O que espera o leitor de um político? Que lhe minta ou que fale verdade? Se um político estiver constantemente a contradizer-se o que lhe chama o leitor? E se entre o discurso e o programa do partido que representa forem inúmeras as contradições? O que espera o leitor de um político que mente reiteradamente e se contradiz constantemente? Galo dos ventos? Exemplos? Se um político lhe disser que algumas pessoas esperam mais de 3000 dias por uma consulta, o leitor acredita? E se lhe disser que há um milhão de portugueses sem médico de família, sabendo ser esse número uma falsidade? Se o programa do partido desse político defender a privatização de hospitais, escolas, vias de comunicação e meios de transporte, entenderá o leitor a razão de ser de tais mentiras? Será para denegrir um serviço que se pretende aniquilar, de modo a lucrar com um outro, privado, que o substitua? E por que razão quererá o galo dos ventos acabar com o SNS? Saberá o leitor porquê? Se o partido do tal deputado for financiado por empresários com interesses económicos nesse domínio, ficará mais perceptível? O que pensaria o leitor se um partido resolvesse inverter o sentido do seu programa após este haver sido sufragado? Se tivesse votado nesse programa, sentir-se-ia traído? O leitor gosta de ser traído? Gosta que lhe mintam? Como avalia o leitor alguém que para defender os seus pontos de vista passa o tempo a espalhar números falsos como quem espalha brasas? E o que pensa da hipótese de remoção de ovários numa mulher que interrompa voluntariamente uma gravidez? Revê-se o leitor num partido que alberga gente que apresenta propostas destas numa convenção nacional? Quer o leitor fazer parte desse elenco que defende a castração química e chega a sonhar com a castração física, sabendo serem ambas inconstitucionais? Acha o leitor legítimo que um político se dirija ao eleitorado falando da boca para fora? E se for para insultar um homem com mais de 70 anos que começou a trabalhar aos 14? Quantos ciganos há em Portugal? 30 000, 35 000? Supõe o leitor que numa população de 10 milhões de habitantes sejam esses 0,3 ou 0,4% da população a fazer a diferença? Quanto custa ao país em impostos as fugas para offshores orientadas pelo deputado-consultor que não gosta de ciganos? O que acha o leitor de um deputado que defende o regime de exclusividade ao mesmo tempo que acumula três ordenados? Parece-lhe bem? Será coerente? Nobre de carácter? Confia o leitor num partido que tem como apoiantes e dirigentes gente envolvida em processos de branqueamento de capitais e de terrorismo bombista? Saberá o leitor quem foi o padre Maximino Barbosa de Sousa e a sua aluna Maria de Lurdes? Quem os matou? O leitor revê-se num partido que tem entre os seus principais apoiantes gente que faz a saudação nazi? O leitor tem algum filho na escola pública? E se de repente o líder de um partido defendesse o fim da escola pública, o leitor concordaria? Que hombridade haverá num político que acusa os refugiados de serem uns malandros que chegam à Europa munidos de tecnologia de ponta? O leitor já ouviu falar em Alan Kurdi? Sabe quem foi? Estará Portugal a ser tomado por marroquinos? Onde estão? Onde estão? Julgará o leitor digno de um político colocar simpatias futebolísticas acima de preocupações com o país? O leitor acha que Portugal devia sair da ONU? O que pensa o leitor de um partido com propostas que replicam leis da Alemanha nazi? O que pensa o leitor de um deputado que, em menos de 24 horas, vota de três maneiras diferentes uma mesma proposta? E de um partido que tem como vice-presidente alguém que escreve e publica artigos a defender Hitler e Mussolini? O leitor simpatiza com o Papa Francisco? Parece-lhe compatível essa simpatia com esta estirpe ideológica? O leitor concorda com propostas que favorecem os mais ricos e penalizam os menos favorecidos? O leitor é eleitor? Votaria num político que se candidata à presidência da república prometendo rasgar uma Constituição que está obrigado a defender, cumprir e fazer cumprir? O leitor sabe o que é um gang? Estará o leitor eleitor disposto a entregar o destino do seu país a um gang?
