sábado, 26 de setembro de 2009

VIVIENNE & EMILY


Há 10 anos ainda valia a pena comprar jornais. Um deles era O Independente, do qual coleccionei, entre outras pérolas, uma revista de traduções chamada Best Of. O texto que se segue é um fragmento de um artigo de Barbara Everett, originalmente publicado no The Times Literary Suppplement, intitulado Que ansiedade maior continua a provocar o poema do século XX? A tradução é de Vasco Corisco. Os sublinhados são meus.

Tendo sido uma paixão de juventude de Eliot ─ a princípio através de cartas (em 1927 e 1930) ─, Emily Hale, de Boston, voltou a surgir completamente na vida de um homem que em meados dos anos trinta estava definitivamente separado da mulher neurótica e extremamente difícil com quem tinha estado casado muito tempo. Durante 1934-5, Emily chegou da América com as suas figuras paternais, o tio e a tia, o Reverendo John e a Sra. Perkins, para ficar em Chipping Campden, em Gloucestershire, onde Eliot os visitou.
Como homem solitário e complexo, capaz de um romantismo intenso, Eliot escreveu quase mil cartas a Emily. Mais tarde, veio a admitir ter estado apaixonado por ela. Contra isto tem de ser dito que, sempre que Eliot quis casar com uma mulher, fê-lo: a primeira vez com uma infelicidade amarga, se bem que criativa, a segunda vez com uma enorme felicidade (se bem que menos criativa). Não sabemos o que realmente aconteceu em "Burnt Norton", nem mesmo a altura em que o poeta terá visitado o local com Emily. A Sra. Perkins era jardineira e fotógrafa de jardins. Quando apresentou os seus diapositivos à Sociedade Real de Horticultura, em 1948, Eliot escreveu-lhe, recordando e relembrando que, de todos esses jardins, Hidcote Manor (presumivelmente visitado na sua companhia) "foi do que mais gostei".
An Imperfect Life cita outra frase bastante útil, sem parecer saber exactamente o que fazer com ela, que também nos deixa a pensar, na qual Eliot observa "sinistramente" (acerca dos Perkins) "que bem que Campden assenta aos dois, com a sua atmosfera do velho mundo, empestada de morte". (…)
"Burnt Norton" é um poema. Não é uma autobiografia, nem uma biografia, nem uma topografia ou história. Se tivermos de o ler e, por assim dizer, precisarmos, façamo-lo pelo seu valor humano. Esse valor não consiste num encontro teórico com uma mulher sombria. Respeitamos as biografias, que tentam trazer nova luz a uma figura pública, explorando histórias privadas; para além disso, mulheres como Emily Hale e Mary Trevelyan (que teve um papel comparável, embora mais pequeno, na existência diária de Eliot) suscitam simpatia, bem como interesse. Mas não há dúvida que Eliot trouxe às suas vidas uma excitação e concentração emocional que, supostamente, nunca teria existido para elas sob qualquer outra forma. Ele alegrou vidas que de outro modo seriam vazias, e a satisfação pode ter-se misturado com a amargura triste que atingiu as duas quando casou, dado que tornara claro a ambas que casar com elas estaria fora de questão. Deve ser claro para observadores objectivos que existiam limites à amizade leal do poeta por elas. Na minha opinião, existem limites semelhantes ao protagonismo da profundamente nostálgica afeição romântica que o poeta sentiu por Emily na sua obra. "Burnt Norton" pode ser melhor lido se afastarmos dele a legenda de Emily.
Num pequeno livro sobre Eliot, o eminente crítico Northrop Frye queixou-se uma vez com vivacidade:

Burnt Norton é, segundo nos dizem, o nome de uma casa de campo em Gloucester [sic] que ardeu no século XVIII. A sua relação com o poema, em palavras eufemísticas, não salta à vista, para além de uma sugestão muito vaga da casa de um “milionário arruinado”.

O leitor só pode apreciar esta frontalidade, nem sempre frequente entre os estudiosos de Eliot. Não estou certa se algum outro crítico se questionou precisamente sobre o que Burnt Norton tem a ver com "Burnt Norton". E, de facto, o leitor pode ver a utilidade da noção de um ditoso encontro com Emily (que pode nunca ter visitado o jardim).
Mas se Emily for afastada do sentido humano do poema, que nos resta?
(…)
Talvez Eliot tenha reconhecido, no nome de Burnt Norton, um paradoxo ao mesmo tempo irónico, secular e espiritual. Era um homem de consciência pública devotadamente interessado na tradição. Mas estava plenamente consciente, na década de trinta, antes e depois, que a tradição depende de uma consciência individual empenhada. A tradição inglesa, tal como as suas casas, é feita de ruinosas continuidades particulares. O amor, esse construtor de casas, é com demasiada frequência, para o ser humano, fogo e destruição (
The Fire Sermon: "Arder, arder, arder, arder".). A alma é uma Burnt Norton que não consegue escapar ao fogo, mas consegue aprender a viver perpetuada pela sua chama.


Na imagem: Vivienne Eliot, a neurótica.

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