segunda-feira, 22 de julho de 2024

DE MÁ CONDIÇÃO

 


Calhou assim, não foi propositado. Chegou-nos ontem, Dia Mundial da Árvore e da Poesia, este segundo volume da Colecção Insónia. O primeiro foi "A Dança das Feridas". Esperámos 13 anos por ele, eu, a Maria João Lopes Fernandes e o Pedro Serpa.
 
Tal como aconteceu no passado, também deste volume não farei apresentações públicas nem distribuição pelas livrarias. Trata-se de uma edição única, minha e da Maria João - autora das pinturas na capa e no interior, originais concebidos para este efeito -, que em nenhuma circunstância deverá ser objecto de qualquer reedição.
 
Quem tiver interesse num exemplar, poderá contactar-nos, a mim ou à Maria João, por Messenger (Facebook, Instagram) ou email. O meu email é fialho.henrique@gmail.com. O valor de capa, com portes incluídos, é 10€. São 78 poemas e 9 reproduções de pinturas da Maria João Lopes Fernandes. O design e a composição é do Pedro Serpa.
 
Em memória de minha mãe, Clarisse Maria Tavares Bento.
 
Saúde.

A ÚNICA PALAVRA

 
Não permitirei que o ódio me contamine
corroendo o ânimo tão dificilmente conquistado
de uma vida lado a lado
com a perda e a vitória
com o fracasso e o sucesso
com a morte
com a vã glória de julgar alcançados
e decididamente instituídos
os direitos de quem sonha e constrói
de quem por paixão a liberdade emenda
a cada acto de inspirar expirar
o fim a que se propõe
 
Não
Não permitirei que escavem à minha volta
a voragem do desespero
fazendo-me crer no mal absoluto
de coisas tão concretas como o sangue
empurrando-me para onde tombam desarmados
em trincheiras anónimas
e valas comuns
aqueles a quem deus cobrou o pranto
de uma fúria sem fins
 
Porque tudo neles é vazio e oco
apocalíptico desprezo e raiva
tudo neles tolhido pelo medo
pelo pânico que o arco-íris institui
no olhar perdido de quem teme
tudo neles treme
enquanto em mim palpita o desejo de estar
onde o brota o sonho e a utopia espreita
 
Não permitirei que o ódio contamine
a vontade com que declaro amor
a tudo quanto no mundo aclara o pensamento
o pássaro puro na árvore despida
desta luz que diariamente desperta do sono
as manhãs de inverno
o vento a silvar nas noites de verão
espalhando sementes pelos pântanos da primavera
espalhando pela terra flores caídas de outono
que crepitam ao longo da caminhada
 
Não
Não permitirei que a cada passo
o olhar furtivo das sombras ameace
por cima dos ombros o peso da desigualdade
 
Porque eu só espero da vida o bem de vivê-la
sem medo
a sós comigo na companhia dos outros
ofertando e colhendo
partilhando e estremecendo
a cada minuto de espanto
no silêncio das águas mergulhado
a respiração boca a boca
da única palavra digna de ser pronunciada
essa mesma que agora calo
por não pretender conspurcá-la
 
quarta-feira, 31 de Outubro de 2018

domingo, 21 de julho de 2024

DOMESTICADORA DE GIRASSÓIS

 


Os 14 contos de Domesticadora de Girassóis, mais extensos do que é habitual neste autor, exploram universos fantasmagóricos com personagens que tentam equilibrar-se entre o real e o imaginário. O que há de anómalo e de paradoxal nas situações recriadas encontra na multiplicidade formal, que vai da ficção narrativa ao poético, da crónica ao drama, do relato autobiográfico à prosa ensaística e ao diário, vias de expressão para seres cuja existência está em permanente conflito com um mundo onde a separação entre caos e ordem perdeu qualquer sentido.

236 páginas
Maio de 2024
 

Venda directa – pedidos para: companhiadasilhas.lda@gmail.com
 
Também disponível 



PARA ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER

 


"Il faut que l' herbe pousse et
que les enfans meurent"

Victor Hugo

É preciso que as crianças morram e as ervas cresçam
que em todas as palavras uma criança morta
conduza pela mão o corpo ao corpo do seu corpo
e que a casa para sempre seja só esta e esta seja outra

É preciso de noite entrar no quarto devagar
à luz da morte que incendeia o pó de cada ombro
onde pulsam os pássaros cegos cujos vultos de súbito
a música dispara na concha de assombro de uma onda

É preciso deixar subir as lágrimas antigas
ao mais nosso e só único dos rostos que não fomos
e se perdeu de febre irmão dos lobos que alucinam
ou nunca dormem por excesso de fadiga a vida toda

É preciso por fim soltar a eternidade ao largo
do mar que nos procura a cada instante em branco
enquanto despes da última ave o voo da tua carne
e despertam as crianças mortas nas ervas do meu sangue

Miguel Serras Pereira (n. 1949), de O Mar a Bordo do Último Navio (1998). in  À Tona do Vazio & Reprise, Barricada de Livros, 2.ª edição, 2022, pp. 187-188. «Serras Pereira aparenta ser um poeta do renascimento après la lettre, dono de um burilamento lexical de que não está arredado o gosto pela sintaxe dita latina, invertida. Para naturalizar e dar coloquialidade à voz do sujeito poético, esta sintaxe elimina quaisquer marcas diacríticas, apostando na ambiguidade e apelando assim à atenção do leitor no que toca à prosódia e ao ritmo. Em primeiro lugar, de referir como o campo lexical escolhido o aproxima ainda mais desse universo renascentista com o recurso platónico à temática do olhar. Por outro lado, surgem aqui, nestes curtos poemas, desdobramentos de vocabulário que se resumem no binómio morte-esquecimento por oposição a outro (vida-memória), onde as palavras substantivas gravitam à volta ora de um (noite, vazio) ora de outro (dia, horas)» (Ricardo Marques, idem).

sábado, 20 de julho de 2024

AUTO-RETRATOS

 
Poucas coisas há que me desagradem mais do que tirar fotografias. As redes sociais estão cheias de gente que adora fotografar-se, o que para mim é o equivalente à autoflagelação. O auto-retrato é coisa muito séria, não entendo como possa ser tratado com tanta ligeireza. Gosto particularmente da malta que se fotografa a ver-se ao espelho, sobretudo com rostos inexpressivos e em poses sinuosas. A malta que fotografa os glúteos também tem piada, é toda uma outra dimensão do auto-retrato.

