sexta-feira, 30 de novembro de 2012

SHANE (1953)




A paixão pelo western vem de muito cedo, quando era miúdo e me escondia atrás dos reposteiros à espera que os meus pais se fossem deitar. Depois ficava a ver os filmes que passavam na televisão, quase sempre westerns ou filmes de piratas com o Errol Flynn. Apesar de nunca ter gostado do Carnaval, a minha mãe insistia em mascarar-me. Os únicos disfarces que eu admitia sem reclamações eram os de índio ou de cowboy, sendo que para cowboy só podia aceitar um modelo: a camisola com tranças usada por Alan Ladd em Shane (1953). Há quem o considere o melhor western de todos os tempos, o que está longe de ser verdade. É um western melodramático, marcado pela presença constante de um miúdo que há-de ter contribuído fortemente para a empatia gerada pelo filme.

Talvez tivesse a mesma idade que Brandon de Wilde (1942-1972), tragicamente desaparecido num acidente de viação, quando vi Shane pela primeira vez. George Stevens (1904-1975), realizador oscarizado, rodou-o na ressaca da Segunda Grande Guerra, onde foi operador de câmara do exército norte-americano. O filme tem uma série de elementos que apontam para essa experiência, nomeadamente as dúvidas levantadas sobre o uso das armas. Não é por acaso que um dos grandes dilemas representados neste filme é o da possibilidade de uma vida pacata, regida pela justiça e longe dos conflitos armados. Alan Ladd (Shane) não tem a mística de outros pistoleiros, é demasiado límpido e melífluo. Sobre ele pesa, no entanto, um passado que nos é apenas revelado implicitamente e do qual se pretende libertar.

Ao passar casualmente pela pequena quinta de uma família tradicional, resolve largar o coldre e juntar-se a um grupo de agricultores que ali tentam fazer pela vida. Rapidamente se apercebe de que esse grupo de agricultores vive ameaçado por um criador de gado que lhes pretende tomar as terras, a bem ou a mal. Este é um dos aspectos verdadeiramente curiosos do filme, oferecer-nos a extensão da paisagem onde pequenos agricultores tentavam sobreviver arduamente à ganância e ambição de velhos colonos sem escrúpulos. Com a justiça distante (a autoridade mais próxima estava a 160Km), a lei fazia-se valer pela força. Ainda assim, estamos num momento de viragem e contenção. O próprio fazendeiro hesita em recorrer às armas, tenta negociar com os agricultores, ameaça-os sempre no cuidado de não poder vir a ser incriminado pela justiça.

Há ali um jogo incipiente de manipulação da moral, em função de interesses pessoais que chocam com a necessidade de impor justiça numa nação erigida a ferro e fogo. Shane é a personificação dessa viragem. Ele sabe que o tempo dos pistoleiros acabou, ao mesmo tempo que se vê na contingência de o fazer reviver. Pode um homem ser quem não é? -  pergunta-se a todo o momento.  A resposta surge no fim, depois do fazendeiro contratar um pistoleiro cuja função seria provocar os agricultores até que estes não resistissem ao impulso de sacar das armas e acabassem desfeitos pela rapidez e inclemência do misterioso Jack Wilson (Jack Palance himself). O que aqui temos é, pois, o velho conflito da natureza humana anedoticamente simplificado com a fábula do escorpião que ferra a rã enquanto esta o ajuda a atravessar o rio. Desculpe, não o pude evitar, é a minha natureza.

Tudo isto é filmado com um cuidado nos pormenores que facilmente nos faz crer na angústia daquelas personagens e no que separa os frágeis agricultores, nas suas pequenas quintas isoladas no meio de extensos vales, e a vida na cidade, com os homens do fazendeiro ambicioso aí concentrados. O realismo dos cenários, dos trajes, das falas, da postura das personagens, só perde para uma excessiva simplificação da relação mantida entre Shane e a família de agricultores que o acolhe. Marian e Joe são um casal afectuoso, dedicam toda a atenção ao pequeno Joey, mas estão longe de parecer verosímeis. Não seria fácil tornar explícito em 1953 o que George Stevens resolveu deixar na sombra, o fascínio de Shane exercido sobre Marian. No filme, esse fascínio fica mais óbvio no pequeno Joey. Mas é Marian, a mulher do mais inconformado dos pequenos agricultores, quem ali se sente perder nas malhas de uma paixão inexplicável. Mais tarde, Clint Eastwood mostrou-nos essa paixão de um modo autêntico. Foi em Pale Rider (1985).

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

ELOGIO DO WESTERN


Se o José Duarte pode dizer que o jazz é a melhor música do mundo, sinto-me no direito de considerar o western o melhor género cinematográfico do mundo. As mulheres à minha volta não gostam de westerns, passam a vida a limpar o pó às casas e ficam preconceituosas quando vêem no ecrã a poeira levantada pela passagem dos cavalos. Dantes, as ruas eram de terra batida. E esse dado é fulcral na afirmação do western como o melhor género cinematográfico do mundo. Mesmo quando a terra batida se transforma em lama, o que ali vemos é a civilização a despertar. O western coloca em conflito tudo o que é verdadeiramente importante, as culturas, os géneros, o homem e a natureza, o campo e a cidade. É o mais filosófico dos “tipos” de cinema, sem deixar de ser histórico, pragmático, romântico, humorístico, pois no bom western todas estas dimensões confluem sob o signo da Vida. Os gregos só inventaram a tragédia porque ainda não havia cowboys, mas a criação do universo segundo os textos bíblicos pode ser considerado o primeiro dos westerns alguma vez escrito. Adão e Eva, Abel e Caim, são personagens-tipo em inúmeros westerns. A vantagem do western sobre os restantes géneros é poder oferecer-nos tudo isto ao mesmo tempo que nos coloca diante de um espelho onde o bem se reflecte no mal e vice-versa, trazendo à luz do dia o nascimento de uma nação e, lá está, a destruição de uma outra. A destruição da grande nação índia da América do Norte e o nascimento dos EUA como hoje os conhecemos.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

ENTRE OS SEUS PLANOS ESTAVA PARTIR PARA O SUL

Santos, Lisboa. 2012.

Durante muitos anos, na casa de Archimboldi as suas únicas posses foram a sua mala, que continha roupa e quinhentas folhas em branco e os dois ou três livros que estivesse a ler naquele momento e a máquina de escrever que Bubis lhe oferecera. A mala carregava-a com a mão direita. A máquina carregava-a com a mão esquerda. Quando a roupa começava a ficar usada, deitava-a fora. Quando acabava de ler um livro, oferecia-o ou abandonava-o numa mesa qualquer. Durante muito tempo recusou-se a comprar um computador. Às vezes aproximava-se das lojas que vendiam computadores e perguntava aos vendedores como funcionavam. Mas sempre, no último minuto, recuava, como um camponês receoso com as suas poupanças. Até que apareceram os computadores portáteis. Então sim, comprou um e ao fim de pouco tempo já o manejava com destreza. Quando o modem foi incorporado nos computadores portáteis, Archimboldi trocou o seu computador velho por um novo e às vezes passava horas ligado à Internet, à procura de notícias estranhas, nomes que já ninguém recordava, acontecimentos esquecidos. O que fez ele com a máquina de escrever que Bubis lhe ofereceu? Aproximou-se de um desfiladeiro e atirou-a para o meio das rochas!

Fotografia: Jorge Aguiar Oliveira.
Texto: Roberto Bolaño. 

DESABAFO


Não espero amor nem glória de ninguém:
Espero terra e cinza,
Os blocos do abordar lá na doca esquecida,
E ao longe o rolo branco,
Livre e amargo do mar
Que traz com água e indiferença
O cadáver e o frasco azul do adeus marinho.
Como as gaivotas levo água e ferro no bico:
Por isso passo e fico.

Naquilo que outros vêem um vago talento e sorte,
Outros: «belas qualidades, mas purgativo, aquele magnésio...»
Levo coisas tão simples como o meu sonho e a minha morte:
O menino que eu fui, parado nos meus olhos,
O garoto que eu fui, e os sinos que rachei à pedra ainda a vibrar,
Minha mãe no que tenho de condescendente e feminino,
Meu pai na força e pressa do meu próprio coração.

Não espero amor nem glória de ninguém:
Espero a terra e a lisura
Da pá que ma estender,
Além de erva ou torrão de calcadura
E os filhos velhos, graves,
Com um bocado de pão, a minha memória e uma acha a arder
Tudo isto espero com a força e a determinação da esperança,
Com as lágrimas do fraco melodioso
Mas, cheirando a esturro, a pulso,
Sozinho e perigoso.

