domingo, 12 de junho de 2005

DOS CORNUDOS

O nome de Charles Fourier (1772-1837) chegou-me, pela primeira vez, montado num poema de André Breton (1896-1960). A Ode a Charles Fourier, que li na tradução de Ernesto Sampaio, é o poema de Breton que mais me impressionou até hoje. Daí que tivesse sentido necessidade de saber, aquando da primeira leitura, quem fora esse destinatário dos versos do santo padre do Surrealismo francês. Não foi fácil. Soube que o mesmo autor estava representado na célebre Antologia do Humor Negro de Breton e que um texto seu – Quadro Analítico da Corneação – fora editado pela & etc na saudosa colecção contramargem. O mesmo texto foi publicado, faz agora um ano, pela Cavalo de Ferro, em nova tradução, da responsabilidade de Hélder Guégués, e com novo título: Dos cornudos: suas espécies e tipos. Ao tratado, chamemos-lhe assim, de Fourier, acrescentaram-se nesta nova edição preciosas referências biobibliográficas e um posfácio – A Civilização dos Cornudos – assinado por Roman Pehel. Vindo a lume apenas em 1924, trata-se um inventário humorístico, mas de elevada inspiração (a)moral, que Charles Fourier redigiu com a intenção de relevar os esquemas que a natureza arquitecta para se livrar das amarras civilizacionais. A amarra aqui em causa é a do casamento, no contexto do qual o adultério aparece como a mais natural das consequências. A razão sufocadora da sociedade normalizada, moralizada, é por Fourier pertinentemente posta em causa em dois inventários de tipos de homens cornudos: Os Cornudos de Ordem Simples e Os Cornudos de Ordem Composta. Destaquemos, do primeiro inventário, o n.º 3.: «Cornudo imaginário é aquele que ainda o não é e fica desolado crendo sê-lo. Tal como o presumível, sofre do mal imaginário antes do mal real. Molière retratou-o numa das suas peças». Já do segundo inventário, que o autor não chegou a concluir, destaco o n.º 60.: «Cornudo virtuoso é o que, sendo um apaixonado por qualquer ramo das ciências ou artes, se toma de afecto por todos os mestres. Se é melómano, basta uma sopradela de gaita-de-foles para estar entre os seus favoritos e se introduzir junto da sua mulher, a quem ele recomenda calorosamente os amadores do ponto de vista da arte, enquanto ela os acolhe sob pontos de vista um pouco diferentes». O texto de Fourier, que é hoje considerado um dos autores predecessores do comunismo, parte do princípio lógico que para se ser cornudo basta estar casado. Logo, tal estado (de espírito) apenas poderá ser evitado pela renúncia a tal tipo de união. Salta à vista serem apenas os cornudos do sexo masculino aqui tratados, embora fosse intenção do autor traçar um quadro da cornadura feminina. O que me parece de maior alcance nesta obra é o elogio da natureza humana, feito à luz dos desejos que mais têm sido oprimidos no itinerário que o homem foi traçando, ao longo do seu processo de reeducação, com vista à robotização dos comportamentos. A moral não é aqui desprezada em função do riso. É antes o riso que está na base de toda a moral.

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