BALEIA

 


Uma baleia leva tempo a desviver, a desbelecer, enquanto a carne é aprtilhada por caranguejos, polvos, tubarões, enquanto a gordura escorre dos ossos. Precisamos sempre de alguma coisa que os outros trazem consigo, não é? A carcaça da baleia em decomposição é um novo ecossistema, uma máquina do tempo, onde outras espécies evoluem. Pensem em mim como uma baleia, mas agora uma baleia viva, contem comigo longa, esguia, varramo o horizonte à procura do jato que vou soltar.
Não é água, é ar quente, condensa-se ao encontrar o frio da atmosfera, uma nuvem de gotinhas de água, podia ser neve se estivesse mais frio.
Quero ser a baleia, mas quero ser uma baleia que neva, ou uma chávena de chá rachada que passa a ser vaso, ou uma pedra que fala.
Às vezes a melhor coisa que podemos fazer pelos outros é fazer qualquer coisa por nós.

In Unraveling, Ana Vitorino, Carlos Costa, Mafalda Banquart, com ilustrações de Sara Allen, Companhia das Ilhas, Abril de 2024, s/p.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

E O CORAÇÃO DE SOSLAIO A TODO O CUSTO

 


23.
 
Ouvi, certa vez, um poeta,
ou um velho desconcertado numa película
(coisas que por vezes deixo confundirem-se na memória),
dizer que o seu coração tinha 85 anos,
que já vivera muitos desgostos de amor,
que já acelerara incontáveis vezes o passo
por uma mulher desejada,
por uma paixão certeira para um consolo impossível,
não sendo justo pedir-lhe muitos mais anos.
 
O fim chegaria, assim, triunfante
a soar o alarme para novos começos,
que o poema ou o velho ou nós mesmos,
não veríamos,
não estaríamos cá para ver,
porque não nos competiria mais estar cá.
O que francamente recebo como a doce oferta da morte,
concebendo a vida, tempo apaixonado,
e se for de outra forma, que se acabe, já.
 
Nunca mais pensei no tempo que nos resta
sem me lembrar do pequeno coração vigoroso
que dói, grita, vacila, entristece,
se alegra, sem saber que se cerca de esperanças vãs.
Pequeno coração que se vai e que se vem,
sem por ele darmos senão no alarde da eternidade.
E no fim de contas,
não podemos pedir tanto mais ao amor
que, bombeando a vida, nos faz mesmo esquecer
a sua imensamente injustiçada adolescência.
 
Maria Brás Ferreira (n. 1998), in E o Coração de Soslaio a Todo o Custo, Officium Lectionis, 2024, p. 40. Como em muitos outros poetas da sua geração, a formação académica na área da literatura confere-lhe ferramentas que contribuem para um domínio técnico da linguagem que redunda num complexo lexical urdido em favor de imagens intimistas e amiudadamente enigmáticas. O erotismo mais ou menos patente em alguns poemas abre-se a paisagens barrocas, por vezes de luto, mas contidas na exposição de afectos, emoções, sentimentos. Há uma racionalidade que se impõe nestes poemas que os desvia da expressão sensível, mesmo quando o ponto de partida é o corpo e os seus sentidos, mormente o olhar, centrando o discurso numa imagética cuidadosa, preferencialmente cifrada por misteriosas associações vocabulares. António Ramos Rosa e Fiama Hasse Pais Brandão serão, porventura, as vozes com que mais esta poesia se afina.

TEATRO FILOSÓFICO

 


Pode fazer-se bom teatro com a filosofia? Em que condições pode haver um teatro filosófico?
 
A expressão «teatro filosófico» desagrada-me, como também as expressões «teatro político» ou «teatro psicológico», ou mesmo «teatro épico». Compreendo as diferenças entre comédia e tragédia, mas, por outro lado, não me parece que seja pertinente adornar a palavra «teatro» com qualquer adjectivo. Nem sequer, diga-se de passagem, admito as expressões «filosofia das matemáticas» ou «filosofia política» ou «filosofia estética»… São categorias da Universidade, e a filosofia, idealmente, para recuperar uma distinção de Lacan, é o discurso do Mestre, não o discurso da Universidade. Em filosofia não contam senão os grandes filósofos, sem adjectivos de qualquer tipo. Isto vale também para o teatro. Dito isto, a filosofia pode ser perfeitamente um dos materiais do teatro. É claramente o caso do teatro de Goethe, de Schiller ou de Lessing. Há bastante filosofia em algumas obras de Marivaux e muita nas maiores de Pirandello ou de Ibsen. É também o caso, evidentemente, do teatro de Sartre, ou do meu. E o seu Projet Luciole, a peça de teatro que você concebeu e encenou, querido amigo, não faz escutar em cena, sem que a interpretação propriamente teatral desapareça minimamente, numerosos textos de proveniência puramente filosófica?

Alain Badiou en diálogo con Nicolas Truong, Elogio del Teatro, traducción de Idoia Quintana, prólogo de María Folguera, Continta Me Tienes, Madrid, Marzo de 2016. Versão de HMBF.

quinta-feira, 18 de julho de 2024

CIDADES DE BRONZE

 


(...)

KORE - O que queres dizer com isso? Foi o primeiro rei de Portugal.
GALATEIA - Mas a mãe dele, a D. Teresa, já se intitulava rainha de Portugal.
KORE - Mas ele é que fundou Portugal!
GALATEIA - E sabes como, sabes?  Entrava às escondidas nos castelos mouros e matava toda a gente que estava a dormir. Isso é cá de uma valentia!
KORE - Mas eram mouros, Galateia!
GALATEIA - Eram menos pessoas por isso? Não tinham direito a um combate justo? Sempre que ele enfrentou exércitos cara a cara, perdeu!
KORE - Menos em Ourique.
GALATEIA - Isso é uma lenda que nunca ninguém provou! E sabes o que fazia aos súbditos?Aos portugueses, sabes? Está nas crónicas: quando os visitava, enquanto o homem fazia o jantar para o rei, o teu Afonso... raptava-lhe a mulher.
KORE - A sério? Mas... Mas continua a ser o fundador de Portugal, o exemplo para...
GALATEIA - Um violador, assaltante, assassino à traição, que rompeu todos os tratados e acordos com que se comprometeu é um exemplo para... o futuro?