Terei vestido e pão no mar e nos seus fundos
E nos peixes de cor as flâmulas de guerra;
Hei-de cravar o Sol no meu destino,
Dar a Lua a roer aos que duvidaram de mim,
E transparente como as baías me verão,
Que, vendo-as mansas, me verão a mim.

Mas, se acharem as baías bravas, que se aguentem!
Quando meu tio foi para Manaus, lá me aguentei!
Ah, baías salvadas e coléricas,
Açores de ronda ao vagalhão partido!
Morrer é bom quando se deixa
Algum pecado redimido.


Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida (1953)

terça-feira, 27 de novembro de 2012

OS COMENTÁRIOS DE MARCELO

- Professor, boa noite.
- Boa noite.
- Hoje comecemos pelas leituras.
- Ora bem, vamos às leituras. La Redoute. Maxi Reduções até 60%. Fantástico. Continente. Toda a frescura aos preços mais baixos. Interessante. Sport Zone. Neste Natal ofereça desporto! Imbatível. Devo dizer-lhe que fiquei com vontade de voltar a mergulhar no Tejo. AKI. Perto de si. Grandes ideias ao melhor preço, sempre presentes. Um pouco na linha do Continente, mas com opções diversas. Telepizza. Natal é quando chega o Peru. Magnífico. Para as crianças: todos os brinquedos com 50% de desconto. Uma proposta da Popota. Portanto, uma excelente propoposta. Ah, ah, ah…
- Ih, ih, ih…
- Temos ainda o E.Leclerc, já sabe onde compra mais barato, com 50% de desconto imediato na 2ª unidade. Óptima leitura dos tempos modernos. Especial atenção aos electrodomésticos e multimédia. Hiper Centro do Móvel, tenha uma grande natal com preços reduzidos. E por fim, o que é já um clássico, presentes para todos a preços nunca vistos. No Staples.
- Muito bem. Já agora, por curiosidade, leu a E. L. James?
- O primeiro ao pequeno-almoço, o segundo ao almoço, o terceiro ao jantar. Fiquei com dores no pulso. O terceiro é igual ao segundo e o segundo é igual ao primeiro. Só não consegui descobrir a que é que o primeiro é igual, embora me tenha parecido bastante familiar às saudosas aventuras da minha juventude.
- Ih, ih, ih… Muito bem, professor, vamos avançar.
- Judite, eu já avancei. Você não me apanha, eu vou todo embalado e levo um grande avanço.
- Professor, espere por mim. Esta semana o Médio Oriente tossiu.
- E eu na semana passada disse que havia um surto de gripe no Médio Oriente. E havia um surto de gripe no Médio Oriente, o que mais uma vez demonstra que eu sou excelente a diagnosticar problemas e a fazer previsões. Já agora, prevejo para a próxima semana o agravamento da tosse convulsa no conflito de Gaza.
- E por cá, professor?
- Bem, por cá, como a Judite imagina, é o regabofe. O Presidente da República foi aos Prémios Gazeta dizer umas piadas e toda a gente o levou a sério, ninguém se riu, não teve graça alguma. Falou a sério, ao dizer que os portugueses esqueceram o mar e a agricultura, que era preciso ultrapassar esses estigmas, e toda a gente desatou à gargalhada. Achavam que o Presidente da República estava a fazer uma piada.
- E que leitura faz disso, professor?
- Minha cara aluna, a leitura que eu faço é a que sempre fiz, porque eu sou magnífico a diagnosticar e a prever.
- Que leitura é?
- Tudo boas notícias, os árabes matam-se uns aos outros, os portugueses definham na miséria, o Relvas continua no Governo (outra piada). A única má notícia é que continuamos com um Presidente da República sem sentido de humor.
- Mas o professor tem um excelente sentido de humor.
- Pois tenho, pois tenho, mas eu não sou Presidente da República. Nem quero ser, nem tenho currículo para isso, e soui tão humilde, muito mais que o Marques Mendes.
- Professor, em relação à previsão do fim do mundo avançada pelo professor Medina Carreira. O que acha que podemos esperar?
- Bom, eu acho que podemos esperar boas notícias. Boas notícias, dentro do possível. O menino Jesus não nasceu entre burros e vacas, um hotel velho no Allgarve vai ser reconstruído como contrapartida da aquisição duns velhos submarinos, a Madeira vai gastar 1,2 milhões com fogo-de-artifício no ano novo, o BES é um banco amigo, Angola está aí.
- Onde, professor?
- Aí, ali, acolá, aqui. Angola está em todo o lado, Judite, é como o menino Jesus e o Pacheco Pereira.
- Professor, o caso RTP.
- Como sabe, há tempos eu já tinha dito que o caso RTP é daquele tipo que o povo diz nem o pai morre, nem a gente come a sopa. Ora, isto será bom ou mau. Depende da sopa. Se for sopa de feijão verde, é mau. Gosto. Se for sopa da pedra, é ainda pior. Gosto muito. Se for Caldo Verde, é indiferente. Não gosto nem desgosto. Se for gaspacho, é bom. Não gosto.
- Temos perguntas muito interessantes sobre a actualidade. O nosso telespectador Medina Carreira pergunta o que o professor acha da gestão de Carlos Horta e Costa nos CTT.
- Bom, Judite, como sabe Carlos Horta e Costa rima com Miguel Horta e Costa. Correios e Submarinos. Como sabe, em Portugal há uma coisa que é a presunção da inocência. Bom. Caso se prove que houve gestão danosa nos CTT, Horta e Costa não terá responsabilidade alguma. O dos submarinos. Caso se prove que houve alguma coisa de ilegal ou menos transparente no negócio dos submarinos, Horta e Costa poderá lavar as suas mãos. O dos CTT.
- Ó professor, e a sua biografia?
- Não li.
- E não está curioso?
- O que direi? Eu não queria, mas insistiram muito. Enfim… Direi só o seguinte: não cospe perdigotos.
- Notas finais, professor.
- Parabéns a este Governo e, nomeadamente, ao Primeiro-ministro Passos Coelho. São todos de tal forma alucinados que há já quem proponha que se altere a sigla PPD/PSD para PPD/LSD. Isto é um feito.

OLHOS NOS OLHOS

- Boa noite, professor…
- Olá Judite, ‘tá boa?
- Isso é uma afirmação ou uma pergunta, professor?!
- Ó Judite, interprete como quiser. A verdade é que não há solução para isso.
- Isso o quê, professor Medina Carreira?
- Isso. Com a agravante de eu o ter previsto há, pelo menos, 800 anos.
- 800 anos?
- Ah pois! Só que ninguém quis fazer caso disto.
- Disto o quê, professor?
- Judite, repare. Nós já não estamos no meio de uma catástrofe. Nós estamos sobre os destroços da catástrofe.
- Qual catástrofe, professor Medina Carreira?
- Este terramoto fiscal. Com a agravante de eu o ter previsto há, vá lá, 600 anos.
- Há-de haver uma solução…
- Pois há, é o tsunami que se segue ao terramoto.
- Um marmoto, quer o professor dizer?...
- Não, um terramoto é uma coisa. Um marmoto é outra. Mas isso não importa. O que importa é que vamos ser todos, sem excepção, arrastados na corrente, entre destroços. Uns, coitaditos, enterrados em lama até ao pescoço. Outros, nem isso. Já não têm pescoço.
- Mas ó professor Medina…
- Judite, repare, neste gráfico podemos ver as oscilações das placas tectónicas nas últimas três décadas do país. O que isto revela é que eu tenho um gráfico com as oscilações das placas tectónicas nas últimas três décadas do país.
- E?
- E?!
- Sim, professor Medina Carreira. E o que quer isso dizer?
- Não se está mesmo a ver, Judite? Se reparar bem está tudo aqui.
- Onde?
- No gráfico.
- Mas o que quer dizer esse gráfico em concreto.
- Bem, vamos pôr as coisas nestes termos. Isto quer dizer que depois do terramoto teremos um tsunami.
- O que é que o professor propõe para resolvermos esse... tsunami?
- Eu não proponho nada, Judite. Eu disse tudo e ninguém me quis dar ouvidos. Agora aguentem-se.
- Mas o professor também vai ter que se aguentar, também será arrastado na corrente.
- Eu já não interesso, estou velho. E sei nadar. O pior será para os vindouros.
- O que é que pode ser feito por eles?
- Judite, repare, nada pode ser feito. O que eu sei é que por este caminho vai cair um meteorito sobre todos nós.
- Mas isso seria o fim do planeta.
- Não propriamente.
- Pior que isso não há, professor.
- A Judite não está a ver bem. O planeta vai desintegrar-se, como um pedregulho desfeito em pequenos calhaus espalhados pela estratosfera.
- Pode ser?
- Ah não tenha dúvidas. E os calhaus vão desfazer-se em pó.
- É o fim, professor. É o fim.
- Não, Judite. O Homem da Lua vai limpar a poeira com o seu aspirador cosmogónico, vai meter-nos a todos dentro de um saco e depois vai enterrar-nos num buraco na Lua para poder mijar em cima do buraco e rir-se de todo este circo.
- O professor acredita no Homem da Lua.
- Judite, você não acredita em mim?

