gravador de quatro pistas. O talento de Polly Jean Harvey para a escrita de canções fica aí completamente assinalado em temas que na sua versão mais primitiva adquirem uma força extraordinária.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

FEALDADE RICA

 
A verdade é que não queria ser uma dessas pessoas ricas que levam para casa 15900 € ao mês. É raro encontrar uma dessas pessoas que seja bonita, sensual, charmosa. É tudo gente feia. Terão também visto o vídeo de Musk com Trump na passagem de ano. Que coisa horrível. Parecem todos enclausurados naqueles fatos por certo caríssimos, tudo muito apertado, com calos nos pés. Não é que haja beleza na pobreza, a miséria também é feia. Mas esta fealdade é de outro tipo, é de gente sem gosto, repugnante, de gente que dança pessimamente e se incomoda com nódoas na farpela. É a fealdade da cagança. Isto tudo para dizer que o Rosalino é feioso. E o Montenegro também.

VÍTIMAS DE GUERRA

 
As notícias não enganam, somos um país de kamikazes rodoviários. A 16 de Dezembro lia-se por aí: "Portugal líder europeu da insegurança rodoviária. Quase 135 mil acidentes e 453 mortos este ano". Ainda não tinham sido contabilizados os 25 mortos durante as operações de Natal e Ano Novo. Há ainda mais de 2500 feridos com gravidade. A par da violência doméstica, aqui temos um indicador claríssimo da nossa falta de civismo. Num país que tem como referência dos desportos motorizados o choné do Pedro Lamy, não faltam ases do volante a conduzir sem carta, sob o efeito de álcool, agarrados ao telemóvel, em excesso de velocidade. O que se faz para mudar este cenário desastroso? Campanhas de prevenção. Fosse eu a mandar, passavam todos a conduzir papa-reformas.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

e. e. dickinson

 


(toninha)

aquilo não era uma vida
era uma biografia

vivia dentro da sua biografia futura
e renunciara à vida por não suportar
o ruído do mundo

escrevia listas de roupa como quem borda
patas de percevejos nas costas
dos habitantes da aldeia

juntou todas as cores no espectro de trazer por casa
trocava o ele por ela como se estivesse
ameaçada de febres permanentes

no centro da casa crescia a obstinada árvore
puritana
retorcida nas escadas
com os seus nós racionalistas
agarrados ao corrimão
chegando ao sótão a tempo de pôr-do-sol

o pai riu-se uma só vez em toda a vida
so they say
e mandaram tocar o sino paroquial

afinal a vida é relatável
é preciso perder o medo de contar
o que se passa entre portas
onde se passa tudo o que deveras importa
e nalguns casos é só o que existe
pois a maioria dos humanos
teve só vida e pouca obra
mas ter vida é uma imensidão de possibilidades
narradas ou não

é assim com as pessoas comuns
aquelas que constroem a história
que estão ali de sol a sol a dispor as pedras
do presente
umas sobre as outras

que isto de ser humano
e comum 
e mortal
parece um pecado
de lesa
intelecto

valha-nos que
os maiores pedantes
da história passaram a nota
de rodapé
comovida ou não

mais sorte tiveram os tiranos
com linhas de investigação
inteirinhas
e dedicadas
porque nunca acaba o nosso
pasmo
perante a barbárie
que continuaremos a
dissecar e amortalhar
sem sim

o nosso problema é sempre o presente
esse tempo inexistente
indefinível
por definição
o passado é o que quisermos fazer dele
e o futuro
verdadeiramente a quem importa o futuro?
aos que lá chegarem
e quem lá chegar que se amanhe
sorte ou azar de quem o apanhe
se formos nós
logo se vê
pois nada podemos saber desse tempo
que nessa altura será
o inagarrável presente

bem diz o outro
live and let die
e toca de desenhar mais umas
ilustrações para a playboy

por isso é que ela se fechou em casa
a fazer compotas
e a encher as gavetas de papéis
riscados
numa linha que inventou