(...)

Carlos Costa, Jorge Palinhos, in Cidades de Bronze, Companhia das Ilhas, Abril de 2024, pp. 28-29.

TRUÍSMO

 
"Os turistas de Lisboa já não querem saber dos lisboetas. Não dão pela falta deles. Tanto poderiam estar em Berlim, ou Rabat, ou Paris.
Os turistas de Lisboa já vêm ver a Lisboa dos turistas. Vêm ver-se a si próprios, num cenário luminoso e quentinho com empregados simpáticos que falam inglês."

Miguel Esteves Cardoso, no Público

JOVEM

 
O segurança do Centro de Saúde tratou-me por jovem, o que não estranhei ao olhar à minha volta. Agradeci-lhe a simpatia.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

VEM NO PÚBLICO

 
"A Amiga Genial, de Elena Ferrante, é o melhor livro do século XXI." 

Eu cá não faço a mínima ideia de como é que se aferem tais conclusões, deve ser através do ChatGPT ou de leitores-máquina que leram tudo o que se publicou por aí nestes primeiros 24 do XXI. Também gostava de saber se há algum título português na lista, matéria que a notícia deixa por esclarecer. O que é uma chatice, com Feiras do Livro de Lisboa cada vez mais extensas e tantos leitores ávidos de boa literatura como a da Senhora Dona Helena Sacadura Cabral e afins. Seja como for, uma coisa é certa: do melhor livro do século II a.C. já ninguém se lembra.

COPIADO DE GUNNAR EKELÖF

Qual considera ser a sua missão na vida?
Encontrar missão que justifique o esforço.
Quais as suas convicções políticas?
Amem-se uns aos outros, deixem-me
em paz. Não gosto de orgias.
A sua opinião em religião - se a tem?
Só faz sentido nos cemitérios.
O que procura nas pessoas? A verdade,
isto é, o medo, ou seja, solidão, talvez
um pouco de ódio como sal no tomate,
mas para ser sincero o que mais procuro
nas pessoas é distância, queria ser
insecto, um plácido e anódino insecto,
ou árvore milenar no centro inacessível
da floresta, gelo, pedra, pura divagação.
O que procura nos livros? Profundidade filosófica?
Vastidão? Elevação? Épica? Lírica?
Procuro um acelerador do tempo.
Qual é a coisa mais bela que conhece?
Não responderei por precaução, sempre
que partilho o belo sinto que o torno feio.
O seu hobby preferido? Dormir.
O seu pecado favorito? A confissão.
E para concluir (tão brevemente quanto possível):
Porque é que escreve? Sabe, a poesia
é o mundo a abrir os olhos. Escrevo para ver.
 
quinta-feira, 3 de Abril de 2014

terça-feira, 16 de julho de 2024

AINDA O LUGAR INCERTO DA PROCURA

 


Numa mesa intergeracional, discutíamos ontem as dificuldades da vida. Que agora é tudo mais complicado, que dantes isto, que dantes aquilo. E lá vêm as dificuldades para comprar casa, como se dantes comprar casa fosse uma facilidade. Nestas alturas lembro-me sempre de Fernando Pessoa, que viveu toda a vida entre quartos alugados e com parentes que lhe deram de guarida. Quando era miúdo, a entrada de Lisboa por Alverca era um desfile de barracas sem fim, muita gente construía a primeira habitação com as próprias mãos, outros arrendavam tugúrios onde iam desenrascando a vida. Dificuldades sempre houve, e não creio que o mundo de hoje apresente menos alternativas e soluções do que o mundo de ontem. Temos outra consciência das misérias do mundo, que nos entram por casa ao segundo, assim como nos voluntariamos para a escravidão do sucesso calculado a peso como coisa material. A vida é uma luta, sempre foi, e é bom que despertemos cedo para o sacrifício que é vivê-la lidando diariamente com injustiças que já Camões cantava há 500 anos. Ao argumento de que são as pessoas mais velhas as próprias que se queixam constatando que isto agora é muito pior, não tenho como responder senão afirmando-me cúmplice da sua velhice. Já não vou para novo, sei bem que quando tinha vinte era tudo menos pesado. Como não hão-de os velhos louvar o passado? Foi no passado que foram jovens. Agora vêem mal, perderam dentes, as pernas não respondem como respondiam, usam aparelho nos ouvidos, o tesão não ateia como ateava. É compreensível que o passado lhes seja mais leve do que o presente. Acabo de ler um livro de poesia que me interpela igualmente sobre estas e outras questões, não tão vulgares. E nele encontro versos em que esse contraste entre passado e presente se resolve sem enfatizar demasiado a fugacidade da vida. Estes, por exemplo, dizem-me muito: «Somos feitos de esquecimentos sucessivos» (p. 57). Extraordinário poema, essa “Viagem À Gaveta do Fundo” que Inês Lourenço (1942) nos oferece em “Ainda o Lugar Incerto da Procura” (Glaciar, Agosto de 2024), o seu mais recente livro de poemas. O título é revelador, sobretudo aquele advérbio de tempo que nos coloca diante de um momento de perseverança  e obstinação na busca de sentido. Em três conjuntos, a poeta de “Logros Consentidos” interroga o ofício da escrita — À Esquina do Versos —, evoca cumplicidades poéticas — Os Caules Submersos —, viaja num espaço que é o do tempo perene, através dos lugares e da arte nesses lugares semeada e colhida — Errâncias. Será, talvez, um livro de revisitação do vivido, como é de elogio à poesia, marcado por um sentimento de finitude e de despedida que nos deixa, a espaços, com a respiração tomada pelo tom elegíaco. Veja-se esta breve “Despedida”: «Terei de me despedir / das palavras que ateio em redor / de um multiplicado ser / de escrita que dá a veia ao poema / para a circulação dos sentidos / que realmente ignoro» (p. 24). A despeito da linguagem simples e despida, característica desta poesia desde a primeira hora, há uma complexidade existencial nestes poemas que me cativa e leva a reflectir nessas sombras que atravessam os tempos deixando-nos a sensação de que, independentemente das percepções subjectivas que possamos ter do que as mudanças trazem, o essencial permanece inalterado, seja ele do domínio da beleza ou do horrível, do bem ou da maldade. Empédocles dizia que na criação do mundo pelejavam o Amor e o Ódio. Talvez assim seja. O homem é um ser precário, a vida é um lugar de passagem, essas coisas triviais que se dizem são, no final, a única sentença verdadeiramente honesta perante a precariedade da vida. Não gostava que ficasse desta leitura, porém, a ideia de um livro tingido de lamentos. É exactamente o oposto. De resto, a poeta não se desvia da sua força crítica, tantas vezes incisiva e implacável. É disso exemplo também este poema curto intitulado “Lepra?”: «Nem isso, Jorge. Alguns iludidos / pelos placebos online / só preferem chagas virtuais / com muitos seguidores // E assim entorpecidos / num linguajar tautológico / vão emagrecendo / o corpo milenar da poesia» (p. 44). É a este corpo milenar que Inês Lourenço presta homenagem com os poemas deste livro marcado por horizontes lúgubres, como em “A Anunciada Certeza” se percebe de um modo evidente. Outro belíssimo poema leva o título de “As Túlipas”, nele se estabelecendo um improvável encontro entre o fim trágico de Sylvia Plath e versos guilhotinados pela grande máquina do mercado livreiro. Um poema para fechar a prosa, um dos últimos, de um livro que merece e vai certamente ser lido como um dos belos momentos da poesia portuguesa destes tempos que são os nossos e os daqueles que em nós perduram:
 