antologia do esquecimento
quarta-feira, 20 de janeiro de 2021
O DETERMINISMO
O determinismo exerce uma forte atracção emocional:
bastante curiosamente, pode atrair o mesmo tipo de espírito que acredita nas
possibilidades ilimitadas da acção de planear. O determinismo parece dar grande
alento e, por vezes, assomos de energia àqueles que são capazes de se convencer
a si próprios de que o que querem que aconteça vai de qualquer modo acontecer,
e àqueles que gostam de sentir que vão ao sabor da maré: e todos temos ouvido
dizer, de vez em quando, que a liberdade se encontra unicamente na aceitação da
necessidade — embora também seja próprio do intelecto humano suspeitar que isto
esconde, algures, um ardil. Devia, porém, ser igualmente óbvio para toda a
gente, devido à experiência pessoal, que não há nenhuma fórmula para um
vaticínio infalível; que tudo o que fazemos terá algumas consequências
imprevistas; que os nossos empreendimentos mais bem fundamentados terminam
frequentemente em desastre, e que por vezes os nossos disparates mais absurdos têm os resultados mais felizes; que
toda a reforma conduz a novos abusos que não podiam ter sido preditos, mas que
não justificam necessariamente dizermos que a reforma não devia ter sido
executada; que temos de nos adaptar constantemente ao novo e ao inesperado; e
que sempre nos movemos se não no escuro, num crepúsculo, com visão imperfeita,
trocando constantemente um objecto por outro, imaginando obstáculos distantes onde
nenhum existe e ignorantes de alguma ameaça fatal ai à mão. Isto é Endless
Adventure, de Frederick Scott Oliver.
T. S. Eliot, de uma conferência intitulada A Literatura da Política, proferida durante um Almoço Literário organizado pela London Conservative Union, em 19 de Abril de 1955, in Ensaios Escolhidos, selecção, tradução e notas de Maria Adelaide Ramos, Edições Cotovia, 1992, p. 208.
terça-feira, 19 de janeiro de 2021
HIS BLOOD’S IN ME (1999)
Que haverá de ti no meu sangue?
Arrisco a hipótese hereditária, mas logo se impõe a ideia de que as
circunstâncias desenham a coluna. As tuas foram mais agrestes, reconheço. Os
cientistas têm percentagens para estas coisas. Olhando para o nosso caso, diria
que nada de vocação, um cibo de valores e talvez mais do que possa parecer
daquela timidez a que alguns chamam complexo de inferioridade por serem heróis
e nunca haverem experimentado a acidez e a injustiça e o opróbrio da soberba a
perfurar os pés como um ferro enferrujado. Vem de longe. Crescer pobre em terra
de porcos incube frustrações, um ódio que se enterra na lama sem vontade de
vingança. Acerca de valores, assumamos
pouco mais do que uma carcaça de intolerância ao erro que eu aprendi a mastigar
mais para te incomodar do que para me resolver. Chamar-se-á o quê a isto? Obstinação?
Nunca te perguntei o que pensarás de mim, que julgarás das opções que tomei na
vida ou das que fui levado a tomar por me deixar levar pela corrente de paixões
momentâneas. É assim e só damos por isso quando, já em alto mar, temos de esbracejar
em busca de um pouco de terra onde possamos voltar a sentir-nos verticais. A
verdade é que, por vezes, gostava de poder perguntar-te se já ouviste o álbum
do Eric Mingus, mas noutras ocasiões dou graças a Deus por nem sequer fazeres
ideia do que a música possa ser.
segunda-feira, 18 de janeiro de 2021
CILA E CARÍBDES
Lembro-me de uma experiência de alguns anos atrás, quando concordei em fazer uma conferência em Nice. Ao trocar correspondência com o Presidente da colectividade a que devia dirigir a palavra observei que, não sabendo qual de duas espécies de auditório esperar, me encontrava relativamente à escolha de um tema entre Cila e Caríbdes. Antes de ter decidido sobre o que falar, foi anunciado em Nice que ia falar sobre o tema de Cila e Caríbdes. Depois de um momento de consternação pensei — E por que não? Podem tratar-se quase todos os tópicos sob esse título. Cila e Caríbdes é deliciosamente geral, e desperta a curiosidade pelo seu carácter vago.