domingo, 25 de novembro de 2012

OS TURISTAS



Estes são os turistas e vêm da Grécia
para me ver.
Não sabem que estou extinto
há um milhão de anos
e que me transplantei no vértice de uma
estrela perdida no futuro
luzindo à nossa imagem.
Eis os turistas, com suas rodas de fogo,
como eles chegam afoitos
e estacam diante das pedras
desta cidade que apodrece junto ao rio
porque não sabe distinta forma de amar.
São os turistas,
eles limpam as unhas às gaivotas
e comem pasta de atum
enquanto apertam as sandálias,
e olham para mim,
e levantam-se com o saco a tiracolo e
empunham o arpão
e perguntam se eu sou Herodes e eu
respondo-lhes que não,
nem Platão,
nem o seu vizinho acidental que
dominou a Lídia,
nem o cavalo que decidiu morrer para
ocultar a fuga do Mestre rumo a estâncias
balneares que não devem ser menosprezadas,
mas que posso carregar, sim,
no botão da máquina fotográfica,
e eu caminho os passos necessários e
diante dos séculos que o universo
não contempla
decepo-lhes a cabeça - e volto
para junto de mim
enquanto elas começam a escovar
o cabelo das gaivotas
e entrando num tubo que César
construiu caminham às cegas
para bem longe
da cidade que apodrece junto ao rio.


Rui Costa, in Piolho 010 [Revista de Poesia], Edições Mortas / Black Sun Editores, Setembro de 2012, p. 35.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

a mesma cantiga de sempre

a mesma cantiga de sempre (Lua de Marfim, Março de 2012) é o segundo livro de poemas de Pedro Afonso (n. 1979), publicado quatro anos após a estreia em livro próprio com ainda aqui este lugar (4 Águas, 2008). Trata-se de uma colecção de poemas organizada em quatro conjuntos distintos: a mesma cantiga de sempre, um braço suicida o outro assassino, corpo onde caber e travessia das mãos. Apenas os poemas do primeiro conjunto têm título, o que lhes confere uma autonomia face aos restantes explicada por vários deles terem integrado a antologia Algarve – 12 Poetas a Sul do Séc. XXI (Livros Capital, 2012). São poemas onde a região de onde o poeta é originário aparece reflectida num tom crítico, embora nunca de uma forma explícita. De resto, se há marca que define a poesia de Pedro Afonso é, precisamente, a de nela nada ser explícito. Um aspecto curioso neste conjunto é o de nele se subentender uma espécie de fatalismo ontológico, uma inevitabilidade identitária condenada à desesperança: «podes até ser nómada / mas condenaram-te a ti um dia» (p. 12). Este aspecto legitima alguma desconfiança relativamente à relação mantida entre o sujeito poético e o espaço geográfico onde exerce a sua actividade, algo que se torna menos confuso no poema que oferece o título ao conjunto: «onde vamos senão a lado nenhum / agora que ultrapassámos o porvir / avelámos a própria velocidade da luz // na mesma direcção de sempre até ao cais / a mesma colecta / apurada / pela lâmina dos dias / que nos coça os bolsos rotos da pele caduca // e o carro ou o autocarro / o comboio ou // o barco que partirá num fim de tarde escuro / e os bilhetes que serão sempre os mesmos» (p. 15). A multiplicidade de sentidos que o poema admite não esconde o desespero face à monotonia quotidiana, sobre ele paira a nuvem de uma deslocação impossível. Como é óbvio, esta deslocação pode ser interpretada em vários contextos. Agrada-me particularmente a ideia de uma deslocação interna, pessoal, íntima, a impossibilidade de sairmos de nós próprios por a nós próprios estarmos condenados, e de essa condenação resultar de uma série de condicionantes (biológicas, culturais, geográficas) que se intersectam em diferentes momentos da vida. Esta “impossibilidade” como que dificulta a comunicação, oferecendo à poesia o seu papel conciliador. Ou seja, o poema apresenta-se como o lugar onde os impedimentos se ultrapassam e a incomunicabilidade do ser se resolve mediante uma linguagem libertadora. Neste sentido, a poesia de Pedro Afonso surge na esteira do grande poeta algarvio António Ramos Rosa. Há um poema onde tudo isto ganha uma forma extraordinária, por nele lograr o poeta um equilíbrio raro entre o que os olhos vêem, o coração sente e a cabeça pensa:

urbanismo

ainda há cães que ladram a noite fora
de dentro de casas com pequenos quintais
onde alguém conseguiu pôr uma cadeira atravessada
uma mesa

conheço um sítio onde uma senhora rega
uma planta na rua
e outro onde não se estaciona no passeio
tenho um amigo que não tranca a porta de casa

janelas sem persianas
tocando a rua onde velhas
espreitam  os carros a tarde inteira
respirando o reflexo de seu bafo nos vidros
são vasos

casinhas térreas entre prédios
abandonadas pelo tempo
com cadáveres lá dentro
fedendo ao tiro que lhes deram nas costas

Repare-se como a enumeração de elementos paisagísticos excepcionais serve para reforçar a degradação do panorama geral, num remate que não enjeita o exterior sem deixar claro que tudo se passa dentro. Nos poemas dos três conjuntos subsequentes, a poesia de Pedro Afonso resvala para territórios mais líricos. Por vezes aparenta uma ausência de sentido, tal é a encruzilhada de sentidos que se interpõem; noutras ocasiões, uma sintaxe rudimentar leva-nos a pensar numa musicalidade cuja principal característica é a oposição à melodia; a maior parte das vezes, esta apresenta-se-nos como uma poesia complexa sem complexidade. Quero com isto dizer que seria supérfluo debitar texto sobre versos tais como «penteio o tempo com o marfim dos dedos» (p. 31) ou «uma ácida cúpula distante / sobrepõe-se-nos / e dos astros corroídos sugamos / no desapego da dor / a alegria doce de cabelos» (p. 45) ou ainda «a mão quando esgravata o ruído / arqueando os ossos cunhando a carne / e cega coça um pouco do silêncio» (p. 56), só para dar alguns exemplos. São versos inchados de imagens e de metáforas, mais ou menos (in)felizes, que tornam inútil o esforço de interpretá-los, sendo talvez preferível predispormo-nos a tão-somente ouvi-los.

UM NOME

 
 
 
Adenda: vale a pena ver isto, do princípio ao fim.

sábado, 17 de novembro de 2012

ERA UMA VEZ TODA A FORÇA COM A BOCA NOS JORNAIS:


Era uma vez toda a força com a boca nos jornais:
e vinham os mortos com sapatos leves,
roendo maçãs.
Caminhavam balouçando entre as linhas
secas dos necrológios, como
se a lua lhes tocasse nos cabelos
vivos ainda para números de semanas.
Uma vez essa força balouçando como bêbeda,
se a lua tocasse o gosto,
lançava a boca sobre o som dos sapatos leves.
E os mortos nas linhas secas, roendo
maçãs vivas, andavam pelo escuro de um nosso
pensamento. Os mortos com vestidos estampados lá dentro.
Nos jornais os cabelos viviam violentamente.

Eles sabiam de cór os países completos.
Devagar recitavam os palácios do som.
E aos animais para eles eram de cimento
que a erosão lavrasse
como uma esponja tremente. Completos,
os países de cimento
recitavam o som.
Os mortos devagar lavravam animais
nos palácios violentos.

Com orelhas direitas como livros amados,
eu ouvia a chegada
das semanas fechadas no terror dos jornais.
Curvavam-se os mortos como vírgulas
na terra, e as folhas -
para dentro - eram vivas como águas
solitárias.
Nos meus livros entravam as cabeças teóricas -
e as folhas voltavam-se, terríveis,
respirando.
E eu ouvia a chegada através dos jornais.