nas redondezas
não havia playboy nem playgirl
só compota e gardénias
o que prova ser possível
uma língua privada
e viver dentro de uma biografia
com uma base alimentar de
compotas e gardénias

desde que se tenha
atenção ao sal


Rosa Oliveira (Viseu, 1958), in Cinza (Tinta-daChina, Junho de 2013). «Rosa Oliveira tem sabido destacar-se por um pessoalíssimo modo poético, dominado por um trabalho de escrita que articula, muitas vezes de forma paródica, tradição literária e modernidade, e em cuja constituição entram, como tónicas, o cuidado construtivo, a confessionalidade esquiva, arredia, a truculência lúdica, um tom céptico, desencantado, friamente irónico. Quem desconheça os seus começos literários facilmente os confundirá com o arranque da colecção de poesia da Tinta-da-China, inaugurada com o seu livro de estreia, “cinza” (2013), a que se seguiu “tardio” (2017) e o mais recente “errático”, que vem fechar um ciclo. A metáfora & companhia continuam a ser as suas melhores aliadas. Já a 'Puizia', 'o sujeito poético' e 'o eu lírico', essas criaturas de extensíssima vida, causam-lhe “urticária mental em todos os poros”, certamente os mesmos por onde saem a teoria literária que, em generosas e irónicas doses, os seus livros de poemas convocam» (Teresa Carvalho, in Jornal I, 31/05/2021). Rosa Oliveira é ainda autora de “Desvio-me da bala que chega todos os dias” (não (edições), 2021).

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

OS INVISÍVEIS

 


Poeta, ensaísta, prosador, Nanni Balestrini (1935-2019) surge amiudadamente associado ao experimentalismo italiano, autor de uma obra vanguardista, quando ainda fazia sentido falar em vanguardas, militante ligado ao grupo Potere Operario. No prefácio a “Os Invisíveis” (Barco Bêbado, Setembro de 2024), originalmente publicado em 1987, o filósofo marxista Toni Negri fala de um “romance didáctico” sem deixar de levantar a questão que se impõe: «mas quem aprende com quem?» É um romance em que o autor parece dar testemunho da sua própria aventura militante, percorrida em 48 capítulos, divididos e vividos por quatro partes, sem qualquer pontuação. A louvável tradução de Pedro Morais mostra-nos, no entanto, como essa ausência de pontuação não dificulta em nada a leitura, antes lhe confere uma aceleração favorável aos eventos narrados, a agitação, o desassossego, a inquietação mobilizadores de jovens que a seguir ao Maio de 68 e pelos anos de 1970 adentro experienciavam uma enérgica vontade de mudar o mundo rompendo com os paradigmas instalados. Estamos a falar de experiências de ocupação, sabotagem, luta operária à revelia dos sindicatos oficiais, estamos a falar de guerrilha urbana: «generalizar a ofensiva significa radicalizar a insubordinação a qualquer hierarquia excitar a nossa criatividade destrutiva contra a sociedade do espectáculo sabotar as máquinas e as mercadorias que sabotam a nossa vida promover greves gerais selvagens de tempo indeterminado reunirmo-nos sempre em assembleia em todas as fábricas da separação eleger delegados sempre revogáveis pela base conectar constantemente todos os lugares de luta não descurar todos os meios técnicos úteis à comunicação libertada dar valor de uso directo a tudo o que tem valor de troca ocupar permanentemente as fábricas e os edifícios públicos organizar a autodefesa dos territórios conquistados e música para a frente» (p. 150). No turbilhão caótico de acontecimentos relatados, Balestrini dá conta das acções levadas a cabo por grupos informais, tentativas de organização colectiva, da prisão e dos motins no interior da prisão, das relações conflituosas com as instituições tradicionais, fossem elas a família, o poder judicial, as polícias, os partidos políticos, do julgamento, das lógicas de sobrevivência interna, dos códigos morais de grupo e das consequências de toda esta acção. Não sei se será exacto falar de um certo desencanto, embora algumas passagens nos levem a crer que sim: «(...) já não tínhamos nada para dizer já ninguém ia à sede agora todos os dias ocorria um novo desastre um que era detido outro que enlouquecia um que desaparecia outro que se suicidava todos desapareceram não havia mais nada para dizer e assim ficou tudo ali a encher-se de pó o transmissor o leitor de cassetes a aparelhagem o amplificador o microfone e a voz de China (...)» (p. 241). Nesta como noutras deste extraordinário romance, vislumbramos, pelo menos, uma problematização dos resultados alcançados que não precisa de reflexões complexas para se manifestar, ao mesmo tempo que nos leva a pensar no poder castrador das chamadas democracias liberais que, entretanto, parecem ter vencido sociedades amorfas com as suas promessas de conforto e bem-estar. Talvez a apatia se instale também como uma espécie de ressaca dessa agitação que no final do século XX redundou numa desconfiança das virtudes inerentes a diversas formas de luta, assim como da acomodação a uma sensação de impotência motivada, porventura, por uma insatisfação causada pela escassez de resultados objectivos quanto às aspiradas mudanças e transformações sociais. O próprio título do romance, “Os Invisíveis”, remete para essa dificuldade de atrair a atenção sobre reivindicações específicas, quase sempre geradora de actos de luta radicais tais como alguns dos que vamos observando actualmente nos chamados “movimentos climáticos” ou, mais recentemente, no assassinato de Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare, por Luigi Mangione. Acto isolado? Veremos. É um romance, por isso, que lido à luz do nosso tempo recoloca questões determinantes acerca dessa tensão essencial entre as forças conservadoras e as diversas forças que, mais ou menos progressivas, têm as suas raízes num sentimento de injustiça e numa consciência profunda das assimetrias localizadas e globalizadas que espelham de um modo objectivo, não sujeito a percepções individuais, o desconcerto do mundo. O romance de Nanni Balestrini é um testemunho pungente e vital de um contexto de guerrilha mais ou menos informal, mas também do modo como essa guerrilha vai perdendo gás por fugas que o terrorismo de estado, a repressão policial, o terrorismo oficial, se encarregam de aproveitar para fazer implodir os movimentos de contrapoder. Capa e pinturas no miolo de Vera Matias.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