T. S. Eliot, de uma conferência intitulada A Literatura da Política, proferida durante um Almoço Literário organizado pela London Conservative Union, em 19 de Abril de 1955, in Ensaios Escolhidos, selecção, tradução e notas de Maria Adelaide Ramos, Edições Cotovia, 1992, p. 206.
domingo, 17 de janeiro de 2021
HAPPY FEET (1938)
Naquele tempo era diferente, as ruas circulavam a duzentos à hora, os virtuosos estavam crivados de vícios, a generosidade era ambidestra, assim como a maldade, agora divide-se tudo entre cálculo e consequência, naquele tempo não, o silêncio era ofensivo, o ruído uma ameaça, então os anjos desciam à terra, pintados de negro, e inventavam-se palavras para movimentos como hoje as temos para cores, era um tempo que curava a cegueira com música, e os teclados tinham relevos para que os músicos aprendessem a tocar em braille, educando assim os dedos para uma agilidade semelhante ao voo, os protagonistas daqueles anos ousavam representar sem rede, confrontavam as leis que infringiam a natureza selvagem das coisas, porque eram feitos de leis espontâneas e imprevisíveis, tinham o requinte das presas que escapam aos predadores. Ou talvez não fosse nada disto, mas a gente ouve um solo de Art Tatum e quer acreditar que sim. Que sentido faz uma vida sem o ideal tonificante dos mitos?
sábado, 16 de janeiro de 2021
PORTUGUESES DE BEM
2) Paulo Corte-Real Mirpuri – Empresário que liderou a Air Luxor (que acabou sufocada em dívidas, tendo os bens desaparecido misteriosamente), filantropo.
3) Francisco Sá Nogueira, gerente da área turística da Helibravo. Ex-presidente da antiga holding do Grupo Espírito Santo para as actividades de agências de viagens e operador turístico, a Espírito Santo Viagens.
4) Jorge Ortigão Costa – Empresário e produtor agrícola, amante de touradas (coudelaria com o mesmo nome), cujo nome consta no Panama Papers
5) Francisco Cruz Martins – Advogado, padrinho de casamento de Ventura, também citado no Panama Papers, administrador de imobiliárias pertencentes à Breteuil Strategies (sediada no Chipre, reconhecido paraíso fiscal).
6) Salvador Posser de Andrade – Co-administrador da antiga empresa imobiliária do Grupo Espírito Santo, e administrador da Coporgest.
7) Jaime Nogueira Pinto – histórico militante fascista, “o grande pai da extrema-direita portuguesa desde o fim da ditadura salazarista” (Steven Forti)
8) Eduardo Amaral Neto – Empresário com ligações à Chamusca. Dono da sociedade de consultoria Gavião Real.
9) César de Paço – empresário, ex-cônsul honorário de Portugal na Florida (cargo do qual foi exonerado), dono da multinacional Sumit Nutritionals, fanático da Defesa. Pelo Código Penal de André Ventura, hoje seria “maneta” porque roubou um relógio de 7.500€.
10) Helder Fragueiro Antunes – Empresário, Engenheiro, ex-piloto de corridas. CEO da Global Data Sentinel. Parceiro de César do Paço em alguns negócios, primo de Miguel Frasquilho (chairman da TAP).
11) Pedro Pessanha – Militar na Reserva, gestor imobiliário. Assessorou vários negócios do BES Angola (BESA), hoje Banco Económico.
12) Fernando Jorge Serra Rodrigues – Empresário Têxtil (sofás). Salazarista devoto, defensor da ditadura fascista do Estado Novo e divulgador de propaganda nas redes sociais. É o famoso autor da saudação Nazi no jantar de apoio a André Ventura no Porto.
13) Igreja Maná (de Jorge Tadeu) – detentora dos canais de televisão Kuriakos TV, TV Maná e ManáSat 1, tem dado especial destaque a André Ventura nos seus canais promovendo-o como “defensor da moral e dos bons costumes cristãos contra gays e outras modernices antinatureza e antifamílias”.