Os leves sapatos tocavam no som:
violento, o cabelo vivia
cheio de folhas. Os mortos curvavam-se
para dentro como águas solitárias -
e de novo partiam através das linhas secas
para semanas terríveis em países
completos. E não voltavam mais
como se a lua não tocasse, balouçando
entre as linhas lavradas,
suas cabeças animais, seus teóricos
vestidos estampados para dentro.

Desapareciam nas orelhas dos jornais.


Herberto Helder, A Máquina Lírica (1964)

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

SE ESTIVESSES A ORGANIZAR, Ó SÓCRATES, UMA CIDADE DE PORCOS, NÃO PRECISAVAS DE OUTRA FORRAGEM PARA ELES.

Areeiro, Lisboa. 2011.

Não estamos apenas a examinar, ao que parece, a origem de uma cidade, mas uma cidade de luxo. Talvez não seja mau. Efectivamente, ao estudarmos uma cidade dessas, depressa podemos descobrir de onde surgem nas cidades a justiça e a injustiça. A verdadeira cidade parece-me ser aquela que descrevemos como uma coisa sã, mas, se quiserdes, observaremos também a que está inchada de humores. Nada o impede. Bem, estas determinações não bastam, ao que parece, a certas pessoas, nem este passadio, mas acrescentar-lhes-ão leitos, mesas e outros objectos, e ainda iguarias, perfumes e incenso, cortesãs e guloseimas, e cada uma destas coisas em toda a sua variedade. Em especial, não mais se colocará entre as coisas necessárias o que dissemos primeiro, - habitações, vestuário e calçado -; ir-se-á buscar a pintura e o colorido, e entender-se-á que se deve possuir ouro, marfim e preciosidades dessa espécie. (...) Portanto, temos de tornar a cidade maior. A que era sã não é bastante, mas temos de a encher de uma multidão de pessoas, que já não se encontra na cidade por ser necessára, como os caçadores de toda a espécie e imitadores, muitos dos quais são os que se ocupam de desenho e cores, muitos outros da arte das Musas, ou seja, os poetas e seus servidores - rapsodos, actores, coreutas, empresários -, artífices que fabriquem toda a espécie de utensílios, sobretudo adereços femininos. E, em especial, precisaremos de mais servidores. Ou não te parece que careceremos de pedagogos, amas, governantes, açafatas, cabeleireiros, e ainda cozinheiros e marchantes? E vamos precisar ainda de porqueiros. Isto era coisa que na nossa primeira cidade não existia - pois não era precisa para nada - mas nesta, também necessitamos deles. E ainda careceremos de todas as outras espécies de gado, não vá alguém querer comer delas.

Fotografia: Jorge Aguiar Oliveira.
Texto: Platão.

A FRUGALIDADE DOS OBESOS

Na crónica de hoje publicada no jornal Público, José Manuel Fernandes insiste na defesa das palavras recentemente proferidas, e já amplamente debatidas, da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome (BACF). As afirmações de Isabel Jonet podem resumir-se, mais bife, menos Nestum, em três ideias chave: 1. andámos a viver acima das nossas possibilidades, 2. temos que reaprender a viver pobres, 3. em Portugal não há miséria. Para José Manuel Fernandes tudo isto faz sentido, pois nasceu «numa casa grande, com muitas assoalhadas», «tinha um copo para lavar os dentes» e é obeso. Para o meu pai, que nunca teve um copo para lavar os dentes, começou a trabalhar numa taberna com dez anos e toda a vida se debateu por uma vida melhor para os filhos, este discurso de reaprender a ser pobre é insultuoso. Porque ele foi, de facto, pobre. Mas o que enfada na retórica de José Manuel Fernandes não é a incompreensão desta realidade, é uma muito vulgarizada tendência para contornar a verdadeira dimensão das afirmações proferidas pelos adeptos da austeridade. Desde logo, esta subtil hierarquização da indigência que nos leva a separar frugalidade de pobreza e esta da miséria. Desconheço em que parte entra a fome que dá razão de existir ao BACF, mas mais chocante ainda é o discurso em torno do «desregramento no consumo» - como se fosse uma novidade e uma conquista da crise o combate ao consumismo desenfreado. Durante os dez anos que leccionei filosofia e matérias congéneres, entre 1998 e 2008, fartei-me de falar nestes assuntos, ora apoiado nos retratos do “império do efémero” levados a cabo por Lipovetsky, ora estribando-me na amoralidade do consumismo denunciada por Peter Singer. Sempre me pareceu muito clara a esparrela de um “mundo civilizado” quase que exclusivamente fundamentado nessa mecânica escravizante do trabalho, em que a existência do cidadão passa a reduzir-se ao acto de produzir para poder consumir. É a sociedade onde o que se é confunde-se com o que se tem, o ser com o ter. E mais clara me parecia (e parece) quando via (e vejo) agravarem-se as assimetrias entre os mais ricos e os mais pobres, à exacta medida de uma insensibilidade para a causa ecológica que há-de ser a destruição final deste mundo que outros, que não eu, se empenharam em defender. Nem eu nem a esquerda em que mais me revejo (se querem exemplos absurdos, basta atentarem-se ao parque automóvel dos diferentes grupos parlamentares). Mas nada disto tem que ver com o que agora está em causa, pois o que se exige às pessoas é que abdiquem das suas conquistas sociais e legítimos direitos do contribuinte (educação, saúde, subsídio de férias, etc.) como se fosse um luxo mantê-los, com a agravante de se fazerem estas exigências alargando as assimetrias, enriquecendo ainda mais aqueles que já são ricos, roubando descarada e cobardemente os indefesos - indefesos porque a justiça não funciona e a segurança está do lado do poder. Houvesse um mínimo de decência, e os responsáveis pela gestão danosa que nos trouxe aqui estariam todos condenados. Não havendo, querem que nos conformemos com essa falta. É esse conformismo, de braços caídos e olhos postos no chão, que se espera do remediado, oferecendo-lhe a pobreza no horizonte. Ora, como é óbvio, e por mim falo, a minha vida não depende de ter ou não ter MEO em casa, nem sequer de ter televisão ou um carro com treze anos… Não contraí empréstimos para comprar casa na praia, nem recorri a subsídios para recuperar quintas com piscina. Penso, porém, que quem atribuiu esses subsídios e quem concedeu esses créditos não deverá ter a consciência muito limpa, nem quem desenhou leis à imagem e semelhança dos seus interesses pessoais, servindo-se do Estado quando, na realidade, deveria estar a servi-lo. Durante décadas, outra coisa não foi promovida neste país senão o consumismo desenfreado. Vêm agora os seus promotores lavar as mãos falando de austeridade? Dispensa-se a pedagogia a quem não pratica a didáctica, ostentando um bandulho que nada deve à frugalidade. Podia fazer como Henry David Thoreau e montar a cabana no bosque, caminhar como um camelo na direcção das terras selvagens enquanto, manhãs inteiras e até tardes a fio, artesãos e caixeiros permanecem nos seus postos; podia, quem sabe, aprender com a leitura de Caminhada (Antígona, Setembro de 2012), finalmente em tradução portuguesa digna, e investir na preservação do mundo entre o caçador com cheiro a almíscar, pois na Natureza reside a nossa salvação (excepto, talvez, a Natureza de África), escolhendo viver em liberdade como os índios que a gente civilizada e doméstica do Ocidente assassinou. Podia, não fosse ter mais que fazer nas páginas do jornal que já não dirige.

ATÉ AQUI, TUDO VAI BEM...