50 X 19

 


“Harvest”: Neil Young
 
Quem também já não vai para novo é Neil Young, para o ano completará 80. Queira Deus que lá chegue, se estiver bem de saúde. A par de Bob Dylan, foi a minha principal referência quando aprendi a dar uns toques na guitarra. Curiosamente, há no “Weld” (1991), disco ao vivo com os Crazy Horse, uma versão extraordinária de “Blowin’ in The Wind”. Talvez tenha sido a segunda canção que aprendi a tocar. É possível. Vi o Neil Young em Vilar de Mouros no ano de 2001, estava de chuva e ele não aqueceu nem arrefeceu. Mas valeu pela oportunidade. Ouço-o desde que me veio parar às mãos “Déjà Vu” (1970), dos Crosby, Stills, Nash & Young. Apaixonei-me pela fragilidade vocal em “Helpless”. Depois comprei o “Harvest” (1972) e nunca mais o larguei. Ainda o procurei nos trabalhos iniciáticos com os Buffalo Springfield, onde fui descobrir canções excepcionais tais como “Broken Arrow” ou “Expecting to Fly”. Não admira que a malta do grunge o tenha recuperado na década de 1990, a guitarra distorcida de Neil Young tem uma dimensão política que é ao mesmo tempo catártica. Aqueles solos longuíssimos e algo repetitivos podem não estar na moda, mas ainda conseguem abanar capacetes. Das canções em toada acústica de estilo folk ao rock electrificado desabrido, passando pela country mais conservadora de “Old Ways” (1985), há muito por onde escolher. Um tipo não tem de ser sempre genial, basta-lhe alcançar alguns momentos de génio. E Neil Young tem vários. Ouçam “Like a Hurricane”, “Old Man”, “Oh, Lonesome Me”, “Rockin’ In a Free World”, etc, etc, etc… e digam se não é verdade. Eu vou-me com esta: «To give a love, you gotta live a love / To live a love, you gotta be part of».