14) Luis Filipe Graça - sócio na mediadora Elegantalfabeto. Foi angariador imobiliário no segmento premium. Ex-dirigente do PNR e do Movimento de Oposição Nacional, embrião dos neonazis da Nova Ordem Social, tendo aparecido em vídeos com skinheads em protestos.
15) Cristina Vieira – Cartomante na TVI, antiga directora de Operações da LibertaGia, sociedade que a partir das Bahamas terá lesado perto de 2 milhões de clientes através de um esquema fraudulento de pirâmide.
16) José Lourenço – Consultor Imobiliário. VP na “Fundação” dePaço. Acusado pelo ex-dirigente Nacional do Chega (Miguel Tristão) de fazer entrar dinheiro de formas “estranhas” no partido. O seu nome consta da lista pública de devedores fiscais em Portugal. Amigo do espião Silva Carvalho “com muito gosto”.
17) António Tanger Correia – ex-diplomata, adjunto de Freitas do Amaral durante o governo de Sá Carneiro. Suspenso de várias funções devido a VÁRIAS irregularidades na gestão da embaixada em Vilnius: lesou o Estado em 348.270€ em IVA mais 411.181€/ano em despesas pessoais
18) Paulo Lalanda de Castro – Empresário. Referenciado nos Panama Papers, Operação Marquês e nos Vistos Gold. Acusado de corrupção no processo Máfia do Sangues. Dono da Intelligent Life Solutions, empresa que André Ventura ajudou a ilibar no pagamento de mais de 1 milhão de Euros em IVA, enquanto Inspector Tributário.
19) Armando Batista – Comandante da Delegação da Cruz Vermelha da Amadora. Defende a criminalização e deportação de imigrantes ilegais. Promoveu petições contra o Pacto de Migração e Asilo da CE, mas afirma não ser xenófobo. Ligação às forças e aos serviços de Segurança.
20) Arlindo Fernandes – Empresário, admirador de Salazar, ex-dirigente e breve deputado do CDS. Acusado em 2019 pelo MP de burla qualificada, falsificação de documentos e branqueamento de capitais em negócios imobiliários. Ameaçou de morte João Ferreira, outro dirigente do Chega.
21) Manuel de Carvalho – O “Miterrand” de Armamar. Empresário, cônsul honorário da Costa do Marfim, antigo deputado e ex-vereador do CDS (Viseu). Em 2012 foi declaro insolvente por dividas à banca, tendo cumprido o prazo da exoneração do passivo.
22) Diogo Pacheco de Amorim – antigo ideólogo do PND, passou pelo MIRN e militou no MDLP. O MDLP seria responsável por espalhar o terror em várias zonas do país, particularmente no norte do país, onde assassinou à bomba um jovem Padre, Maximino Barbosa de Sousa, e a estudante universitária Maria de Lurdes. Em 1999, após um longo e tortuoso processo judicial, o MDLP foi condenado pelo atentado, apesar de os seus mandantes e executores não terem sido condenados.
sexta-feira, 15 de janeiro de 2021
UM CAVALO SENTADO À PORTA
quinta-feira, 14 de janeiro de 2021
ALICE’S WONDERLAND (1959)
Esta mula não é do sul
Mas esta mula sabe algumas coisas
Que aprendeu de boca-a-boca
Mas esta mula pode estar a trabalhar de forma hábil
Aprendendo e planeando e esperando
Por um certo tipo sagrado de dia
Um dia em que queimar fachos e cruzes não é brincadeira de crianças
Mas um louco na sua mais ardente floração
Cuja paixão é a imperfeição e o seu noivo mais brilhante
Acalma com contemplação
O todo ardente e a coxa dorida
A tua teimosia mantém-se viva
E a ansiedade prestes a morrer
Liberdade para a tua mãezinha
Liberdade para os teus confrades
Mas nenhuma liberdade para mim
quarta-feira, 13 de janeiro de 2021
DIA DE PORTUGAL
As missas são essenciais, a cultura é acessória. Retire o
leitor as suas conclusões. Eu proponho que se desassocie o nome de Camões do
dia de Portugal. Camões não é essencial. Portugal também não deve ser, mas
assenta-lhe melhor o nome de um padre do que o de um poeta. Sugiro, em
alternativa, que passemos a comemorar o Dia de Padre Borga, de Portugal e das
Comunidades Confinadas Portuguesas.