NESTE ESCURO E SINUOSO ABRIGO
 
Não sei se voltarei viva para algum lugar de escombros
que o estrépito das bombas e o zunir dos mísseis
anunciam ou se acordarei num campo de refugiados
entre tendas choros e fedor de excrementos. Às vezes
numa pequena pausa do ribombar monstruoso e longínquo
neste escuro e sinuoso abrigo, invento uma forma
de não enlouquecer; algo que ninguém
pode arrancar da minha memória, o aroma
do mansaf cozinhado pela minha mãe, esse glorioso
arroz de cordeiro assado de que o profeta
não desdenharia. E vou cismando na impossível partilha desta terra
com demasiadas pátrias, demasiados deuses, demasiados clamores
de vingança na anulação do outro. Está
escuro. Quero sair daqui. Quero um país.
 
Inês Lourenço, in “Ainda o Lugar Incerto da Procura”, Glaciar, Agosto de 2024, p. 71.


OPÇÕES DE UM ESTADO LAICO E REPUBLICANO

 


O altar-palco do Papa teve um custo total que ultrapassou os quatro milhões de euros. É a política do custo/benefício que ocupa os neurónios dos saloios que nos governam. Entretanto, o "investimento" na defesa, que é como quem diz na pança da indústria de guerra, vai aumentar para 6 mil milhões de euros até 2029.

EU É MAIS BOLOS

 
Apanho com esta no Público, dita por José Gameiro: “Sou mais feminino do que masculino na forma de sentir e pensar”. E fico a pensar sobre isto, mas não sei se de um modo feminino ou masculino. Também sinto coisas estranhas sobre esta eloquente afirmação, mas desconheço se o que sinto o sinto de forma masculina ou feminina. A minha vida é uma confusão, gostava de ter um aparelho que me medisse a feminilidade dos pensamentos e a masculinidade dos sentimentos. Isto em percentagem devia ser interessante de ser pensado e sentido, a modos que não binariamente. Ou será bianualmente?

ELOGIO DA PROVÍNCIA

 
Fui deixar o bólide para revisão. Regressei a butes. Passei pela Praça e aproveitei para comprar tangerinas, tabaco e registar o Euromilhões. Aproveitei para ir aos CTT enviar uma "Domesticadora..." a um amigo acamado. Entrei numa clínica e agendei um electrocardiograma e um ecocardiograma adiados desde Fevereiro, entrei noutra e marquei análises para amanhã. Parei num café aqui do bairro para folhear o jornal, beber a bica e uma água das Pedras. Fiz isto tudo a pé, numa manhã. Ainda não é meio dia. Um tipo anda sempre a queixar-se, mas cada vez que me lembro do que era a minha vida em Lisboa mais graças dou por me terem convencido a fixar-me nas Caldas. Um luxo, poder fazer isto tudo a pé, numa manhã, sem ninguém a chatear.

E DIETA DA IGNORÂNCIA?

 


Fartei-me de vender porcaria desta quando era livreiro. Entre eles, "A Dieta de Auschwitz", de uma tal Emília Pinheiro, nunca pegou. É compreensível. Seja como for, se querem um conselho amigo para emagrecer, comecem por não comer estas tretas. Só vão emagrecer a carteira.

segunda-feira, 15 de julho de 2024

UMAS MERDAS

 
"Ah, és escritor? Escreves o quê?" É nestas alturas que um tipo como eu mais se encolhe, e então lá sai uma resposta do género: "Escrevo umas merdas." Pronto, deixo logo de ser escritor, a credibilidade foi pelo esgoto. Onde é que já se viu um escritor dizer coisas destas, não saber o que escreve e dizer que escreve umas merdas? Isto é tão, como dizê-lo, pouco polido. Um escritor tira fotografias com a mão debaixo do queixo, não ri, ainda que sorria, frequenta salões com o desembaraço de um cortesão no tempo de Luís XIV, fala pausada e garbosamente, a elegância é o seu retiro espiritual e o estilo uma bandeira de vida. Um escritor não escreve umas merdas, leva-se a sério. Mesmo quando brinca.

ELEIÇÕES AMERICANAS

 


Este fascínio da imprensa portuguesa pelas eleições americanas, que tanta gente leva de arrasto nas redes sociais, é saloiice que nunca hei-de compreender senão à luz de uma inclinação genética para a subserviência e o beija-mão. Sobre eleições norte-americanas a minha posição é exactamente a mesma que o saudoso João César Monteiro manifestou relativamente ao público português. Vocês sabem.

domingo, 14 de julho de 2024

ÉPOCA DE SALDOS

 
"Portugal promete à NATO gastar 1250 milhões em armamento até 2029". Em nome do pai, do filho e dos espírito santo.