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

ADÍLIA LOPES (1960 - 2024)

 


Aconteceu numa outra vida, vai fazer vinte anos, e foi assim porque tinha de ser. Mero acaso de um destino que nos leva por aí a fazer coisas que nem sabemos como nem onde nem porquê. O Nuno desafiou-me para leituras na Galeria Zé dos Bois. O Pedro não queria ou não podia, lá fui com a guitarra a tiracolo e o velho Peavey, pesado que nem chumbo, ao ombro. Juntou-se a nós a Adília, que acompanhei à guitarra depois de um chouriço assado no Clandestino do Martins. Também já cá não está. Recordo uma mulher com os olhos colados ao fogo, é aquele olhar que perdurará na minha memória. Nunca mais estivemos juntos, nunca mais falámos. Gosto de algumas coisas que escreveu, não tenho paciência para outras. Detestei vê-la no Herman aquando da edição da “Obra” pela Mariposa Azual, não merecia o trato imbecil do humorista. Entre o que mais gosto dela, há aquela arte poética rigorosa que diz tudo quanto é preciso dizer acerca da sua obra:
 
Os poemas que escrevo
são moinhos
que andam ao contrário
as águas que moem
os moinhos
que andam ao contrário
são as águas passadas
 
Gostava da Adília Lopes, estou convencido de que é caso único na poesia portuguesa. Às vezes leio por aí "poemada" para as feridas e digo a mim mesmo: lembra-me Adília. Isto quer dizer qualquer coisa. Curiosamente, ainda hoje me aconteceu isso ao ler um brasileiro do meu ano chamado André Dahmer. Mas isso é outra história.

IMPRESSÃO SUA

 


em 187
a irmã do pablo me bolinou tanto
que do meu pau saiu um líquido grosso e branco
que não era urina
ficamos apavorados
porque julgamos que eu havia ficado doente
de tanto que a irmã do pablo
mexeu no meu pau
não contei aos meus pais
que eu estava gravemente doente

preferi me aconselhar com o tio do pablo
um cara que bebia e fumava o tempo todo
além de cheirar um pó branco
assim que o sol se escondia

*

às gargalhadas
o tio do pablo jurou guardar meu segredo
disse que eu não estava doente
e o que aconteceu
aconteceria muitas outras vezes

se eu tivesse sorte

*

esclarecida a questão
fiz sair do meu corpo
o líquido grosso e branco
que não era urina
em média três vezes por dia
dez anos seguidos

olhando agora
parece que tive bastante sorte

André Dahmer, in "Impressão Sua", Companhia das Letras, Junho de 2021, pp. 27-29.

domingo, 29 de dezembro de 2024

50 X 18

 



"Por Este Rio Acima", Fausto

2024 foi o ano em que perdemos Fausto. Outras razões não houvesse, a trilogia iniciada com “Por Este Rio Acima” (1982), continuada com as “Crónicas da Terra Ardente” (1994) e finalizada com “Em Busca das Montanhas Azuis” (2011) seria mais do que suficiente para o lembrarmos pela eternidade dentro. Anda estranho o tempo, tudo parece para ontem, fugaz, efémero, tudo passa num instante e a gente nem dá por isso. As horas não têm a mesma lentidão, a pressa de chegar não sei onde acelerou-nos os dias, andamos todos numa correria danada para não sei que metas e objectivos e fins. Vejo as pessoas cansadas, vejo-as com olheiras de saturação a desenharem grandes sombras, eu próprio ando para aqui a pensar que ainda amanhã foi já ontem. Dantes não era assim, havia um vagar nas coisas e os mortos perduravam vivos mais do que esta sensação de agora ter sido há um século. Há dias, olhando para os que me morreram, parecia que tinha vivido mil anos dentro destes 50 parcos que foram, são, eram. Não sei se também deram por isso, mas este ano nem chegou a ser e... foi-se. É como se andássemos para aqui a singrar num útero em que não ata nem desata, uma pessoa nasce morta e vai-se desta sem sequer haver sido parido. Há em tudo uma transitoriedade cada vez mais acentuada. Regressar a Fausto ajuda-nos a retomar a “Peregrinação”, transporta-nos pela “História Trágico-Marítima”, aviva-nos a consciência de que já lá vão uns séculos valentes de história. Não sei se viemos ao mundo para outra razão, mas talvez esta de adiar os dias, protelar as horas, conquistar a lentidão demorada de um pensamento em espera, talvez esta seja uma boa razão. Sento-me, portanto, a degustar a trilogia: «Vou no espantoso trono das águas / Vou no tremendo assopro dos ventos / Vou por cima dos meus pensamentos».