Desloquemos o teatro para uma igreja, vendamos poesia ao postigo. A ideia de um Diga 33 na Igreja de Nossa Senhora da Conceição não está posta de lado. Convidamos a poeta Tolentina, que fará o favor de não ler poemas seus. Convocamos Quitéria a passar um cestinho de mão em mão, para que possam expurgar os vossos pecados acudindo a actores, encenadores, técnicos, escritores. Teremos hóstias de sonetos, o corpo de Deus cortado às estrofes. Em nome do poema e do verso e do espírito elegíaco, ai mãe.
terça-feira, 12 de janeiro de 2021
BIRDLAND BLUES (1958)
Talvez supondo-se finalmente a salvo da prisão do mundo, um pardal encontrou maneira de chegar ao hall do prédio. Imagino-o a escavar um túnel com o bico, em segredo, durante a noite, do lado de fora, mas o desespero com que batia as asas de parede a parede fez-me descer à terra. Não tendo como auxiliá-lo, recostei-me a ouvi-lo como se estivesse a ouvir Bud Plays Bird. Não se está bem em lado nenhum. Lá fora, o ar ameaça-nos com dentaduras de medo. Cá dentro, a alma treme de frio. Valha-nos o mal dos outros. Bud Powell, por exemplo, foi-se aos 41, tuberculoso, alcoólico e subnutrido. Experimentou, sem efeito, a terapia de electrochoques, passou parte da vida confinado e, quando parecia livre, era como um pardal a voar de parede em parede. Esquizofrenia, lê-se no diagnóstico. Difícil de acreditar quando o ouvimos trautear o toque dos dedos no teclado, como Deus a tocar em Adão no fresco de Michelangelo. Eu tenho 46 e uma broca de papel para perfurar os dentes do medo. O diagnóstico é incerto, mas o mais provável é tratar-se de corpo sem alma.
segunda-feira, 11 de janeiro de 2021
UM POEMA DE MIGUEL CARDOSO
domingo, 10 de janeiro de 2021
SONETOS DA CASA AMARELA

sábado, 9 de janeiro de 2021
TONES FOR JOAN’S BONES (1966)
Agora que voltam a falar em
confinamento, só não o lamentarei se Chick Corea retomar os workshops nas redes sociais. Foi do
melhor que me aconteceu no ano que passou. Abria uma garrafa de vinho, e
cigarro sobre cigarro ficava a ouvi-lo a cores dando
graças aos engenheiros das novas tecnologias que tanto abomino. Acusar-me-ão de
contradições das quais não tenho como eximir-me, nada que me afecte
especialmente a coluna vertebral. O que agora realmente importa definir é se
comecei a ouvir Chick Corea como acompanhante do trompetista Blue Mitchell ou
em dueto com Bobby McFerrin. São todos de uma elegância inexcedível, exactamente
o inverso deste mundo boçal e cavernícola de capitólios invadidos. Entretanto, para
desenjoar de bípedes, visitei um canil e adoptei uma cadelinha de pelo ocre com
peito e patas brancas. Vou chamar-lhe Nala, como a personagem de O Rei Leão. Está enroscada numas mantas,
protegida do frio, a dormir com invejável serenidade.