VEM NO PÚBLICO

 
"Uma “super-Terra”: a 48 anos-luz de nós, há um planeta que poderá ter atmosfera e até água líquida." E sem Milhazes nem Josézes Rodrigues dos Santos nem Cristinas Ferreiras nem CMTVezes nem Venturas... É só vantagens.

NA TESTA

 
Com os olhos postos nas notícias, não evito, como certamente tanta gente boa por aí, que ao pensamento venha o desejo de uma geometria exacta: era só mais um bocadinho ao lado, penso. Em tantas coisas é assim a vida. E, por vezes, até a morte. Era só mais um bocadinho ao lado.

AS PRIMEIRAS VEZES

 
Lembro-me pouco das primeiras vezes, apago-as involuntariamente, talvez por algum mecanismo interno que desconheço e não domino, porventura de autodefesa, ou quem sabe de mero desinteresse. Não me recordo do primeiro dia de trabalho, por exemplo. Se estava ansioso, nervoso, calmo, confiante. Da primeira vez que fiz amor só me lembro que estava muito bêbado, pelo que me esqueci do resto. O primeiro livro foi recalcado, creio que por vergonha. O primeiro dia de escola está-me atravessado algures entre o pensamento e a garganta, surge-me, de quando em vez, como uma imagem regurgitada. Creio que houve alguém a chorar por mim. Terá havido? A primeira vez que viajei, quando foi? E onde? De todas as primeiras vezes que podiam eventualmente ser marcantes, o primeiro beijo, o primeiro cigarro, o primeiro passo, a primeira perda, o primeiro borrão tornado público, sobra-me praticamente nada. Contam-me que tive um parto traumático, talvez se deva a isso. Não preciso de explicações, pouco me importa, mas constato que assim é porque conheço muita gente que guarda as primeiras vezes como tesouros pessoais. As minhas primeiras vezes são sombras difusas, o que me deixa espaço para reinventar a vida como bem me apetece. Quero crer que as primeiras vezes foram tão determinantes que as esqueci. Só o que esquecemos nos determina. Sobre as memórias vivas temos o poder de as controlar, o que esquecemos escapa-nos, há-de andar por dentro de nós fazendo das suas, condicionando as decisões, as hesitações, cada passo da caminhada que é a vida na direcção do abismo.

sábado, 13 de julho de 2024

ESTANTES

 
Três dias para arrumar a livralhada. Dores nas costas, nas coxas, nos ombros, de agachar, levantar, flectir, ajoelhar, e aquela sensação horrível de perda de tempo ao quadrado. Primeiro, porque nada disto tem já arrumação possível. Depois, por constatar que não devia ter lido nem metade do que li até hoje. Interrogo-me porque raio tenho perdido tanto tempo da minha vida a ler coisas que agora apodrecem em caixotes?

TRÊS SÉCULOS E MEIO

 


Passados 356 anos, constatamos que as palavras de Molière continuam a produzir o seu efeito. As pessoas riem, incomodam-se, gargalham ou ficam com vontade de saltar para a cena porque têm a solução para os problemas que diante delas se (des)enrolam. Tem piada sentir as reacções do público depois de ver o trabalho que foi, que é, que continuará a ser. Parabéns ao Fernando Mora Ramos, que com este Molière se estreou na encenação e a ele regressou agora, 45 anos depois, para nos oferecer um objecto especial. Ouvi de tudo, que Patego tem o que merece, que é um palerma, outros com pena do corno condenam Angélica, a que merece destes compreensão e naqueles inspira raiva. Pelo Perdigoto têm todos empatia, é a prova de que o patrão carrega uma besta dentro de si. Merece castigo. Manhoso é puro gag, o povo adora tolos porque se acha superior a eles. Com Claudina, a empregada, a empatia não é do mesmo tipo, tem momentos de impertinência que um povo católico como o nosso não aprova. Era o que mais faltava, uma empregada faltar ao respeito ao patrão. Clitandro merece compreensão, a despeito da insídia. É o galã que não se desdenha. E os Vilar de Tolos, na sua ruína saloia, o que inspiram nesta terra? Talvez algum tipo de identificação. Para mim, são terríveis. São eles o rosto da hipocrisia que nos governa. Aproveitam-se do genro corno e condenam à infelicidade uma filha a quem não resta senão ser infiel. Parabéns aos actores, que contribuem para que possamos pensar estas coisas sem chegar a certezas. 356 anos depois, Patego, Dandin no original, continua a fazer sentido. Deve ser a isto que se dá o epíteto de génio.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

PREFÁCIOS

 
Diante do Aquilino com prefácio de Cavaco, Quitéria fica à espera das obras completas de Cavaco posfaciadas por Camões. Como é possível um morto escrever sobre um vivo? Eis mais um mistério para desvendar no país da parolice.

RANKING

 
"Um dia, em vez do ranking das escolas teremos acesso a um ranking da estupidez. E aí sim, alguma coisa poderá ser feita em prol da educação." 

Quitéria, a que não lê cavacos.

DEBAIXO DOS ESCOMBROS

 


E é isto. O algoritmo não vai mostrar, o Milhazes vai coçar as virilhas, os generais da parvónia vão palitar os dentes, o comentariado vai passar por cima do assunto, a União Europeia vai varrer para debaixo do tapete, os EUA, sempre exemplares, vão mijar a favor do vento, a NATO vai pedir mais guito para a Ucrânia, haverá muita gente preocupada com o antissemitismo e nas redes, nas ruas, um pouco por todo o lado a vida seguirá o seu curso como sempre: a CMTV ligada no café, para nos distrair com o crime do dia como se vivêssemos todos na Casa dos Horrores da Feira Popular.

Diz a notícia do The Guardian:

"Cerca de 6.400 palestinianos dados como desaparecidos ao Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV) desde o início da guerra em Gaza a 7 de outubro ainda não foram encontrados, disse o Comité. Acredita-se que muitos estejam presos sob escombros, enterrados sem identificação ou mantidos em detenção israelita, enquanto outros foram separados dos seus entes queridos, que não conseguiram contactá-los. Aproximadamente 1.100 novos casos de pessoas desaparecidas foram registados e permanecem sem solução desde Abril, disse o CICV."