sábado, 28 de dezembro de 2024

UM POEMA DE ROSA OLIVEIRA

 


ODEIO LIVRARIAS MODERNAS

lemos o livro fechado da infância
os automóveis giram sob a batuta infinita
de nuvens em fim-se-semana
o vento anuncia algo
mais poderoso que o vento

muitas pessoas repetem
nunca pensei viver estes tempos
tremendo em segredo por tempos piores
muitas pessoas vêem só o presente
muitas pessoas julgam estar
à beira do abismo
se assim se crêem é porque estão
de nada serve a esperança
hipoteca letal que nunca virá

muitas pessoas descrêem 
que estão vivas
e pensam
estou só a cumprir
uma pena sem fim à vista

não vemos as grades
tão concentrados em não ver
olhamos as pontas dos pés
pisando com cuidado
para não estilhaçar
a inevitável bomba interior

muitas pessoas tentam ler a vida
tão desfocada na sua anemia
que há gente a dizer
que se pode gostar de um poeta
pelas razões erradas

opiniões estimáveis morrem entre dentes
estamos em guerra
sem grades para explodir

muitas
pessoas
lêem descrêem

outras prosseguem no mundo
inequação de segundo grau
a piscar o olho a quem
lhes tome o pulso

mas parece que
nem a mais potente calculadora
resolve o mundo
em verdade
em mentira
Vos digo

Rosa Oliveira, in Tardio, Edições Tinta-da-China, 1.ª edição Março de 2017, 1.ª reimpressão Maio de 2023, pp. 66-67.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

O DESENCANTADOR

 


 

(...)
será que todos nós
temos a pagar algum preço
pelo silêncio
pelo silêncio que nos permite
existir
porque se a vida falasse
e dissesse ela
o que nós dizemos por ela
seria diferente
(...)

Alberto Pimenta, in "O desencantador", 7 NÓS, Março de 2011, p. 61.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

50 X 17

 


“Strange Days”, The Doors.

O concerto dos The Doors no Festival Marés Vivas de 2008 está entre as piores experiências da minha vida. Lá estavam Robby Krieger na guitarra e um inenarrável Ray Manzarek nas teclas, mas era como se não estivessem. Há bandas de covers que fariam melhor figura. Aquilo foi um cerimonial ao santo padroeiro Jim Morrison, sem qualquer interesse e, pior, completamente desprovido de bom senso. Bastar-lhes-ia tocar o reportório da banda e teriam o público conquistado. Em vez disso, adoptaram um espantalho que imitava o malogrado vocalista e poeta do quarteto enquanto Manzarek evocava o grande Deus com salvas absolutamente ridículas. Um momento lamentável que não beliscou o culto pela banda e o que representa numa vida que não teria sido a mesma sem “The End” ou “When the Music’s Over” como banda sonora. Não sei qual é o meu álbum prefiro dos The Doors, gosto de todos quase por igual. Até do malquerido “The Soft Parade” (1969), com aquela sumptuosidade nos arranjos oferecida por uma secção de sopros e de cordas. Li por aí que um incêndio arruinou o famigerado Morrison Hotel, capa do álbum homónimo de 1970. É assim a vida, quase tudo se desfaz em cinzas. Felizmente inventaram os gravadores, máquinas de viajar no tempo que nos ajudam a iludir o desespero de assistir impotentes à ruína do mundo.