Apenas hoje, ao rever este, é que me apercebi de onde veio o leitmotiv para este.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

PROFISSIONAIS DA (DES)ORDEM

Camarada Van Zeller, estou cheio de dores nas costas. Cada músculo que movimento é como se tivesse um torcicolo. Não julgue coisas erradas sobre mim. Lá por estar cheio de dores não quer dizer que tenha andado misturado entre os traidores à pátria que ontem se manifestaram na capital. Fiz como o Presidente da República, fui trabalhar. Só interrompi o trabalho para deixar no Facebook uma mensagem de apoio a todas as forças policiais, contra a catrefa de desordeiros mascarados que os agrediam com pedras. Como por exemplo, uma suposta velhinha a sangrar da cabeça. É óbvio que não se trata de uma velhinha a sangrar da cabeça, mas sim de um profissional da desordem mascarado de velhinha. Ou aquele individuo caído no chão a ser pontapeado. Aparenta uma certa idade, idade para ter juízo, mas na realidade é mais um profissional da desordem mascarado de indivíduo de certa idade. Desconfio mesmo que os polícias violentos sejam alguns desses profissionais da desordem mascarados de polícias do corpo de intervenção. Não dá para ver bem, pois escondem-se atrás de escudos e capacetes e viseiras e coletes à prova de bala e bastões e pistolas e tudo o mais que os nossos impostos podem sustentar. Fica a dúvida. O que não entendi de todo foi a contabilidade do ministro Macedo, que com tão pouco tempo de ministério já leva porrada sobre jornalistas impedidos de exercerem a sua profissão, mais um aluno detido em pleno estabelecimento de ensino por um segurança privado e, finalmente, este algo que se veja de Lisboa a arder. Não percebi as contas do ministro. Como podem meia dúzia de profissionais da desordem redundar em 9 detidos e 48 feridos? E que dizer da selectividade proporcional das forças da autoridade ao calcorrearem as ruas de Lisboa no encalço de malfeitores que levaram ilegalmente para os calabouços de Monsanto? Será que o próprio ministro era um profissional da desordem mascarado de ministro? Como isto anda, é bem provável que sim. Por isso mesmo, também eu quero aqui deixar uma mensagem de solidariedade para com todos os profissionais da ordem que têm levado este país a bom porto. O bom porto, claro está, em que se encontra atracado. Porque isto é tudo ordem e organização. Porque eles, os profissionais da ordem, enfrentaram uma chuva de pedras durante umas parcas horas. Nós, os profissionais da desordem, aguentamos, aguentamos, aguentamos anos a fio com uma chuva de insultos à inteligência e assaltos cobardes e vigarices consecutivas sem responsáveis nem culpados. Por detrás de tamanho profissionalismo, camarada Van Zeller, sabemos bem o que se esconde: cada vez mais pessoas a ganhar menos de 310 euros por mês. Uma fortuna que não chegará para os estragos causados pelos profissionais da desordem, mas certamente bastará para sustentar o ministro mais as suas balas de borracha mais a sua profissionalíssima ordem.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

PORQUE NÃO HÁ-DE SER O NORTE O SUL?

Cruz Quebrada, Oeiras. 2011.

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã - como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...


Fotografia: Jorge Aguiar Oliveira.
Texto: Fernando Pessoa.

CARANGUEJOLA


- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores.

Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado,
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.

Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
- Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...

Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...

Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo -, e se resigne a não ter jeito...

De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...

Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Coa breca! levem-me prà enfermaria -
Isto é: pra um quarto particular que o meu Pai pagará.

Justo. Um quarto de hospital - higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda -
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...

- Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.


Mário de Sá-Carneiro, Paris - Novembro de 1915.

ALEGRIA, ALEGRIA, BATEMOS DOIS RECORDS


Camarada Van Zeller, a patroa desceu à pocilga. Dizem que vem apertada de horários, com apenas cinco horas para passar revista ao exército lusitano. Sendo assim, é melhor que Herr Ulrich, Herr Borges, Frau Jonet e muitos outros herrfrau entre os quais o meu amigo Van Zeller se incluirá, se apressem na argumentação em defesa do melhor e mais reverencial povo do mundo. Sempre atento aos pormenores, o prof Marcelo concebeu um vídeo para explicar isso mesmo à chanceler. Já sabíamos que conseguia ler dois livros ao mesmo tempo, e ao mesmo tempo também escrever com as duas mãos, sabíamos da sua capacidade para dormir de olhos abertos e fazer o pino suportando-se na penca, mas desconhecíamos este contorcionismo cinéfilo. Seja como for, depois de termos visto o prof Marcelo a nadar no Tejo sem um arrepio de frio podemos dizer, com toda a propriedade, que já vimos mais do que um porco a andar de bicicleta. Só lhe falta aprender a falar com a boca cheia de bolo rei para chegar a Presidente da República, cumprindo assim um velho desejo de milhões de portugueses. Está de parabéns, o prof Marcelo. Com um simples vídeo de cinco minutos conseguiu provar o que já todos desconfiávamos: somos uma cambada de idiotas sem o mínimo de orgulho próprio, que se humilha a bajular os poderosos com caracterizações pirosas sem se dar conta do quanto indigno isso é. A ser promocional, este vídeo apenas promove o Carnaval de Torres Vedras:

 



 

A primeira parte é muito boa, na medida em que enaltece as conquistas da democracia rebaixando os alemães à condição de pedintes. Afinal, nós não tivemos nenhum Plano Marshall, bastou-nos esta capacidade heróica de sermos portugueses. Que melhor forma de promover a imagem dos portugueses junto dos alemães senão dizendo-lhes que nós somos muito melhores que eles? Perante isto, resta-nos perceber o que quer o prof Marcelo dizer quando diz que desperdiçámos dinheiro. Foi tudo culpa dos alemães, que se aproveitaram do nosso deslumbramento consumista para nos venderem carros topo de gama e submarinos caducos, expos & Cª Lda. Só faltou dizer que vivemos muitos anos acima das nossas possibilidades, com 37% dos trabalhadores por conta de outrem a auferirem um salário médio na ordem dos 777€, e a inflação a subir mais do que o aumento dos salários, e 605 mil pessoas a ganharem o salário mínimo nacional, e o desemprego a subir vertiginosamente, e as famílias cada vez mais asfixiadas pela máquina fiscal sem conseguirem fazer frente às despesas contraídas, e os bancos a promoverem, durante décadas, o crédito fácil enquanto uma horda de vigaristas foi enchendo os bolsos com mordomias sustentadas à custa de uma gestão absolutamente criminosa da “coisa pública”… Mas isto não são realidades para alemão ver, isto são items para o Relvas estudar internamente na sua universidade privada e o Passos aprender a contornar com os marcadores do Gaspar enquanto o Santos Pereira se empanturra em natas e a Paula Teixeira da Cruz faz a festa a dizer que se acabou o regabofe. Portanto, andamos a dar lucro aos alemães com a nossa eterna incapacidade para resistir às tentações. Perdoa-nos Merkel, não nos faças mais sofrer. Livra-nos do calvário que estarmos a ser governados por tanto germanófono invertebrado (sic). Já que estás cá, leva-os contigo. Não nos deixeis cair em tentação mas livrai-nos do mal.

domingo, 11 de novembro de 2012

UMA CAMA PARA CINCO

 
Alcântara, Lisboa. 2012.
 
Cá em casa a nossa cama é a nossa liberdade imediata. Tem os nomes que quiserem. É a cama do pai de família, austero e mandão, ou do dorminhoco pesado quando regressa embriagado para casa. É a cama do libertino. É o leito (suponhamos!) Luís-Qualquer-Coisa, XV ou XVI, do milionário, porque nela somos reis e milionários de ternura e de abraços, de palavras ciciadas; e é o catre sem lençóis, fracas mantas, e mau cheiro, do maltês que não sabe para onde o destino o manda (e somos isto, e que de longes terras viemos! quantos naufrágios! quanta coisa fomos largando para facilitar a marcha até aqui), a enxerga do pedinte (e nós o somos também: porque temos falta de tudo e porque acordamos de manhã sem uma bucha de pão para dar às crianças e sem saber ainda onde o ir buscar). Podia ser (dava para) um bom título de uma comédia picante, bulevardesca: UMA CAMA PARA CINCO; idem para um filme neo-realista, onde nem cama houvesse, só umas palhas podres e mijadas, com gaibéus ensonados, embrutecidos do calor e do vinho, fedor de pés, talvez um harmónio desafiando as cigarras e os grilos na cálida noite da planície alentejana. Uma cama para cinco, em herança, constituía um demorado caso de partilhas. Nós dormimos. Às vezes, muitas vezes, beijos e abraços.
 
 
Fotografia: Jorge Aguiar Oliveira.
Texto: Luiz Pacheco.