Chama-se genocídio, está a acontecer à nossa frente. E os porcos do costume vão continuar a roncar na sua chafurdice hipócrita.

SERENAMENTE SOBRE LANTERNAS

 


   No prefácio a “Serenamente Sobre Lanternas” (do lado esquerdo, Junho de 2024), da norte-americana Andrea Cohen (n. 1961), Manuel Portela sublinha a micronarratividade destes poemas como «testes de poetabilidade.» Sob o título “Micropercepções, micromemórias, micropoemas”, este prefácio sugere uma tensão entre a memória e a percepção como raiz fundadora dos poemas de Cohen coligidos e traduzidos por Francisco José Craveiro de Carvalho neste breve volume. A origem dos poemas é revelada no final. A maioria provém de “Everything” (2021), tendo os restantes sido originalmente publicados nos livros “Furs Not Mine” (2015), “Nightshade” (2019) e “Unfathoming” (2017).
   Andrea Cohen estreou-se em 1999 com “The Cartographer’s Vacation”, tendo desde então publicado oito livros. O mais recente, já deste ano, intitula-se “The Sorrow Apartments”. Esta colectânea agora vertida para português, em edição bilingue, permite-nos ficar com uma ideia da poesia da autora, pouco conhecida entre nós. Que me recorde, ouvi falar dela pela primeira vez através de uma tradução do poeta Miguel-Manso divulgada online, o que faz sentido ao constatáramos afinidades estilísticas entre ambos os poetas.
   Os poemas de Cohen são geralmente breves, justificando o uso do prefixo micro, como faz Portela, para nos referirmos a eles, embora essa característica não esgote de todo a natureza de uma poesia que parece enraizar-se numa certa ideia de poesia oriental que pelo ocidente foi sendo generalizada. As referências a poetas chineses como Wang An-Shih e Su Tung-Po contribuem para tal aproximação, embora a referência ao argentino Roberto Juarorz me pareça mais adequada à compreensão de um labor poético onde mais do que memória e percepção parecem estar em tensão o instante e a reflexão. Esta tensão, característica de uma poesia minuciosamente depurada, coloca-nos no centro de uma paradoxal tentativa de conciliação do instante que motiva o poema, fugaz como um relâmpago, com os tempos maturados e longos da reflexão.
   Por detrás da brevidade e da concisão dos poemas antevemos uma maturação das imagens que torna possível a síntese, mesmo quando o que está em causa é uma espécie de jogo com as palavras que parte de uma premissa inusitada para obter uma conclusão inesperada. Esta dimensão lúdica observa-se, por exemplo, num poema como “Companheira de viagem”: «Ia para todo o lado / com uma mala vazia. // Nunca se sabe quando / precisamos de partir // à pressa sem nada» (p. 23). Há um aspecto irónico nesta poesia que não a condena à gratuitidade humorística precisamente porque mais do que ao trocadilho e a brincadeiras polissémicas, paronímicas, entre outras tão do agrado geral, eles fundam múltiplas possibilidades de sentido recorrendo ao máximo para o reduzirem ao essencial. É o que acontece neste “Espelho”: «Teria pagado / o que fosse // por um / com outra // cara nele» (p. 51).
   Outro exemplo, no campo daquilo a que poderíamos chamar poema social, é este cortante “Protocolo”: «O primeiro ministro / do Japão vai // visitar Pearl Harbor / e, à semelhança do // Presidente dos E. U. A. / em visita a Nagasaki, // não apresentará desculpas» (p. 69). No extremo oposto do poema-piada, que vive do anedótico para entreter cabeças pouco exigentes, estes poemas não dispensam a reflexão crítica que os fundamenta, surgem-nos como sínteses de percepções e de pensamentos capazes de conjugar, na sua extrema simplicidade, a complexidade do mundo com a tentativa de compreensão de quem o observa com distanciamento profiláctico. Podemos sempre dizer, o que não estará de todo errado, que a espaços se assemelham a aforismos partidos em verso. E daí? O que é um poema senão prosa em verso? Regressamos à tal micronarratividade sublinhada por Manuel Portela no prefácio, característica de tanta poesia actual que, mais cinismo, menos cinismo, lá vai resistindo à prosa enfatuada dos dias:
 
Colheita
 
As peras que te
não dei há seis anos
 
não conseguem
parar de apodrecer.
 
Andrea Cohen, “Serenamente Sobre Lanternas”, tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho, prefácio de Manuel Portela, do lado esquerdo, Junho de 2024.

quinta-feira, 11 de julho de 2024

VEM NO THE GUARDIAN

 

Vem no The Guardian:

"Armas israelitas carregadas de estilhaços causam ferimentos devastadores nas crianças de Gaza, dizem médicos. Cirurgiões que trabalharam em hospitais europeus e em al-Aqsa descrevem ferimentos extensos causados ​​por estilhaços de "fragmentação" que especialistas dizem que são projectados para maximizar as baixas."

A UE continua indiferente a isto.

SHELLEY DUVALL (1949-2024)

 


Cada qual tem as suas pancadas. Shelley Duvall (1949-2024) era uma das minhas. Acho que a culpa foi da Olívia Palito no Popeye (1980) de Robert Altman, em contracena com o malogrado Robin Williams. Também de Altman é o comedy western Buffalo Bill and the Indians, or Sitting Bull’sHistory Lesson/Buffallo Bill e os Índios (1976), em que Duvall aparecia ao lado de estrelas como Burt Lancaster, Paul Newman, Harvey Keitel ou Geraldine Chaplin. E no magnífico McCabe & Mrs. Miller (1971) aparece ao lado de Warren Beatty e de Julie Christie. Uma curiosidade: no western de 76, o escritor E.L. Doctorow integrou o corpo de actores. Há "Annie Hall", antes de ter havido o insuperável "Shining" (provavelmente o meu preferido de Stanley Kubrick). Obrigado senhora Duvall, continuarei a vê-la por aí.