sexta-feira, 8 de janeiro de 2021
UM SONETO DE ANTÓNIO CABRITA
quinta-feira, 7 de janeiro de 2021
O REINO DA FANTASIA
O negócio do século, deste início de século, é ser popular nas redes sociais. Tenho-me impressionado com a quantidade de gente que surge a declarar-se influencer ou instagrammer, profissões que desconhecia até há muito pouco tempo haver sido informado da sua existência. Entretanto venho reparando em fenómenos curiosíssimos onde as diversas dimensões da vida pública se misturam com a vida privada num contexto meramente publicitário. A ideia é a pessoa vender-se a si mesma simulando que este ou aquele acessório é parte integrante de si. Logo, ao vender-se a si mesma vende também o produto que traz acoplado. O Instagram é a idealização final deste fenómeno, um álbum de fotografias onde o mundo surge estetizado por aquilo que cada um julga ser o melhor se si: corpos tonificados, casas bem decoradas, grandes carros, paisagens idílicas, bons restaurantes, poemas belíssimos (aos poemas ninguém liga, são flores para entreter meia dúzia de gatos pingados). Tudo é belo e estilo e saudável no Instagram, pelo que as marcas empenham-se na penetração desse território. É de lei as marcas serem belas e saudáveis e até comoventes, no sentido de sentimentais.
Quem fala de marcas e de acessórios fala de políticas, de ideais, ou talvez seja mais exacto dizer pseudo-políticas e pseudo-ideais. Porque o único ideal neste domínio é o da extrema popularidade e a única política é a da visualização massiva, de modo a rentabilizar, com likes, reacções, visualizações, e, consequentemente, com dinheiro, a oferta que se faz de si mesmo ao mundo. No fundo, o que se comercializa no reinado da fantasia, o da popularidade virtual-real, é uma identidade. Quanto mais estúpido, mais engraçado. O riso vende. Quanto mais violento, mais atractivo. A crueldade gera curiosidade. Quanto mais tonificado, mais apetecível. O culto do corpo resume padrões de beleza. As massas vão atrás, atraídas por tendências para as quais contribui fortemente a utilização de bots (web robot, aplicação de software para simular acções humanas), ou seja, por “movimentos de massas”, “ondas e modas”, na verdade inexistentes. As modas sempre se alimentaram a partir do efeito bola de neve. O que sucede agora é a formação da bola de neve ser impulsionada por uma tempestade falsa, inventada, gerada pelos tais bots.
Não sei como lidar com isto, mas temo que pela indiferença e pela ignorância não melhoremos nada, pois é precisamente a ignorância o que mais alimenta este tipo de fenómenos. Tudo isto tem raízes sociológicas profundas, que nos levariam aos tops in/out das revistas de moda, às passadeiras vermelhas, à vaidade promovida pelas sociedades consumistas, à espectacularização dos sentimentos, ao “império do efémero” e à “era do vazio” que Gilles Lipovetsky vem reflectindo há muito. O ideal seria que as massas deixassem de ligar a modas, de actuar por imitação, que cada indivíduo se revalorizasse e fortalecesse com escudos protectores feitos de desconfiança e espírito crítico, mas isto está nos antípodas da natureza das massas.
Os efeitos são visíveis: os temas esgotam-se em si mesmos (não perduram senão para lá do anúncio que causa sensação e logo esmorece), o que leva a uma injecção constante de assuntos no espaço publicitário tendo em vista a manutenção da popularidade (veja-se o Tweeter, a velocidade alucinante a que a realidade aí decorre sem qualquer preocupação de aprofundamento de um debate público); a capacidade de debater o que quer que seja é traída pela assimilação bipolar dos factos, os quais ora geram muito entusiasmo, ora deprimem profundamente; a incredulidade toma conta do espaço público, pois tudo parece encenado, falso, irreal (normalmente diz-se surreal); a relevância dos factos mede-se pelo impacto que geram e não pela gravidade que têm, pelo que uma simples troca de “bocas” entre duas figuras públicas é mais comentada do que qualquer notícia sobre a fome ou a escravidão no mundo; os grandes e tradicionais males da humanidade vulgarizam-se a ponto de perderem qualquer interesse; o espaço público convertido em rede transforma-se num circo onde só vale o entretenimento, preenchendo-se a agenda com não-assuntos e peças insólitas.
Que importa se a carne que comemos ou a roupa que vestimos são produzidos com trabalho escravo? José Castelo Branco e André Ventura trocam mimos no Twitter. Bora ver?
quarta-feira, 6 de janeiro de 2021
DIRTY JOHN