A LÓGICA DA IMPRENSA

No Eixo do Mal de ontem, Luís Pedro Nunes mostrou-se preocupado com a facilidade com que se assassina a imagem pública de alguém nas redes sociais. Referia-se, obviamente, às reacções provocadas pelo discurso de Isabel Jonet num programa de televisão. Clara Ferreira Alves insurgiu-se contra Luís Pedro Nunes dizendo que ele estava a fugir ao assunto, as declarações de Jonet, mas acrescentou que era aquela "a lógica da Internet". Portanto, "a lógica da Internet" é assassinar a imagem pública das pessoas em tempo record e de uma forma automática. Ao ouvi-los, lembrei-me de imediato de uma página do Público de sexta-feira. Dizia a notícia que o Supremo condenou a SIC a indemnizar Ricardo Rodrigues em 115 mil euros, por ofensa à honra e dignidade após divulgar notícias que associavam o deputado socialista a um caso de pedofilia nos Açores. Estas notícias foram emitidas em 2003, na idade pré-histórica das redes sociais. A condenação da SIC não foi comentada no Eixo do Mal, havia assuntos mais importantes a tratar. E logo me surgiram na memória dezenas de capas de O Independente, e os assassinatos políticos de Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso aquando da polémica em torno do caso Casa Pia, e o tonto director do misterioso Semanário a desmentir capas do jornal no próprio dia em que eram publicadas. Nada disto se passou na Internet, e exemplos não nos faltam para sustentar uma dúvida que a preocupação de Luís Pedro Nunes e a antipatia de Clara Ferreira Alves para com a Internet suscitam: afinal, qual é a lógica da imprensa para a qual eles trabalham? Se a lógica da Internet é desfazer a imagem pública de uma pessoa em cinco minutos, qual é a lógica da SIC agora condenada pelo Supremo? O que preocupa, afinal, estes assalariados dos media, que se desdobram em comentários ora sérios, ora jocosos, por tudo o que é meio de comunicação social? Se for a difusão desregrada da opinião pública, esqueçam. A solução para o vosso problema seria acabar com a opinião pública, instituir uma espécie de ditadura da opinião onde apenas os protegidos dos media teriam direito a tempo de antena. Se, por outro lado, a preocupação tiver na sua origem os comentários violentíssimos e odiosos que o anonimato proporciona, desenganem-se. Os anónimos que se entretêm a largar bílis pelas caixas de comentários fazem parte do mundo, deste nosso mundo, não saltarão subitamente das caixas de comentários para a rua largando bombas em vez de insultos. Na realidade, facilmente os imagino curvarem-se reverencialmente perante os objectos da sua bílis caso se proporcionasse um encontro, um cumprimento, uma oportunidade, porque não é de agora que facilmente o ódio se transforma em simpatia no mundo real dos hipócritas. O que se passa nas redes sociais, e na Internet em geral, é que aquela parte do iceberg freudiano que não se via passou a estar visível e acessível a todos quantos a queiram observar. Os recalcamentos, as frustrações, os medos, as opressões dos indivíduos vieram à superfície em massa. Há quem os prefira escondidos lá no fundo inacessível da psique, há quem não se incomode com o espectáculo da sua emergência. Eu apenas preferiria que fosse realmente séria a chamada imprensa séria e menos obtusa a opinião assalariada. Em nome da verdade, claro.

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

REFUNDAR O ESTADO = PORTUGAL DESDENTADO

Camarada Van Zeller, na minha terra havia um fotógrafo chamado Luciano Rodrigues. Para mim, era o senhor Rodrigues fotógrafo. Tinha um estúdio num prédio da rua das montras, a Rua Serpa Pinto, onde o meu pai ainda hoje vende trapos de fita métrica ao pescoço. A minha mãe levava-me sempre lá a tirar fotografias. Vestia-me o fato de domingo, penteava-me e sentava-me à frente do cenário escolhido pelo senhor Rodrigues fotógrafo. Conforme a estação, eu era fotografado ao pé de montanhas cobertas de neve, as folhas caídas de Outono, as amoreiras em flor da Primavera ou baías repletas de palmeiras num dia solarengo. O estúdio fechou, tal como 90% das lojas na rua das montras onde o meu pai ainda mede as bainhas das calças que vai vendendo. O comércio tradicional tornou-se obsoleto no Portugal dos Centros Comerciais. São 155 espalhados pelo país, transformando num suplício o comércio no centro das cidades. Para não falar dos hipermercados, cheios de marcas importadas e pagando tarde e a más horas aos produtores nacionais. Só da varanda do meu apartamento vejo 6. Chegaram e instalaram-se com promessas de emprego, mas à sua volta fecharam dezenas de lojas cujos funcionários, pelo que me consta, não foram propriamente transferidos para essas maravilhosas superfícies. Abriram com 100 funcionários para rapidamente reduzirem o pessoal a 20, pagam miseravelmente exigindo o dobro, fazendo do salário mínimo nacional o salário médio. Aos balcões, nas caixas (quando as há), podemos ver de tudo um pouco: radiologistas, professores, designers, psicólogos, historiadores, sociólogos, etc.. Não estão a fazer compras, atendem clientes. Os pais foram pobres, deixaram de o ser e investiram na educação dos filhos, para que os filhos agora reaprendam a ser pobres enquanto pesam os tomates ao freguês. Antigamente não era assim. Havia a vantagem de se ser explorado mantendo-se analfabeto. Um homem podia ser vagabundo sem ter uma licenciatura, embora dificilmente pudesse chegar onde Relvas chegou sem ser vigarista (há coisas que nunca mudam). É uma questão de exigência social. A sociedade passou a exigir menos daqueles que a orientam, exigindo muito mais daqueles que a sustentam. Exige, por exemplo, que todo o tipo de usurpação se aguente como se não fosse uma usurpação. Repare-se como dos bancos espera-se que emprestem dinheiro a troco de juros incomportáveis, ao passo que das pessoas espera-se que paguem impostos a troco de nada. É por isso que olho para as fotografias do senhor Rodrigues fotógrafo com nostalgia. Vejam como é humilde, sem deixar de ser belo, o sorriso da Ti Firmiana, toda a vida poupada no que a higiene oral diz respeito:

 
Onde as famílias não perdiam tempo a ensinar às crianças como lavar os dentes, os rostos ficavam assim. Mas do cardápio de fotografias deste artista da minha terra, a mais eloquente é esta:




Chamou-lhe Turismo o seu autor, um turismo saudoso captado nas ruas do Porto. Duvido que os pais daquelas crianças, ali olhadas por seis pessoas adultas, humildemente vestidas, tenham podido endividar-se para comprar cuecas, calças e sapatos aos filhos. Naquela pobreza há quem vislumbre um sem fim de oportunidades. Talvez possam os petizes vir a fazer fortuna como exportadores de natas, assim Deus, a Sonae, o grupo Jerónimo Martins e o coiso as acompanhem. Os adultos sorriem, têm o ar complacente de quem olha para a miséria com ternura e compaixão. O que viam nos pobres rapazitos, não sei. Mas sei que não quero (re)aprender a ser como eles, nem quero que as minhas filhas ou os meus netos (se vier a tê-los) venham a fazer figuras daquelas. Não posso desejar que o meu futuro seja aquele passado. A dificuldade que hoje se me coloca, caro Van Zeller, já não é perceber como aqui chegámos. Isso eu sei. Uns falam das famílias endividadas a viver acima das suas possibilidades, como se não lhes tivesse sido possível endividarem-se. Outros falam do endividamento do Estado e das perturbações dos mercados. Outros querem refundar o Estado exigindo às pessoas que reaprendam a ser pobres, como se não bastasse sugerir-lhes que voltem as costas ao país sem dó nem pieguice. São todos farinha do mesmo saco, estes outros. Podíamos, quiçá, começar por ser mais exigentes com quem tira a fotografia. Não esperar cenários idílicos à frente dos quais fazemos pose nem ansiar por amanhãs que cantam sempre em tom desafinado. E depois exigir que se torne cartesianamente claro e evidente a quem deve Portugal dinheiro e por que deve. Foi para sustentar isso a que chamam de Estado Social? Não chega o que nós pagamos de impostos? Foi para manter o BPN activo sem ter que levar à barra dos tribunais a corja de vigaristas e gatunos que andou ali a brincar com o dinheiro alheio? Foi para pagar ao Isaltino Morais e a outros como ele? Foi para construir estádios de futebol e auto-estradas inúteis? Foi para exibir ao mundo uma EXPO, um CCB e outras manifestações culturais de absoluta necessidade? Foi para cobrir sucessivas derrapagens nunca explicadas nos orçamentos das obras públicas? Foi para financiar a banca? Foi para afundar a Madeira num catastrófico ordenamento territorial? Foi para pagar os vestidos da mulher do Dias Loureiro? Foi para subsidiar as mordomias de centenas de políticos e ex-políticos num jogo pornográfico de transferências do Estado para o privado e do privado para o Estado? Foi para comprar submarinos? Foi para sustentar os vícios dos turistas que olham compassivamente para os meninos ou para comprar sapatos, calças e cuecas aos meninos?