DECREPITUDE

 
A vida reserva-nos estranhos sentimentos. Pela primeira vez, que me lembre, sinto pena de um presidente dos EUA. Chega a ser doloroso ver Joe Biden a tentar dar provas de que não é o que é, um ser humano pelo qual o tempo passou sem perdão. Que filme mais triste. Tudo aquilo é altamente confrangedor.

quarta-feira, 10 de julho de 2024

JORGE PATEGO OU O MARIDO HUMILHADO

 


JORGE PATEGO OU O MARIDO HUMILHADO

de Molière

 

   Entre 10 e 14 de Julho, sempre às 21h30, o Teatro da Rainha apresentará Jorge Patego ou o marido humilhado, de Molière. Trata-se de um texto que Fernando Mora Ramos conhece bem, com ele inaugurou o seu percurso na encenação, em Julho de 1979, no então Centro Cultural de Évora. Agora com nova tradução de Isabel Lopes, George Dandin ou le mari confondu ganha com o tempo feições que resgatam a peça do campo da simples comédia de costumes e a recentram no contexto de um tribunal de classe que encontra nas relações familiares o seu palco privilegiado. A infidelidade e o ciúme estão no centro da trama, a par de ambições sociais determinadas pela filiação e pela linhagem.
 
JORGE PATEGO: Ah! Como uma esposa fidalga é um estranho negócio e como o meu casamento é uma eloquente lição para todos os lavradores que querem elevar-se acima da sua condição e aliar-se, tal como eu fiz, à casa de um fidalgo!
 
   Jorge Patego é um camponês novo-rico que desposa uma fidalga com a intenção de ascender socialmente. Filha de uma nobreza rural em decadência, Angélica, a mulher de Patego, não se conforma com o destino que os pais lhe arrumaram. Foi moeda de troca num negócio de que tanto ela como o marido saíram a perder. Enamorada de um visconde com posição na corte, sonha com cortesias e galanterias que a gente da província desconhece. Patego tudo fará para provar a infidelidade de Angélica, que com habilidade e astúcia escapa sucessivamente às goradas tentativas de prova.
   Podemos falar de duas dimensões nesta peça de Molière, uma patente e outra latente. A primeira é a da comédia de costumes, a do marido corno, tema caro ao autor francês, que tudo faz para provar a infidelidade da mulher. A segunda é a da crítica social plasmada no conflito de classes. Patego é um rústico a quem falta o trato e as maneiras dos cortesãos. Os sogros, de apelido Vilar de Tolos, são de uma nobreza rural em decadência, fazem da filha moeda de troca a fim de sustentarem um modo de vida afectado, imitação reles de Versalhes. O tratamento que oferecem ao genro não é muito diferente do que este oferece aos criados, a despeito da agressividade e da violência nos gestos. Acusam-lhe a falta de civilidade e de boas maneiras, cabendo à Senhora de Vilar de Tolos deixar bem claro que «não estamos entre iguais».
 
ANGÉLICA: Como em todos os seus discursos e em todas as suas acções a gente da corte tem um ar tão agradável! E que é, ao pé deles, esta nossa gente da província?
 
   Diz o encenador Fernando Mora Ramos: «O mais complexo em “Jorge Patego ou o marido humilhado” são o próprio Patego e Angélica, ele sofrendo um tipo de cisão interior, experimentando uma “dor” desconhecida num tipo que pensa que o dinheiro compra tudo e ela “sonhando” com uma vida que Patego nunca lhe dará e a que os pais a obrigam — a escapatória será, portanto, fazer como na corte — imita outros com que sonha — e ter uns amantes, no seu caso expressando no fazer amoroso uma ingenuidade própria do seu isolamento duplo, inexperiência por um lado e fechamento absoluto de meio por outro, um cu do mundo fora do tempo e fora da geografia.»
   Angélica, que nada tem de angelical, traz à liça temas caros à época. Importa lembrar que a graça do corno como figura tipo em contexto literário não é tão simples quanto aparenta, ela nem sempre serviu para provar a maldade das mulheres em contraposição à inocência dos homens. Molière é especialmente perspicaz no modo de abordar o tema, eximindo-se de julgamentos sobre a figura feminina. O ciúme doentio de Patego pode ter as suas razões, mas a infidelidade de Angélica não deixa de ter as suas. Afinal, foi obrigada a casar com um homem que nada lhe diz, é jovem, tem direito a gozar dos prazeres da vida. Isso mesmo reivindica, coadjuvadas pela criada Claudina, trazendo à cena reclamações feministas, que deixaram boquiabertos os críticos de antanho.
 
SENHOR DE VILAR DE TOLOS: Na casa de Vilar de Tolos nunca se viu uma cabeça de vento e a bravura não é mais hereditária nos varões do que a castidade nas damas.
 
   Ninguém escapa isento desta comédia exibida, pela primeira vez, no Palácio de Versalhes durante Le Grand divertissement royal. Estávamos em 1668. George Dandin ou le Mari confondu, assim como Le Misanthrope (1666), foram peças pouco apreciadas no seu tempo, ao contrário de outras comédias que deixavam perceber nas entrelinhas ataques pessoais e crítica de costumes. Dandin pecava, desde logo, por não penalizar a mulher infiel face ao marido traído. Mas havia também no texto, ainda que de modo menos explícito, a denúncia de uma justiça desigual para nobres e lavradores. A igreja e uma certa corte de instalados não apreciaram.
   Há um dado biográfico no percurso de Molière que talvez devamos considerar. Pouco antes desta peça estrear, Molière havia casado com a actriz Armande Béjart, vinte e três anos mais nova, julgando tratar-se de uma irmã de Madeleine Béjart, a jovem actriz de quem fora amante e com quem constituíra a sua primeira trupe depois de renunciar à herança paterna: o Illustre Théâtre. Ao que consta, seria filha. O facto foi aproveitado pelos rivais para o criticarem, aumentando o número de inimigos. Diziam que havia casado com uma filha. Valeu-lhe o rei, de quem tinha recebido uma inusitada pensão, e cujo apoio se manifestou publicamente ao aceitar ser padrinho do primogénito do dramaturgo. As calúnias, no entanto, nunca pararam, sucedendo-se os escândalos uns aos outros. O clero tomava posição procurando proibir-lhe as peças.
 
SENHORA DE VILAR DE TOLOS: Lembrai-vos de que haveis desposado uma fidalga.
 
   Hilariante, cómico, divertido, Jorge Patego ou o marido humilhado beneficia de um humor especial. Diz Fernando Mora Ramos: «Neste “Jorge Patego” a dimensão cómica — Patego é um “caso de estudo” — assenta na cisão identitária do protagonista: entre o estatuto querido e a impossibilidade de lhe aceder por via da “fazenda” — o que constata já depois de casado, a esposa não é a que comprou, a norma dela não é a dele.» E remata: «Jorge Patego é uma comédia negra. (…) Aqui temos a história de um mundo fechado que mimetiza uma Versalhes que desconhece.»
   Uma comédia negra, portanto, de um humor que escapa ao riso fácil e resiste no tempo por transgredir nas fórmulas mais básicas. Não obstante, este Jorge Patego é um tratado de comédia que devia ser leitura obrigatória em qualquer escola de humor. As repetições, as hesitações, as personagens que se corrigem umas às outras, os lapsos, as inversões de sentido, a dinâmica nas transições de cena, tudo isso contribui para um cómico anterior à indústria do riso. Trata-se de um cómico que incorpora a dimensão trágica de personagens que são vítimas de traição, de ambições arrivistas, da hipocrisia que representam, de maus tratos, das suas afectações, da condição social e singular em que se encontram como pássaros a cantarolar no interior de uma gaiola.
 
CLITANDRO: Merecíeis sem dúvida um destino bem diferente e o Céu não vos criou para serdes a mulher de um camponês.
 
   Molière, nome artístico de Jean-Baptiste Poquelin, nasceu em Paris no ano de 1622. Filho de um estofador com o cargo de valet de chambre e tapeceiro do rei Luís XIV, ficou órfão de mãe com apenas dez anos de idade. Em 1633, entrou no curso de Humanidades do Collège de Clermont, uma prestigiada escola de jesuítas frequentada pela nobreza e pela alta burguesia. Aí completou a sua formação em 1639, adquirindo posteriormente do pai o título de Tapissier du Roi. Isto permitiu-lhe contactar com o elegante Rei Sol de França, numa época de intensa criatividade artística. Frequentou o ambiente teatral travando conhecimento com Tiberio Fiorilli, dito Scaramouche, actor italiano de commedia dell’arte.
   Este encontro com a commedia favorece também George Dandin. Refere Mora Ramos: «No caso de Patego é muito claro que há cenas que são puro entretenimento a que se seguem outras de tipo nada “para divertimento e riso garantido”. A cena de Perdigoto é isso: um número em que se respira uma pausa na trajectória cornuda de Patego. A cena em si, por outro lado, no limite, nada tem de divertido, pois é a cena de um espancamento que não acontece por talento do fugitivo Perdigoto, cuja arte é, como em Arlequim, escapar às pancadas. Já o desgraçado Scapin, outra figura cómica famosa de Molière, apanha pauladas sem fim dentro de um saco.»
 
CLAUDINA: Quanto a mim, detesto os maridos ciumentos e quero um que não se espante com nada, um tão confiante e seguro da minha castidade que me pudesse ver, sem se inquietar, no meio de trinta homens.
 
   Com cenografia construída por Joel Pereira a partir do cenário desenhado por José Serrão para “Mandrágora”, de Niccolò Machiavelli, luz de Hâmbar de Sousa e desenho de som de Francisco Leal, Jorge Patego ou o marido humilhado conta com interpretação de Fábio Costa (Jorge Patego), Mafalda Taveira (Angélica), José Carlos Faria (Senhor Vilar de Tolos), Isabel Lopes (Senhora de Vilar de Tolos), Hâmbar de Sousa (Clitandro), Beatriz Antunes (Claudina), Nuno Miguens Machado (Manhoso) e Tiago Moreira (Perdigoto). De 10 a 14 de Julho, no Largo Rainha Dona Leonor, junto ao Hospital Termal, sempre às 21h30. Entrada livre por ordem de chegada.

terça-feira, 9 de julho de 2024

NÃO À CENSURA

 


A encenadora Yevgenia Berkovich e a dramaturga Svetlana Petriychuk foram condenadas por causa de uma peça de teatro. "Finist the Bright Falcon", a peça, foi considerada pelas autoridades russas propaganda terrorista. Sobre mulheres atraídas para o ISIS e outras organizações islâmicas, questiona as razões que motivam muitas mulheres na Rússia a ceder às tácticas de recrutamento online. O texto é baseado em registos do caso de Varvara Karaulova, uma estudante de filosofia de 19 anos que tentou partir de Moscovo para a Síria em 2015, mas foi presa e condenada a 4,5 anos de prisão. Na peça, uma versão modificada da história de Karaulova é cruzada com temas de contos de fadas russos.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

UM SEM-ABRIGO

 



   No metro, em Paris, entraste numa carruagem e sentaste-te num assento desdobrável. Três estações mais tarde, veio sentar-se um sem-abrigo ao teu lado. Cheirava a queijo, a urina e a merda. Hirsuto, virou-se para ti, fungou várias vezes e disse: «Huuuumm, cheira a perfume de velha.» Tinhas-te perfumado de manhã, antes de sair. Por uma vez, um sem-abrigo fazia-te rir. Habitualmente, esse género de personagens inquietava-te. Não te sentias ameaçado, nenhuma desventura te havia sucedido por causa de algum deles, mas temias acabar da mesma forma. Contudo, nada justificava o teu receio. Não eras solitário, pobre, alcoólico, abandonado. Tinhas uma família, uma mulher, amigos, uma casa. Não tinhas falta de dinheiro. Mas os sem-abrigo eram como os espectros anunciadores de um dos teus fins possíveis. Não te identificavas com as pessoas felizes, e, no teu exagero, projectavas-te naqueles que tinham falhado em tudo, ou que não tinham tido sucesso em nada. Os sem-abrigo encarnavam essa fase última de um declínio para o qual a tua vida podia tender. Não os vias como vítimas, mas como os autores da sua própria vida. Por mais escandaloso que isso possa parecer, acreditavas que alguns sem-abrigo tinham escolhido viver assim. Era o que mais te desassossegava: que um dia pudesses escolher degenerar. Não abandonares-te, o que seria apenas uma forma de passividade, mas quereres descer, degradares-te, tornares-te uma ruína de ti mesmo.

Édouard Levé, in Suicídio, tradução de Diogo Paiva, Cutelo, Abril de 2024, pp. 54-55.