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

MUNDO DE JONET

Camarada Van Zeller, as ciganas do meu bairro excitam-me. As novas e as velhas. Estas porque vestem saias compridas, geralmente negras, não vão à cabeleireira e levantam-se cedo para apanhar caracóis. As outras porque parecem putas, vestem-se como putas, entram e saem de carros suspeitos, tal qual putas. E as putas excitam-me. As ciganas do meu bairro vivem no mundo de Jonet, apesar de não lavarem os dentes. Suponho que não os lavem porque ou os não têm ou os têm estragados. A pasta de dentes está pela hora da morte, não oferecem detergentes para a boca na benfeitoria, só sopa de caracóis. É preciso poupar para ir ao bowling beber café, já que não dá para ir ao concerto de rock. As ciganas do meu bairro nem sequer gostam de rock, o mais rock que ouvem é o Tony Carreira na grafonola do Mercado de Santana. Se alguma vez foram a um concerto, foram puxadas pelos carros suspeitos. Talvez tenham dançado ao som dos Lords nas festas em honra de Nossa Senhora de Jonet, à freguesia do Auxílio. Olho para as ciganas do meu bairro, este bairro do mundo de Jonet, e imponho-me uma estóica reaprendizagem de ser pobre. Isto de reaprender a ser pobre tem muito que se lhe diga, porque só reaprende a ser pobre quem já o foi e deixou de ser. Quem nunca foi pobre pode não ter sequer que aprender a sê-lo, bastando-lhe sugerir aos que já o foram que voltem a sê-lo. Eu quero ser pobre, eu ambiciono ser pobre, eu desejo ser pobre, preciso que me ensinem a ser pobre. Eu venho-me de austeridade. Por isso me levanto bem cedo, antes de ir para o trabalho, e fico a olhar as ciganas do meu bairro. Masturbo-me a olhá-las - as velhas apanhando caracóis, as novas ganhando para o Nestum - e confesso que tenho vivido acima das minhas possibilidades. Nada devo a ninguém, felizmente, mas a verdade é que vivo acima das minhas possibilidades. Contribuo para o banco alimentar, distribuo cigarros pelos carochos, fumo e bebo e vou ao cinema e ao concerto de rock. Só não vou à missa largar tostão no cesto de verga, não quero exagerar nesta coisa do despesismo. Sou um consumista indefectível, tenho asma, respiro mais do que o necessário, do MEO prescindiria não fosse ter a viver comigo uma família idiota. A minha família é idiota, vive num mundo de Jonet. No mundo de Jonet nós vivemos de uma maneira completamente idiota. Nós somos nós, todos quantos lavam os dentes com a água da torneira a correr. Por exemplo, os idiotas dos filhos da Isabel. As ciganas do meu bairro não são idiotas porque não lavam os dentes, mas os filhos da Isabel são. Eles lavam os dentes. Esperemos que limpem a cera dos ouvidos. Aqueles que foram educados a lavar os dentes com água no copo também são idiotas, pois não souberam educar os seus filhos a fechar a torneira. É provável que esses mesmos filhos prefiram um concerto rock a fazer uma radiografia, o que não se lhes censura. Excepto se for um concerto de Rock in Rio. Há que fazer aqui uma lógica de contabilidade doméstica, há que ir aos concertos do Padre Borga. São mais baratos, poupamos no merchandising. No mundo de Jonet há pobres, mas não há miséria. Há muito Nestum. Três milhões de portugueses entopem os centros de ajuda e os abrigos, dormem na rua, não lavam os dentes, ouvem Padre Borga, beijam a mão caridosa da Isabel, estão robustos, rechonchudos, comem Nestum. É certo que muitos desempregados não vão encontrar uma oportunidade de trabalho porque continuam em casa dos pais a comer Nestum para poderem ir ao concerto de rock, pelo que devíamos de uma vez por todas acabar com os concertos de rock. Só missa e Padre Borga e Isabel no mundo de Jonet, porque dos indigentes será o reino do senhor. Cada um de nós tem de fazer o esforço de olhar para aquilo que vai perder como uma necessidade de voltar ao mais básico, e voltar ao mais básico é ser livre, é ser feliz, é poder dizer que nada se tem a perder porque, na realidade, nada se tem, excepto água no copo para lavar os dentes. E caracóis na erva. Que a sede mata-se por si enquanto Isabel puder cuspir nas nossas mãos.

terça-feira, 6 de novembro de 2012

COMO ACORDAR UMA MANADA?


Quando se pede a um interlocutor que seja realista, outra coisa não se lhe pede senão que olhe para a realidade através da perspectiva que lhe é proposta. Dito isto, sejamos realistas. Se nos ficarmos pelo século XX, porque seria doloroso recuar mais, verificamos que o povo português aguentou durante 48 anos uma ditadura de contornos mesquinhos. O salazarismo foi uma coisa católica ensimesmada, de inspiração nacionalista, que lançou o país num atraso de vida cultural, moral, social por demais evidente à época da revolução. Não fosse uma classe militar saturada da carnificina nas colónias, teríamos aguentado mais uns anos o pseudo-salazarismo marcelista. Chamaram-lhe Primavera quando, na realidade, não passou de um triste e enfadonho Outono. A revolução instalou a alegria da mudança, sem transtornos de maior para quem nada tinha a perder (a maioria da população) e uma misericórdia impressionante para com quem tinha andado a roubar. A chegada à CEE, após um período de conturbação política sem nódoas intratáveis, abriu as portas da esperança. O desenvolvimento era o horizonte, o progresso, que veio a verificar-se em variadíssimas frentes, era inevitável. Sucede que durante esses anos posteriores à revolução, logo os vigaristas de outrora regressaram à terra com a teta na mira. A encabeçar uma quadrilha de gatunos na política, todos eles ao serviço de interesses financeiros e empresariais, um obtuso chamado Cavaco. Durante 10 anos, este ser inculto deu guarida a gente do calibre de Isaltino Morais, Dias Loureiro, Duarte Lima, Santana Lopes, Oliveira e Costa ou os agora promovidos Passos Coelho e Relvas. O caso BPN bastaria para meter grande parte desta gente atrás das grades. Mas não satisfeito, o povo meteu o obtuso Cavaco na presidência da República. E com este ser medíocre temos que aguentar mais 20 anos da história portuguesa contemporânea. E vão 68. Agora, o povo português, bastas vezes alertado para o despesismo denunciado nas derrapagens sucessivas em obras públicas de interesse nulo (dos CCBs às EXPOs, dos EUROs 2004 às Pontes Vasco da Gama é só escolher…), queixa-se de lhe andarem a ir ao bolso, como se outra coisa não tivessem feito estes imbecis que nos governam (são exactamente os mesmos) há décadas. Andou o povo entretido com Big Brothers e os jogos da selecção portuguesa de futebol, pendurou as bandeiras nas varandas e tirou fotografias ao pé do Pavilhão de Portugal, para mais tarde recordar, quem sabe, os bons tempos em que podia ser roubado sem perceber que estava a ser roubado. Percebe-o agora. Mais vale tarde que nunca. O que não percebe, e isso torna-se evidente na civilidade das manifestações até agora levadas a cabo, é que isto não vai lá com cantorias nem abraços à polícia nem poses para o retrato no jornal ou hinos da alegria ao som dos Homens da Luta. Patético. Exija-se, de uma vez por todos, que os responsáveis por esta situação sejam julgados. Temos tribunais? Temos juízes? Servem para alguma coisa? E julguem-se esses gatunos, condene-se essa gente, expurgue-se o Estado das sanguessugas que dele se serviram sob pretexto de andarem a servir a nação. Só começando por aí poderemos “refundar” o Estado. Tudo o que não for isso será contribuir para a perpetuação no poder dos novos ditadores, os ditadores da finança, chamem-se eles Ulrich ou António Borges, mais seus lacaios Coelho & Relvas, enquanto a seus pés crescerá uma manada de escravos dispostos a tudo por dá cá aquela palha.

CONTUDO HOUVE UMA VEZ QUE ESTIVEMOS QUASE A DISCUTIR.

Telheiras, Lisboa. 2011.
Ele disse que a melhor maneira de passar um dia quente de Julho era ficar deitado de manhã à noite num montículo de urzes no meio da charneca, com as abelhas a zunir no meio das flores, as cotovias a cantarem sobre a cabeça, e o céu azul sem nuvens com o sol quente a brilhar. Esta é a sua grande ideia de felicidade celestial; a minha era baloiçar-me numa velha árvore com ovento a soprar do oeste e nuvens brancas e brilhantes a passarem rapidamente lá em cima; e ouvir não só as cotovias mas também os tordos, melros, pintarrochos e cucos que ficam a cantar por toda a parte, enquanto a charneca se vê à distância, cortada pelos vales frescos e profundos; mais perto a relva comprida ondula com a brisa; os bosques, os riachos e o mundo todo vibra numa plenitude de felicidade. Ele queria ficar deitado num êxtase de paz; eu queria vibrar e dançar num jubileu de glória.
Disse-lhe que o seu paraíso seria uma coisa semimorta, e respondeu-me que o meu seria uma coisa de loucos; afirmei-lhe que adormeceria no dele, e retorquiu-me que não conseguiria respirar no meu, e a discussão começou a azedar. Finalmente concordámos em experimentar os dois assim que vier o bom tempo, beijámo-nos e ficamos outra vez amigos.

Imagem: Jorge Aguiar Oliveira.
Texto: Emily Brontë.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

DOIS LIVROS DE MIGUEL-MANSO

Escrever sobre um livro de Miguel-Manso (1979) é correr o risco de ser capturado pelas armadilhas espalhadas nos seus livros, na medida em que é o próprio poeta – chamemos-lhe poeta para evitarmos outras designações talvez mais pomposas, como rapaz que escreve ou ser escrevente – quem manifesta um certo desprendimento, para não dizer desprezo, relativamente a este repisar que é, sem dúvida, o exercício da leitura impressionista: «Quando sobre um jovem autor se redigem excessivas loas ao resultado dos seus primeiros trabalhos o provável é crescerem nele, mais tarde, graves disfunções orgânicas de origem acumulativa. Para evitar certas patologias e combater o inchaço patológico (tumefacção) é necessário usar-se sem atrasos lancetas de sangria. A punção resultará, a breve trecho, do modo seguinte: desinflama, descongestiona, desintoxica, tranquiliza, neutraliza o ilustre mas silenciado Síndrome do Pânico, transversal à classe. É então indispensável que sobre esse autor caiam já as piores desonras e agravos, venham eles do blá-blá-blá autorizado, ou da sarjeta de comentários de um blogue» (p. 32, Um Lugar a Menos). Apesar das humilíssimas edições de autor, publicadas sob o título genérico de Os Carimbos de Gent, Miguel-Manso não se furta, porém, à entrevista, à fotografia para o jornal, à aparição televisiva ou radiofónica. Estamos perante um paradoxal caso do culto do não-culto, estupenda herança da sociedade do espectáculo tal como a entenderam os situacionistas ao mesmo tempo que nela se penduravam. É hoje difícil escapar, mesmo que em nichos de atenção mediática, às teias que a comunicação tece. E Manso(-Miguel) não escapa, por muito que isso lhe inspire poemas em sentido contrário. Sucede que, neste caso, a qualidade da matéria produzida justifica as atenções. Dois livros em 2012 vêm renovar o entusiasmo colocado sobre uma escrita cujo maior defeito é, sem culpa disso, gerar expectativas no leitor. É certo que Ensinar o Caminho ao Diabo (Março de 2012) é uma recolha de poemas em verso que não faz justiça às anteriores, mas os poemas em prosa (porquê evitar tal conceito optando por chamar-lhes aforismos?) de Um Lugar a Menos (idem) são, no seu conjunto, do melhor que a poesia portuguesa pariu nos últimos anos. O mais curioso, pelo menos para mim, é que aquilo que nos versos do primeiro livro resulta redundante, nas prosas do segundo consegue uma intensidade espantosa. E o que é aquilo? É uma necessidade auto-reflexiva sobre o lugar do poeta no mundo, o lugar da poesia no poeta, o lugar do poeta no poeta, o lugar da poesia na poesia, em suma, e por absurdo, o lugar do lugar. Desde o primeiro livro que Miguel-Manso se revela um poeta do espaço. Os seus poemas estão repletos de referências geográficas, são consequência do lugar. Repare-se como os títulos Ensinar o Caminho ao Diabo e Um Lugar a Menos remetem, cada qual à sua maneira, para essa noção de espaço, seja pelo movimento que nele se opera, seja pela violação de que é alvo. Nos poemas de Ensinar o Caminho ao Diabo, agrupados em dois conjuntos com nome de movimento na matemática do xadrez (Grande Roque, Pequeno Roque), somos levados a passear pelas Grutas de Mira de Aire, Lisboa, São Paulo, Londres, Veneza, Cabo Verde, Índia (mais imaginária que real), Los Angeles e, por razões evidentes, Porto e Évora (grande parte dos poemas resultaram da participação do autor em residências de criação nessas cidades). Às referências geográficas juntam-se referências literárias (Pasolini, Cioran, Sá-Carneiro, Sá de Miranda, Llansol, etc.) e musicais (Tom Waits, Cohen, João Gilberto, Sei Miguel, Gaiteiros de Lisboa, Bob Dylan, Fausto, entre outros). É deste emaranhado referencial que os poemas resultam, numa produção que somos levados a crer ter tanto de diarística como de ecfrásica (palavrões que, reconhecemos, nada dizem e pouco acrescentam). Sucede que há tiques irritantes nestes poemas que se repetem mais do que seria desejável, como a tendência para o trocadilho fácil («emudecida detonação que alimenta ainda / esta pena (tenho tanta)»), para a aliteração forçada («ideio a ideia», «bárbaro, barbado», «estrófico e catastrófico», «do acto / e do facto»), para o jogo de significados que a língua sugere e ao qual o poeta não resiste. A poesia torna-se demasiadas vezes objecto de si própria, o fazer do poema, o motivo para o poema, a construção do poema, quando, na realidade, o poema resulta mais cativante quando se liberta da poesia e nos oferece as paisagens dentro das quais o poeta deambula. Até porque Miguel-Manso é um exímio observador, não havendo necessidade nenhuma da (anti)pose que muitos poemas (ou parte deles) denuncia. Há um poema onde, pela adjectivação excessiva, se torna deveras... chato... isso a que aqui chamamos (anti)pose. É o poema Apanhado em Fragrante, cujo título é já de si um trocadilho dispensável. Veja-se agora a adjectivação: «melancólica bicicleta», «frios provinciais», «incalculável prejuízo dos versos», «laranjeiras flóreas», «imperceptível alegria», «fiada odorífera», «lumaréu de limoeiros, «caiados muros», «imaturo homem»… Tudo no mesmo poema, tal doce enjoativo. Ora, não são apenas os arcaísmos nem as anástrofes nem os hipérbatos nem o tom classicista que, ainda que numa toada lúdica, prejudicam os poemas. É a enfatuação do discurso. Esta desaparece no livro Um Lugar a Menos, colheita que tem na sua origem já não a “clausura” das residências, mas a alforria da exposição. O que há de mais cativante nestes poemas em prosa é a relação que mantêm com o espaço, ora descrevendo-o, ora desmontando-o, ora arrastando o leitor por viagens físicas e imaginárias (metafísicas?), reflexivas e memoráveis. O uso das expressões latinas alvitra uma viagem dissimulada às origens, num jogo permanente de insinuações que está longe de se esgotar no carácter meramente lúdico de alguns versos do livro anterior. Não que aqui essa inclinação esteja ausente, apenas se revela muito mais capaz de provocar no leitor a ansiedade do pensamento, inquietando, desassossegando, obrigando-o a uma espécie de expedição (peregrinação, no sentido que lhe dava Jorge de Sena) pelos terrenos agrestes da linguagem. Nestes textos, o autor coloca-se numa posição introspectiva. É algo de novo, ou pelo menos extra-ordinário, na sua poesia. Se nos poemas em verso é muito mais cativante quando descreve a “paisagem”, nestas prosas a dimensão reflexiva de Miguel-Manso adquire um sentido inusitado. É elíptico e irónico sem ser previsível, torna o sentido dos seus textos mais complexo porque a relação entre eles e a realidade deixa de ser evidente. Dialoga nas entrelinhas com outros autores (Pessanha, Rui Knopfli, Barnett Newman, Hiram Bingham - fui ver ao Google - Walt Whitman...), numa direcção interpelativa que já não é apenas a do trocadilho fácil, é a de uma busca permanente, é a da dúvida e do espanto. E logra textos com uma profundidade ontológica rara entre os da sua geração. Exemplo:

No jornal: mulher esteve nove anos morta em casa. passou quase uma década entre o momento íntimo dessa morte e o maior ou menor espavento civil (e/ou religioso) que a autorizou. A morte, que acontece sempre aos outros, precisa, idealmente, da exibição do seu resíduo: o corpo consumado. Ou então de um vestígio, notícia, um boato que seja. se ninguém acolheu a morte dessa mulher, então ela só morreu (tornou a existir) de facto, no dia em que a encontraram no chão do seu apartamento. Mais do que uma utopia, ou um hiato (uma hiatopia) o lugar e o tempo onde e em que ela desexistiu (apurados e admitidos postumamente) têm a dimensão do mito. E eis que o vocábulo apartamento atingiu ali a sua literalidade. Mas de nada, para nada, por nada e em tempo nenhum